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Dossiê João Silvério Trevisan

Entrevista com João Silvério Trevisan

Parte 4: A marginalidade, a Boca do Lixo e o cinema brasileiro

Por Gabriel Carneiro
Fotos: Laís Clemente

Zingu! – O que acha dessa identificação com o chamado Cinema Marginal?

João Silvério Trevisan – Eu não tinha isso. Não foi uma escolha, foi uma coisa natural. Eu não pertencia ao Cinema Novo, fazia severas críticas a eles; eu não pertencia à Boca, eu estava lá dentro, mas tinha sérias diferenças. E tinha esse grupo geracional, onde você inclui o [Rogério] Sganzerla, que estava em São Paulo no momento e fez dois filmes importantíssimos aqui, O Bandido da Luz Vermelha e A Mulher de Todos; o Andrea Tonacci, que circulava por ali; o Carlão; e tinha outros que desapareceram, como o [João] Callegaro. Outros também, como o rapaz do Meteorango Kid, o André Luiz Oliveira, que começou inicialmente no grupo; o Alvinho Guimarães, que mantinha contato conosco do grupo; o Carlos Ebert; o Júlio Calasso, que foi meu assistente de produção no Anuska. Era esse grupo, que era uma coisa mais geracional, e o que unia era nossa bronca com o Cinema Novo, e, em certa medida, nosso amor pelo cinema japonês.

Z – Você aceita esse rótulo de marginal?

JST – Aceito. Acho que era uma coisa completamente marginalizada, que o Cinema Novo chamava de udigrúdi, como gozação, pois diziam que estávamos tentando copiar o underground americano. Nós não nos chamávamos de Cinema Marginal, era um rótulo que veio depois. Na época, era Cinema da Boca, um rótulo provisório, mas ainda assim um rótulo.

Z – Por que esse confronto com o Cinema Novo?

JST - Eu tinha severíssimas críticas, apesar de ser um filho do Cinema Novo, mas era uma rebelião contra o pai, que era validamente uma rebelião contra o Glauber Rocha. Isso tudo eu coloquei no Orgia. Orgia é de rebelião, filial contra o pai; feito contra o Cinema Novo. É um manifesto da Boca do Lixo, contra o Cinema Novo – que, de resto, nos desprezava profundamente. Não só porque éramos de São Paulo, mas porque éramos da Boca do Lixo, e éramos uma outra geração. O Cinema Novo é fenômeno baiano-carioca, que nunca aceitou o cinema paulista. Nem o Person, nem o Roberto Santos, nem o Capovilla – mais ou menos o Capovilla, e o Geraldo Sarno, que na época estava em São Paulo, e integraram em algum momento essa trupe. Era uma rejeição muito grande por conta do estigma da Vera Cruz. No livro Revisão Crítica do Cinema Brasileiro, do Glauber Rocha, ele arrasa com a Vera Cruz, não sobra nada. Era coisa de turminha mesmo, turma Rio-Bahia. Era muito difícil, inclusive, abrirem aquele grupo. Porém, eu era, ao mesmo tempo, deslumbrado com Vidas Secas, Deus e o Diabo na Terra do Sol, Terra em Transe. Mesmo Os Fuzis, do Ruy Guerra, que eu amo até hoje –aquele filme tem uma idéia brilhante -, Porto das Caixas, e até Macunaíma, com o qual nós tivemos muitos problemas por ter sido uma superprodução financiada pela Embrafilme. Nós tínhamos severas críticas ao cinema de grande orçamento, já era uma postura do Cinema Marginal, como eu defendo até hoje, de pé junto, que o cinema brasileiro tem que ser altamente criativo de idéias de baixo orçamento. É claro! Nós não temos estrutura para termos cinema industrial no Brasil, ou nós não temos estrutura industrial para manter cinema, um cinema que possa competir com Hollywood. Meu Nome Não é Johnny e esses fenômenos todos de bilheteria brasileira são casos, a meu ver, muito excepcionais; eles não vão configurar uma situação típica do cinema brasileiro. Nós não conseguimos espaço para exibir nossos filmes, porra! Não temos esse público, porque não temos exibição disponível, num esquema que permita competir com o cinema americano - que é um cinema que invade todo mercado brasileiro. Uma saída fundamental me parece ser essa; não há possibilidade de cinema de grande orçamento no Brasil. Nós temos que ter filmes baratos, que possam ser pagos com maior facilidade. Desse jeito, faremos o quê? Vamos viver mamando nas tetas do Estado - que eu acho uma coisa pavorosa, mas talvez um mal necessário. Eu, por exemplo, estou concorrendo agora em vários editais com roteiros, junto com o Reynaldo Pinheiro, mas ao mesmo tempo eu acho apenas um mal necessário. Com outros projetos meus, nunca pude entrar em contexto comercial de produção no Brasil, devido à mentalidade das pessoas que financiam o cinema brasileiro - o Estado brasileiro. Eu tenho filmes que são muito pesados para serem financiados pelo Estado; tenho vários roteiros que nunca puderam ser filmados e que agora estou retomando, mas, ainda assim, eu não vejo um filme como O Onanista, que conta a história de um cara que vira santo chupando o próprio pau, possa conseguir algo. Estou desde o começo dos anos 90 buscando financiamento, não tem condições. Agora, vou, provavelmente, arranjar algum esquema em digital, que está muito mais barato. Mas só posso pensar em cinema totalmente livre, em cinema criador e libertário, se eu pensar em cinema barato. Se quiser um orçamento caro, eu vou ficar engessado, terei filmes completamente inviabilizados. Como vou pagar um filme complicado comercialmente e que seja caro? É um risco imenso, o risco que eu passei com Orgia. Eu nunca consegui pagar as dívidas do filme. Ele nunca foi liberado, mas ainda assim, estou com problemas, ele está sendo lançado em DVD, tenho co-produtor, porque é uma coisa muito complicada, ninguém conseguiu reaver dinheiro nenhum, por nunca ter sido exibido comercialmente. E isso por um problema com a censura, pois a estrutura comercial mercadológica disponível para o cinema brasileiro é uma espécie de censura infra-estrutural, uma espécie de censura avant la lettre, quer dizer, há uma censura imposta pelo circuito comercial, então você só pode ter disponibilidade de filmar coisas tremendamente comerciais, com nomes que tenham apelo comercial, o que restringe completamente qualquer cinematografia, do ponto de vista da criação.

