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Dossiê João Silvério Trevisan

Entrevista com João Silvério Trevisan

Parte 1: Infância, adolescência e o seminário



Por Gabriel Carneiro
Fotos: Laís Clemente

Zingu! – Quando surgiu seu interesse pelas artes?

João Silvério Trevisan – Essa é uma pergunta muito difícil e muito simples ao mesmo tempo. Eu não consigo saber quando é que surgiu meu gosto pelas artes, porque eu era pequeno, eu gostava de escrever, de fazer desenho, e esculpia – fazia bonequinhos de cera -, enquanto eu tomava conta da padaria do meu pai. Eu era muito solitário, filho mais velho, de pai alcoólatra, e eu tinha que cumprir as tarefas de filho mais velho. Eu passava o tempo desenhando, fazendo esses bonequinhos de cera – gostava de fazer bonequinhos de circo -, e era muito bom em português, gostava bastante. Já me interessava muito por cinema, amava novela de rádio. Aos 13 anos, comecei a escrever um romance, entre aspas, chamado Aventuras de Jerônimo, ou seja, era o Jerônimo, herói do sertão, da rádio, que eram minhas preferências, e escrevi isso num caderno.

Z - E pelo cinema, propriamente dito?

JST – Foi no seminário. Eu fiz um seminário muito avançado, em São Carlos. Eu estudei para padre dos 10 aos 20 anos (1954-64), mas tive a sorte de pegar um seminário muito avançado. Era no período do Concílio Ecumênico do Vaticano, e tive uma formação clássica, e muito moderna, ao mesmo tempo. Concomitantemente, estudava grego clássico e fazia curso de língua, curso de cinema e de formação sexual. Fiz vários cursos de cinema dentro do seminário, criei um departamento de cinema lá. Depois quando fui para um seminário maior, estudar filosofia em Aparecida, fundei um cineclube lá dento, e fiz até um festival de Cinema Novo, em 1964.

Z – E como conseguia os filmes?

JST – Na Cinemateca Brasileira, pela Lucila Ribeiro, que era encarregada do Departamento de difusão – logo depois que saí do seminário, fui trabalhar na Cinemateca, no lugar dela. Com esse ciclo de Cinema Novo, eu ganhei um grande amor por um filme muito pouco conhecido e comentado, que é o Porto das Caixas, do Paulo César Saraceni, que eu amo de paixão – e quase fui expulso por causa de uma cena de sexo que tem no filme; os padres quase me mandaram embora do seminário. A questão do cinema era muito crucial. O seminário de Aparecida não era tão avançado quanto o de São Carlos, e eu acompanhava o pouco que passava na cidade. Lembro de uma vez em que passou no seminário Vidas Amargas, com o James Dean, e era em cinemascope. Era uma cópia em 16mm e o seminário não tinha lente para cinemascope. Eu me recusei a ver o filme. Eu só vi Vidas Amargas muito depois. Não iria ver essa bosta que seria, ver tudo apertado, tudo distorcido, e por outro lado, já conhecia muitos autores, já estava muito antenado no cinema de autor, e eu fugia para ver fora do seminário, por não me permitiam ver. Para ver um filme do Hitchcock, Festim Diabólico, eu pulei o portão do seminário e fui para cidade ver escondido. Voltei em estado de graça. Nunca me arrependi, porque esse foi o último filme do Hitchcock a ser liberado para reprise. O filme era absolutamente deslumbrante, e o Hitchcock já era, na época, um dos grandes do cinema. Imagina: estava passando na cidade de Aparecida, naquela merda de cidade, que eu odiava, com aquela Nossa Senhora da Aparecida, com aquele comércio religioso que eu tinha horror, e estava passando um filme do Hitchcock, e eu não podia ir, porque a comunidade não podia ir? Com licença, mas vocês mandem a comunidade à merda, porque se a comunidade não gosta de cinema, eu gosto. Enfim, eles tinham uns padres que tinham muito respeito por mim. Eu era um líder na comunidade e eles sabiam. Saí do seminário com 20 anos, no final de 1964 – peguei o golpe lá, a polícia invadiu com suspeitas de comunismo no seminário -, e logo depois fui trabalhar na Cinemateca Brasileira, já em 1965, no departamento de Difusão.

Z – Como era sua infância antes de entrar no seminário?

