html> Revista Zingu! - arquivo. Novo endereço: www.revistazingu.net
Dossiê João Silvério Trevisan

Entrevista com João Silvério Trevisan

Parte 2: Entrando para o cinema e os primeiros experimentos

Por Gabriel Carneiro
Fotos: Laís Clemente

Zingu! - Veio para São Paulo para trabalhar na Cinemateca?

João Silvério Trevisan – Não, vim porque minha família tinha se mudado, nesse meio tempo. Eu tentei um trabalho de cinema na CNBB, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, e que não deu certo. Eu estava tentando montar um departamento de cinema lá. Eu era moleque, tinha 20, 21 anos, não tinha experiência, o que eu poderia fazer? Comecei a dar aula de cinema, no Colégio São Luis, que foi uma experiência muito rápida. Lá, o diretor era um padre muito avançado, ele queria implantar um curso de cinema. Eu dei aula durante um ano, e foi uma experiência horrorosa, que eu não quero mais que se repita; eu odeio ser professor, acho um terror - a idéia do professor passar saber. E era um colégio para ricos... foi algo bem ruim para mim.

Z - Quando que foi isso? Não era a Escola Superior, certo?

JST – Foi em 1965, 66. E não, não tinha nada a ver. Foi antes da Escola Superior de Cinema São Luis. Bem antes. Depois fui para a Cinemateca, fiquei uns 2 anos lá. Paralelamente, me transferi para a PUC-SP. Fazia filosofia no seminário, ao mesmo tempo em que cursava na Faculdade de Lorena. Vim para PUC, mas abandonei no último ano. Era um curso horrível, muito ruim, católico, que eu não suportava mais, e só fui terminar no final da década de 90. Voltei para terminar, pegar o diploma, que eu tenho hoje, como bacharel de filosofia, e pronto. Depois entrei para a AP, Ação Popular, que era um grupo clandestino de católicos de esquerda. Saí logo em seguida, porque era um grupo de católicos maoístas, e eu achava aquilo uma loucura. Preferi continuar maoísta. Nessa época, mergulhei de cabeça no cinema. Conheci alguns rapazes que estavam começando a fazer cinema, e para mim tudo aquilo era uma grande novidade. Nos associamos e criamos uma produtora chamada Tecla Produções Cinematográficas. Eu, Francisco Ramalho Jr., João Batista de Andrade e o Sidney de Paiva Lopes, nós quatro. Foi também uma experiência super frustrante, eu era um moleque, que estava aprendendo as primeiras coisas, não só relacionadas ao cinema, mas à vida. Nessa condição, eu fiz, em 1969, a direção de produção de um longa-metragem, que foi uma experiência massacrante, inesquecível, o Anuska, Manequim e Mulher, dirigido pelo Francisco Ramalho Jr., em que fiz a direção de produção. Eu vivia com os bolsos cheios de chocolates, o estado de ansiedade em que vivia era tal, que eu só comia chocolate, porque tinha que resolver desde a sandália que a atriz ia andar em cena, até a escada magirus para o Ramalho rodar em cena do lado de fora de um apartamento. Era enlouquecedor.

Z – Nesse filme, você também aparece à frente das câmeras, certo?

JST – Acho que apareci, mas como figuração, de último grau. Na verdade, eu nem tinha tempo para isso. Mas foi um batismo de sangue extraordinário, não só para o cinema, mas para minha vida pessoal, porque a minha cabeça teve de se adequar muito rapidamente a uma organização que eu talvez não estivesse capacitado a ter. Para fazer direção de produção de um longa-metragem profissional, você precisa ter uma puta experiência, que eu não tinha, e nós éramos todos moleques. O Batista era o produtor executivo e eu era o diretor de produção. O Sidney era o diretor de som, e o Ramalho era o diretor. Trabalhávamos com Francisco Cuoco, que era um dos maiores atores da TV na época, com a Marília Branco, que era mulher daquele ator italiano que morou no Brasil, o Adolfo Celi – ou era mulher ou tinha sido -, e estava tentando entrar em cinema. A Leila Assunção trabalhou no filme como modelo, porque a história era de uma modelo, e baseado num conto do Ignácio de Loyola Brandão. Foi esse o batismo de sangue na Tecla. Tivemos algumas co-produções, sobretudo Gamal, Delírio do Sexo, do Batista, que eu acho que ainda era na Tecla, e morreu por aí. Foi uma experiência que não deu certo. Nós queríamos fazer um programa comercial, que propiciasse uma discussão ideológica, mais ou menos na linha do Cinema Novo, e ao mesmo tempo nos rebelarmos contra o Cinema Novo. Isso no começo da Tecla. Depois eu me rebelei totalmente, Cinema Novo virou uma grande piada, uma ação entre amigos.