Z – Você não vê a Boca do Lixo, da época das chamadas pornochanchadas, nos anos 70 e 80, uma espécie de indústria cinematográfica brasileira?

JST – Eu nunca levei a sério aquilo, porque era exploração de veios comerciais até então existente. Por exemplo, enquanto o western spaghetti funcionou como moda, a Boca do Lixo correu atrás desse filão. Depois entrou o filão erótico, e a Boca do Lixo foi correndo até lá. A Boca era tão terrivelmente mal-estruturada, tão terrivelmente improvisada, que não dava para acreditar nem nesse cinema supostamente comercial. Ela não estava organizada suficientemente para conseguir implantar uma indústria cinematográfica. Tudo era muito oportunista e imediatista. Tanto que você pega filmes que exploram a mesma fórmula incessante e inesgotavelmente. Quer dizer, é claro que elas se esgotaram, não é? Chegou uma hora que o público não agüentava mais a repetição; não havia nenhuma estrutura inteligente por trás dessa vocação comercial no tal do cinema da Boca do Lixo. Era um cinema de extrema repetição e de concepção comercial medíocre. Claro que ele formava um quadro industrial, mas não tinha um projeto de formação de quadro. O que você tinha lá? Um bando de desempregados, que acabavam trabalhando na parte técnica, e que pela força do hábito e da prática, tornaram-se fotógrafos, fotógrafos de cenas, maquinistas, câmeras, e mesmo diretores ou roteiristas. Roteirista da Boca, por exemplo, era uma coisa inacreditável, eram caras pegos a laço. Eu sei disso porque eu sempre batalhei para ter uma ressonância profissional no trabalho que fazia, e muitas vezes eles não queriam saber de pagamento ou de um pagamento digno, alguma coisa minimamente digna, eram esmolas. Tudo aquilo eram quebra-galhos, era um cinema de quebra-galhos. De repente, o produtor, que freqüentemente era o roteirista, interferia diretamente na direção, considerando que muitas vezes o produtor era o diretor, ou então o produtor e o diretor eram sócios. Tudo visava a uma meta muito fechadinha do ponto de vista comercial: era gastar o mínimo possível, com o mínimo possível de energia, inclusive intelectual e criativa. Eu acho um aprendizado importante viver nesse contexto da Boca do Lixo, enquanto um cinema que estivesse de acordo com suas possibilidades comerciais e financeiras, só. Porque do ponto de vista criativo, do ponto de vista intelectual, eu não tinha nada a ver com aquilo.