JST – Era muito triste. Eu tive uma infância muito triste, eu era solitário. Eu cresci em Ribeirão Bonito. Os problemas domésticos com o meu pai eram muito duros, e era eu quem segurava o tranco, porque eu acompanhava todo dia a humilhação, vendendo pão com meu pai – as pessoas não tinham muito respeito para com ele. Eu ia entregar pão sozinho num cavalo, do qual eu tinha pavor, porque já tinha caído do cavalo – e não tinha cela, não tinha nada. Eu vivia com a bunda cheia de feridas por causa do suor do cavalo. Fui para o seminário com 10 anos. Lá, no começo, era muito – muito, muito, muito - duro, quase insuportável. Eu tive a felicidade de ter essa revolução no seminário logo no começo, com a entrada do Concílio Ecumênico, aí eu botei tudo para fora. Dirigi peça dentro do seminário, peças da Maria Clara Machado. Foi um sucesso na cidade inteira. Eu coloquei dois colegas meus vestidos de meninas na peça. Também vi filmes no cineclube da cidade – já podia sair, os padres permitiam. Nesse momento, aí sim, foi muito enriquecedor. Eu floresci, mas sempre fui um contestador; eu tinha um lado Robert Bresson, e um lado Luis Buñuel. Eu sempre me orgulhei de ser um produto de contradições, e esses dois cineastas representam a minha contradição pessoal. Um cara como o Bresson, que é quase um místico, e um cara anticlerical, como o Buñuel. Os dois são a minha oposição exata. Foi uma infância e uma adolescência muito conturbada, ao mesmo tempo muito rica e muito cheia de planos e de energia, porque a orientação que os padres jovens davam era uma coisa realmente excepcional. Nós não tínhamos aula, só fazíamos pesquisa; a amizade era incentivada, então eu tive grandes amizades no período. Iniciativa pessoal e criatividade eram qualidades que eles incentivavam muito, e eles reconheciam isso que eu tinha. Para mim, era fundamental – eu continuava escrevendo, ganhei dois concursos nacionais de contos no período. Foi uma época de loucuras de fé e, ao mesmo tempo, de muita criação, de muita criatividade.

Z – Você entrou no seminário por algum motivo específico?

JST – Muito difícil responder isso. Provavelmente estava implicada a tentativa de fugir da minha casa. Ninguém me colocou, mas não posso dizer que foi uma opção minha. Uma opção até certo ponto. Não tinha muito alternativa. No primeiro ano, eu queria voltar de qualquer maneira.

Z – Você seguia com afinco a religião antes de entrar?

JST – Claro, claro. Inclusive fui coroinha. Era da Cruzada Eucarística, enfim, coisas que cidades do interior de São Paulo tinham.

Z – Por que saiu do seminário? Não quis seguir carreira de padre?

JST – Eu tinha duas questões cruciais nesse período: minha relação com o cinema, que era muito importante – eu deixei a literatura de lado, parei de escrever, achei que aquilo tudo era uma puta mentira; tive um grande drama com a literatura -, e ao mesmo tempo começaram a aparecer questões relacionadas com a minha homossexualidade. Eu vim para São Paulo e comecei a fazer análise nesse período. Um dos motivos era essa questão da minha homossexualidade, que eu queria resolver, e sabia que o seminário não iria me dar espaço. Sobretudo, acreditava que eu não tinha tido escolha; eu não escolhi. Só conhecia um lado da história. Então eu queria conhecer o outro, para que se eu quisesse continuar a carreira sacerdotal, eu pudesse escolher. Obviamente, eu saí do seminário e nunca mais pensei em voltar. Eu deixei de lado o Catolicismo – não posso dizer que deixei de lado o Cristianismo, pois isso está dentro do sangue de todos nós. Não tenho nenhuma ligação institucional com nenhuma religião, eu tenho uma relação com o sagrado, à minha maneira. Não classifico isso como uma postura religiosa, classifico como uma relação poética com o sagrado.

Z – Chegou a manter amizade ou contato com as pessoas que conheceu no seminário?

JST – Sim, sim, pelo menos até o ano passado, quando um grande amigo meu, um padre, colega de seminário, faleceu, infelizmente. Perdi um grande amigo. Do seminário, eu continuei algumas poucas amizades, e talvez essa tenha sido a única grande relação de amizade, inclusive de interlocução intelectual. Um cara muito inteligente, muito avançado, tradutor da Bíblia, erudito, jungiano; era um grande interlocutor, com quem eu discutia minha vida pessoal, e, infelizmente, faleceu. Porém, a presença do seminário é indelével, tanto que eu escrevi meu primeiro romance, Em Nome do Desejo, baseado nas minhas experiências no seminário; e toda relação religiosa e com o sagrado permeia a minha obra, queira eu, ou não. Minha última peça de teatro, Hoje é dia do Amor, por exemplo, é uma peça em cima de questões relacionadas ao Cristianismo, mas de uma maneira exacerbada, assim como eu trato de forma exacerbada a questão do amor em Em Nome do Desejo.

Parte 2



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