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Dossiê João Silvério Trevisan

Ana em Veneza, de João Silvério Trevisan

Por João Pires Neto

Em Ana em Veneza, verdade e ficção diluem-se num grande amálgama de vozes, sentimentos e memórias. Entre os contrastantes cenários minuciosamente desenhados, está a efervescente Veneza de 1890, cenário do encontro das três personagens centrais do romance: o jovem compositor brasileiro Alberto Nepomuceno; Júlia, mãe de Thomas Mann, Nobel de literatura em 1929; e Ana, escrava liberta e antiga ama de Júlia.

Fascinante e monumental, a obra do paulista João Silvério Trevisan impressiona principalmente pela beleza e detalhe com que são descritos dois mundos absolutamente opostos: o Brasil ensolarado, colonial e paradisíaco; e a Europa, fria, escura, mas extremamente culturalizada. Para atingir esta pintura verossímil e quase documental das paisagens brasileiras e das grandes metrópoles européias em pleno século XIX, Trevisan mergulhou numa investigação profunda em bibliotecas, museus e arquivos; além de entrevistar dezenas de especialistas em diferentes áreas, como arquitetura, moda, história e política.

O breve prelúdio que introduz o romance parte de um acontecimento histórico: a entrevista que o compositor cearense Nepomucemo concedeu ao periódico A Época Theatral, em dezembro de 1917. Pelo tom confessional e melancólico, repleto de digressões, este “despretensioso dedo de prosa” deixa claro a aproximação das vozes do autor e da personagem. Essa proximidade torna-se ainda mais latente com o desenvolver da narrativa e faz com que muitos vejam o músico Alberto Nepomucemo como o alter-ego de João Silvério Trevisan.

As declarações do velho e cansado maestro revelam mágoas, frustrações e incertezas. São palavras contraditórias que alternam momentos em que denunciam a sociedade artística fluminense como cópia simplificada das manifestações literárias e musicais européias, com outros onde exaltam a superioridade dos artistas estrangeiros. Vestígios da reflexão que permeia, seja mais ou menos explícita, todo o romance: uma grande discussão acerca da construção e da perda da identidade nacional. Não é por menos que o autor apresenta Nepomucemo como “o precursor do nacionalismo musical brasileiro”.

...o tal maestro era irascível, impaciente, sarcástico e cheio de manias. [...]
Eis aí o legendário Alberto Nepomuceno, pensei eu com um calafrio, o homem que
diziam ter revolucionado ou, enfatizavam outros, inaugurado a música erudita de
raízes brasileiras. [...] quem eu via aproximar-se era um senhor de estatura
mediana, cujos cinqüenta e poucos anos de idade pareciam superar a casa dos
sessenta, por seu aspecto alquebrado e sua doentia palidez. [...] A barba toda
branca adicionava ao seu rosto uma ar entre sábio e vetusto. [...] Mesmo sem
perder o ar altivo, não conseguia esconder um jeito meio arredio: era visível o
seu constrangimento ao ser reconhecido em público. (Alberto Nepomucemo,
segundo seu entrevistador)
Voltamos então para 1858, sessenta anos antes da entrevista de Nepomucemo. “Um grito lancinante atravessou o paraíso.” Assim tem início a história real da origem brasileira da mãe de Thomas Mann. O exílio traumático de Júlia, arrancada da sua deslumbrante Paraty e arrastada à cidade alemã de Lübeck. A peralta criança de apenas 7 anos, chamada carinhosamente de Dodô, transforma-se em Júlia Silva Bruns. No novo continente é reeducada, proibida de conversar usando a língua portuguesa, obrigada a abandonar sua antiga religião, o catolicismo, e a tornar-se protestante, esquecendo todos os santos a quem era devota e as orações aprendidas com a mãe e com os negros. Este contraste cultural e religioso, que condena Júlia ao inevitável isolamento, é transcrito na obra pelo discurso ao mesmo tempo desencantado e inconformado da criança.

Júlia nunca conseguiria se integrar plenamente à rígida sociedade luterana; mesmo germanizada, continuara sendo vista pelos locais como uma figura exótica, fosse pelo riso e alegria exagerados ou pela pele queimada do sol brasileiro.

O tema da identidade e do exílio é potencializado com a trajetória da personagem Ana. Nascida Wurá, a negra sofre a primeira expatriação quando é capturada na África e trazida como escrava para o Brasil. Seu segundo degredo, ironicamente, ocorre no momento da alforria, quando acompanha a mudança da família Bruns para a germânica Lübeck. O preconceito racial, o idioma estranho e o distanciamento da sua querida Dodôzinha empurram Ana para os braços do pintor Gustav Sterkopf, com quem se casa. Ela vive em Paris até o falecimento do marido, quando percorre diversas cidades européias como atração circense.

Mas não são apenas os lugares, os sons e as personagens que se misturam e ressurgem na obra de Trevisan. A estrutura da obra intercala narradores diferentes, extensas descrições, monólogos introspectivos e entrevistas. Não há linearidade temporal, enormes saltos cronológicos acontecem entre os capítulos de forma tão natural que não provocam qualquer estranhamento no leitor. Do exílio como tema central, seja ele interior (a eterna busca de identidade e de aceitação das limitações humanas) ou exterior (o distanciamento de sua terra natal), deriva outros temas, como a concepção de nacionalismo, a definição da modernidade, a polifonia cultural, entre outros, que se espalham pelas quase 600 páginas de Ana Em Veneza.

O encontro em Veneza propícia ao autor reunir o emaranhado de reflexões propostos nos dilemas apresentados por cada um das três personagens. No entanto, apesar da cidade ser símbolo da multiculturalidade, e seus labirintos uma grande metáfora às trajetórias conturbadas das personagens, é o Brasil o grande eixo que une o passado e que assombra o então presente de Ana, Nepomucemo e Júlia.



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