Z – Você acha que não há nada que se salve lá?

JST – Sim, claro que tem. Imagina, você tem o Candeias. Mesmo o Mojica – ele criou uma cinematografia, uma imagem pessoa dentro da Boca. Você tem, por exemplo, o Jean Garret. Eu tenho o maior orgulho de ter escrito A Mulher que Inventou o Amor, que infelizmente é um filme muitíssimo injustiçado. È um roteiro que eu fiz com um prazer... nunca fiz nenhum roteiro com tanto prazer e com tanta liberdade. O Jean veio atrás de mim, porque ele precisava de um respaldo intelectual. Ligou a antena dele, e ele sacou que precisava disso para que ganhar a crítica, e foi me procurar. Ele me pagou, chegamos num acordo financeiro. Ele me acompanhou na feitura do roteiro. Dizia: ‘Trevisan, eu não gosto dessa solução”. Eu dizia “ok”, e ia procurar outra solução - o roteiro ficava melhor e o filme ficava melhor. O Jean trabalhou com muito rigor e com muita argüição, acompanhando meu roteiro – ele não fez exigências, mas ele discutiu o tempo todo. É muito importante você ter um interlocutor, alguém que funcione com você como bate-bola quando está fazendo o roteiro, mesmo que não seja um co-roteirista. Eu já não tive essa mesma facilidade como o João Batista de Andrade, por exemplo, quando eu fiz o roteiro do Doramundo. Eu entreguei o roteiro pronto, e o Batista nem quis saber, ele detestou, e o roteiro foi aposentado. Tanto que estou lá como ‘autor do primeiro tratamento’, que não foi usado. Era uma coisa profundamente minha, que o Batista não gostou. Não tivemos nenhuma discussão a respeito disso, ele não acompanhou a produção. Curioso, o Jean, um típico produtor da Boca...

Z – E produzido também pelo Cassiano Esteves.

JST – Também. Tentei falar com o filho dele, para saber o que ocorreu com a película de A Mulher que Inventou o Amor. O Jean ficou de me dar uma cópia, eu entreguei para ele uma fita de vídeo – e era caríssimo na época -, e enquanto ele viveu, ele não me entregou a cópia, logo depois ele faleceu. O filme tem uma série de defeitos, mas é um filme curiosíssimo, um metacinema da Boca do Lixo. É uma reflexão sobre a pornochanchada, é uma metapornochanchada. Eu usei uma série de elementos da pornochanchada, para fazer uma crítica violenta à ela, mas utilizando tudo aquilo - eu não saí de nada do gênero. Ainda tinha o Carlão [Reichenbach] como fotógrafo – que faz também uma ponta como ator -, e ainda trabalhou na trilha sonora, muita engraçada a trilha sonora (risos). É um produto típico de um determinado cinema da Boca do Lixo, que não é aquele cinema da Boca do Lixo que as pessoas costumam taxar como tal. Não é um cinema, por exemplo, do Carlão, porque o Carlão entrou apenas como um fotógrafo. É um diretor da Boca do Lixo, a atriz principal era namorada do diretor na época, a Aldine Müller. Tinha toda uma coisa de cinema da Boca do Lixo, com um roteirista que não era da Boca, com uma proposta que não era típica da Boca, mas usando toda a matéria-prima. Eu estava reciclando a pornochanchada, e fazendo uma crítica muito ácida, muito buñuelesca a ela. Eu tenho uma cópia tirada de um VHS de quinta, uma cópia toda desbotada e horrorosa, para jogar no lixo. E a fotografia do Carlão é belíssima, tem uma cena do ator, o José Carlos Andrade, deitado nu, numa colcha de cetim negro, e a Aldine jogando flores em cima dele. Aquilo parece um caixão – e foi tudo idéia do Jean; claro, toda a cena foi concepção minha, baseada numa relação mórbida, do amor e da morte. Não sei como essa história vai ficar. O filho do Cassiano, acho que se chama Cassiano Esteves Jr., disse que não há a menor chance de conseguir a cópia – não sei se perdeu, se está inacessível, o que aconteceu com os negativos. Fiquei muito chateado com isso, queria muito ajudar a lançar em DVD.

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