Z – Você freqüentava o Bar Costa do Sol?

JST – Mais ou menos. Freqüentava outros.

Z – O Soberano?

JST – Esse era inevitável, mas eu não era um freqüentador. Para ser franco, o ambiente da Boca era além da mediocridade social. Eram pessoas fudidas que estavam ali, era tudo quebração de galho na Boca. Eu me dava bem com as pessoas de lá, mas tinha reticências em relação àquilo, eu sabia até aonde aquilo poderia ir. A minha interlocução era muito difícil dentro de lá. Tinha outro detalhe importantíssimo, eu não suportava o machismo de da Boca. Eu era um homossexual e me sentia completamente perdido lá dentro, não tinha nada a ver com aquilo. Eu achava uma bosta, um lixo, o tipo de abordagem que eles tinham sobre a sexualidade. Era tudo muito grosseiro, muito baixo, muito machista, e a minha cabeça já era muito crítica a isso, muito antes de eu ir para os EUA, em 1973, onde eu mergulhei em tudo, numa visão feminista e numa análise crítica da discriminação à homossexualidade. Mesmo nesse período, já me embrulhava o estômago. O nível de enrustimento da Boca era grande – eu percebia muitos homossexuais enrustidos lá, que não mantinham uma interlocução. Foi mais um dado para que eu não conseguisse me identificar com a Boca, como, por exemplo, o Carlão se identificava.

Z – O Candeias...

JST – Mas o Candeias era um produto típico da Boca, toda a formação cinematográfica dele se deu lá, não apenas a formação, a vida profissional dele se deu lá. Mas tinha o Carlão; o Antonio Lima; o [João] Callegaro, que fez um filme belíssimo, O Pornógrafo; o Jeremias [Moreira Filho], produtor, que fez publicidade, e O Menino da Porteira.

Z – E isso já era assim no final dos anos 60?

JST – Ah, sim. E tinha outra questão, a da esquerda. Bem ou mal, a Tecla e outras pequenas produtoras tinham posicionamento político muito definido quanto à despolitização da Boca – que era bastante despolitizada ou de direita. Lá era uma preocupação meramente comercial, e nós tínhamos uma preocupação cultural. Éramos ensandecidos pelo cinema japonês. O que tinha a Boca a ver com o nosso encantamento com o cinema japonês, com a Nouvelle Vague, com Antonioni, com os grandes ícones? Era uma distância muito grande que sentíamos entre a Boca e esse universo mais cultural.

Z – Foi nessa época que você conheceu o Carlão, o Jairo Ferreira...

JST – Claro. O Jairo Ferreira foi nessa época, mas anterior à Boca. Foi através do Cineclube Dom Vital, na Rua Sete de Abril. Era um pessoal que circulava em torno do cinema japonês, como o Jairo e o poeta Orlando Parolini. Eram pessoas que não tiveram continuidade dentro da produção cinematográfica. Chegaram a produzir alguns opúsculos sobre cinema japonês, que eu tenho aqui, e são muito curiosos.

Z – E como surgiu o seu primeiro curta-metragem O & A?

