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Dossiê João Silvério Trevisan


A Mulher que Inventou o Amor
Direção: Jean Garrett
Roteiro: João Silvério Trevisan
Brasil, 1979.

Por Sergio Andrade

Logo no começo vemos Doralice (Aldine Müller) perdendo a virgindade com o enorme, gordíssimo e grotesco açougueiro (tal como esse profissional devia ser imaginado pelo pessoal da Boca), no meio das carnes penduradas. Ingênua e sonhadora, ela chora as pitangas com a amiga Maria (Heloisa Raso), que, para animá-la, convida-a para irem numa boate e lhe revela o grande segredo de sua vida: é garota de programa.

Acompanhamos então a “educação profissional” de Doralice, da indecisão inicial até o domínio completo do métier, desenvolvendo uma habilidade que percebe satisfazer seus clientes: a de fingir prazer. Logo fica conhecida na praça como “A Rainha dos Gemidos”. Mas não abandona seu sonho: com o dinheiro do primeiro programa dá entrada na compra do vestido de noiva.

A sorte de Dora começa a mudar quando ela, num dos casamentos que costuma freqüentar anonimamente, chama a atenção do pai da noiva, o Dr. Perdigão (Rodolfo Arena), um senhor de 65 anos e muito rico que lhe compra um apartamento, mas em contrapartida exige exclusividade de atendimento.

Horrorizado com a cafonice da moça, que decorou as paredes com cartazes do seu ator preferido, o galã de novelas César Augusto, o Dr. Perdigão entrega Dora aos cuidados de uma professora de etiqueta (a grande Lola Brah), que a ensina como ter postura corporal, indica a maquiagem mais apropriada para seu rosto e até lhe dá um novo nome, Tallulah (“com agá no final”).

Começa então a segunda e decisiva parte do filme, em que o velho amante deixará Tallulah/Doralice sozinha por vários meses devido a uma viagem, ela se relacionará com vários tipos de homens e se envolverá sentimentalmente com seu objeto de desejo, o ator César Augusto, levando a um final dos mais inesperados.

O roteiro do escritor, jornalista e cineasta João Silvério Trevisan trabalha dentro das convenções do melodrama e dos filmes eróticos da Boca apenas para subvertê-las. Doralice, da garota ingênua e submissa do início, após sua reeducação vai adquirir consciência do seu poder de mulher, e inverterá o jogo com os homens: para um, que não conseguiu dar conta do recado, dá dinheiro com um comentário irônico; outro, que ela quase atropelou, se vê usando luvas de boxe e capacete de motoqueiro na hora da transa.

E ela descobre que o amado César Augusto, a quem vinha mandando flores e seguindo obsessivamente pelas ruas, tem um caso gay com o companheiro de elenco, mas isso não a impede de levá-lo pra cama. Ele será obrigado, no entanto, a vestir o véu, a grinalda, a calcinha e o sutiã dela.

É interessante notar que não há um aprofundamento psicológico da personagem. Não sabemos de onde veio, quem são seus pais, como foi sua infância, sua relação com a mãe, se carrega algum trauma do passado, nada. Apenas a idéia fixa de casar e o amor obsessivo pelo galã. Essa opção acaba funcionando a favor da personagem, pois mantém uma aura de mistério em torno dela.

Trevisan, homossexual assumido desde a época da ditadura militar e militante da causa GLBT, também recheou seu relato com símbolos e ícones gays que o diretor Jean Garrett soube utilizar muito bem.

Na verdade este foi um dos projetos mais ambiciosos do português Garrett, um dos maiores diretores da Boca do Lixo, no qual ele soube manter controle sobre as unidades da produção e obter boas interpretações dos atores, e criou junto com o diretor de fotografia Carlos Reichenbach (que tem um pequeno papel como professor de inglês) cenas de uma beleza plástica inacreditável, como quando Dora, vestida de noiva, se masturba diante do cartaz de César, e no sangrento final.

E não poderíamos terminar essa crítica sem comentar a interpretação de Aldine Müller, que dá um verdadeiro show. Ela está presente em cena quase que o filme inteiro, e a câmera parece apaixonada por ela. Linda e carismática, Aldine tem uns três ou quatro momentos de antologia: dançando sozinha na boate; andando vestida de homem pela rua e seduzindo um efebo; dando um esporro no machão interpretado por Roberto Miranda. Passando por vários tipos de emoção, do choro sincero pela perda da virgindade do começo até a louca caminhando pela rua deserta no final, Aldine nos entrega uma interpretação que, sem sombra de dúvida, está entre as maiores do cinema brasileiro.



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