JST – Foi um filme feito para uma peça de teatro do Roberto Freire, encenada pela Tuca, com direção de Silnei Siqueira. Era uma luta entre O e A. A peça pretendia fazer uma análise do período contracultural. Ao mesmo tempo em que era uma peça contra a ditadura, ela tinha todo esse viés ligado às lutas da juventude do período: o que ela queria? Queria uma outra ordem. Era então uma luta entre O e A, a peça não tinha uma única linha de texto, tudo era dito entre O e A. Era uma peça muito reducionista e muito simplista, a meu ver. A grande peça do Tuca sempre foi Vida e Morte Severina, um musical deslumbrante. Eu era um estudante da PUC, integrado à AP [Ação Popular], mas logo depois caí fora. O Roberto Freire era da AP, era um pessoal ligado a AP, e eu já estava trabalhando na Cinemateca. De uma forma ou de outra, estava ligado ao cinema. Fui então convidado a fazer uma introdução que contextualizasse a peça. Fiz, então, uma coisa que não era muito comum nesse período, e muita gente torceu o nariz para o que eu fiz - uma colagem de jornais de televisão da época. Pesquisei cenas de brigas entre polícia e estudantes no mundo inteiro – me lembro que tinha no Japão, na Indonésia, nos EUA, na França -, e fiz essa montagem. O que me agrada muito e me deixa muito orgulhoso de ter feito esse curta, é que não fiz um filme panfletário, porque eu era muito crítico. Assim como eu tinha sido crítico à Igreja Católica, eu era muito crítico à esquerda, desde cedo. Eu era da Boca do Lixo, e era muito crítico à Boca do Lixo; tinha sido da AP, mas era muito crítico à AP e à esquerda. E inclusive, nisso tudo, estava muito presente a minha marginalidade enquanto homossexual, que era um foco de resistência muito grande a uma integração. Não era um filme de integração a uma luta, era um filme de observação crítica dessa luta. É aí que eu gosto muito do filme, mesmo que depois eu tenha refeito. Quando ele era O & A, era uma montagem, que eu fiz clandestinamente – era uma coisa muito complicada, em 1969 -, aí eu inseri uma trilha sonora que entrava em contradição com as imagens – eu coloquei muita MPB, muita música de sucesso no período. Lembro que tinha uma cena de uma briga muito organizada de estudantes japoneses. Os japoneses eram organizados em tudo, até para brigar com a polícia. Para gente que via aquelas cenas de quebra-pau na Maria Antônia, estudante correndo para todo lado, era uma coisa de louco. Um grupo de estudantes formando um bloco, e o grupo da polícia com seus escudos formando outro bloco. Eram muito organizados os dois, e era um empurra-empurra, cada um empurrando para um lado. E aí eu coloquei uma canção da Bossa Nova, que acompanhava exatamente o ritmo. Ficava muito irônico tudo aquilo. Tinha uma cena, acho que na Indonésia, de estudantes com a cabeça arrebentada, sangrando, caídos no chão, e aquele travelling, câmera na mão, todo trêmulo, e coloquei uma música que fazia sucesso na época, da Petula Clark, (canta) Love, this is my song. Era uma canção de amor em cima daquela pauleira. No tempo todo, a abordagem era essa. Só no final, quando quebram um pau violento no Brasil, com a polícia jogando estudantes para longe com jato d’água, eu coloquei a trilha sonora do Alexandre Nevskiy, do Sergei Prokofiev, no final, e deu um impacto de luta. Ao começar a trilha do Prokofiev, algo meio marcial, acabava o filme e entrava a peça.

Z – Por que transformá-lo em Contestação?

JST - Fiz minha primeira viagem para o exterior, no final de 1969, por ocasião de uma trilha sonora que tinha feito - que também era a base de montagem - para um filme do Iberê Cavalcanti, no Rio de Janeiro, de vampiros. Ele não tinha como me pagar, e por ser representante no Festival de Leipzig, ele me deu a passagem. Eu, muito sacana como era, era maoísta, ou seja, eu era contra a linha soviética. Eu achava que o maoísta era socialismo libertário, pelo menos era pelo Godard e pela Nouvelle Vague, e por muitos outros intelectuais. Resolvi pegar uma frase do Mao Tse Tung, que para mim era uma frase nitidamente anarquista – veja, eu tinha uma vocação anarquista muito grande, o seminário meu deu a vocação da contradição, da grande dúvida -, e toda a Revolução Cultural era uma revolução anarquista – só depois eu fui saber o que de fato estava acontecendo. Peguei essa frase do Mao, que tinha lido no jornal, e era assim: “É preciso atrever-se a pensar, ser temerário e não intimidar-se com os grandes nomes, nem com as autoridades”. Providenciei traduções em espanhol, inglês, italiano, francês e russo. Lembro que fui atrás do Boris Schneiderman para traduzir para o russo. Iria para Leipzig, levando esse filme na mochila, e iria apresentar em Leipzig, para provocar os alemães orientais, que eram mais soviéticos do que os soviéticos de verdade. Claro que o filme não foi aceito, foi apenas apresentado numa república estudantil, onde tinha fotos do Che Guevara, que eram coisas mais ou menos proibidas nesse regime pró-soviético. Saí com ele clandestinamente, mas fiquei com medo de voltar, então mandei para Cuba a cópia. Então transformei O & A em Contestação. Eu intercalo essa frase, que vai sendo construído no meio das cenas. “É preciso... atrever-se... a pensar...” Era muito godardiano. E no final, depois que entrava o Prokofiev, entrava a frase inteira em português, espanhol, italiano, francês, inglês e russo. Esse é o Contestação.


Parte 1//Parte 3



<< Capa