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Dossiê João Silvério Trevisan

Entrevista com João Silvério Trevisan

Parte 3: Orgia ou O Homem que deu cria

Por Gabriel Carneiro
Fotos: Laís Clemente

Zingu! – Como surgiu o Orgia ou O homem que deu Cria?

João Silvério Trevisan – Foi no Marrocos, na mesma viagem. Eu tinha ido para o Marrocos, porque um marroquino que havia conhecido em Leipzig me convidara. Eu estava muito interessado, tinha muito mais interesse em conhecer o continente africano do o europeu. Tinha um enorme descaso blasé pela velharia da Europa, tanto que me prometi que não iria a nenhum museu. Abri uma exceção em Amsterdam, e fui para o museu do Van Gogh, porque eu tinha absoluta paixão pelo Van Gogh, e colhi uma enorme depressão olhando os quadros do pintor - fiquei deprimidíssimo, e não tinha como sair daquilo em Amsterdam. Foi o único museu que eu vi. Eu tinha um interesse enorme em ir para a África, pois eu achava que tudo começava lá, tanto que eu fiz minha viagem passando pelo Senegal, pela Tunísia e fui para o Marrocos. Tive que pular a Argélia, pois não deram visto por eu ter cabelo comprido – era um socialismo africano muito babaca, grosseiro, que não permitia cabelo comprido. Quando cheguei lá, tinha uma carta de um amigo de Roma me esperando – ele tinha o endereço desse marroquino -, dizendo que eu não poderia voltar para o Brasil, porque a polícia estava me procurando. Na verdade, a polícia não estava me procurando, o meu nome estava numa caderneta do Cacá Diegues que teria sido pega pela polícia, e que ela estava fazendo uma arredada em cima da caderneta do Cacá. Eu não sei como é que o meu endereço ou sequer meu nome tinham ido parar lá. Eu tinha muito contato com o diretor da Cinemateca, com o do Museu da Arte Moderna do Rio de Janeiro, o Cosme Alves Neto, com a AP também, talvez por isso. Eu tive então que ficar esperando uma carta do Brasil, dizendo se eu podia ou não voltar. Eu tinha 10 dólares no bolso, eu estava voltando para o Brasil. Tinha 10 dólares! Vestia um casaco militar que tinha comprado na Alemanha comunista e uma bota – tudo lá era barato, porque era feito em série; era a única bota e o único casaco disponíveis para compra, de sobras do exército. Tinha também as roupas de brechó que tinha comprado na Boca - que era cheia de brechós na época -, eu achava as roupas maravilhosas e comprei por absolutamente nada. Eram roupas inclusive ‘requintadíssimas’ – umas gravatas vermelhas hippongas enormes estourando, e ao mesmo tempo calças de veludo cotelê, muito raras no Brasil, importadas de antigos, muito usadas; tudo era muito usado, claro. Aí eu caí doente por lá, e fui socorrido por franceses, inclusive pelo até recentemente diretor do Le Monde Diplomatique, o Ignacio Ramonet, que morava em Rabat, onde eu tinha ido procurar esse marroquino que tinha conhecido em Leipzig, e que não encontrei mais. Não sei por que fui encontrar com esse pessoal que tinha uma revista de cinema lá, uma revista muito pobre, que era interessadíssima em Cinema Novo, e que me acolheu. Fiquei doente durante 30 dias e esse povo cuidou de mim, enquanto eu esperava carta do Brasil. Fui para Marrakesh, sempre passando de mão em mão entre os membros do grupo, numa espécie de sitioca que tinha lá, onde conheci hippies de verdade, fumei haxixe pela primeira vez – e o meu francês ficou maravilhoso fumando haxixe, eu nunca me esqueço -, vi cenas terríveis, de pessoas se dopando com ódio, hippies com dentes estragados por conta do uso de ópio. Marrakesh era uma cidade muito hippie. Eu estava morto de saudade o Brasil, morrendo de medo de que eu não pudesse mais voltar, e então eu comecei a fazer o roteiro. Era um roteiro de retomada da minha relação com o Brasil, como se eu olhasse o meu país de fora. Aí recebi a notificação do governo brasileiro de que poderia voltar ao país, pois não havia nenhum problema. Voltei, determinado a fazer o filme. Terminei o roteiro, fumando maconha, porque eu queria fazer uma coisa que o Cinema Novo não tinha conseguido fazer, a meu ver, que era encontrar as raízes do povo brasileiro em nível de inconsciência coletiva. Em minha cabeça, fumar maconha me ajudaria a encontrar o inconsciente coletivo do povo brasileiro. Claro que no dia seguinte eu revia tudo, mas queria saber quais eram as fantasias que povoavam o imaginário brasileiro, tanto que eu fui ver muito Teatro de Revista, na Av. São João. Eu queria mergulhar todo o meu filme nisso, que era um filme debochado, antes de mais nada. Era um filme sobre o deboche, e, para mim, um grande fator de produção de deboche era o Teatro de Revista, à época, muito decadentes, onde tinham prostitutas, tudo de baixíssimo nível, tudo muito barato. Muitos desses elementos estão presentes no Orgia, inclusive fisicamente, como uma dançarina de mambo, um travesti... Roupas eu tirei de lá – eu consegui que uma figurinista me desse de presente, da antiga TV Excelsior, e as reformei -, mas sabia o que queria. Personagens que, nesse mergulho, supostamente, encarnavam o perfil brasileiro. Encontram-se lá o rei do país, que tem uma copa do mundo como cetro na mão, uma coroa de palmeira na cabeça; um rei negro que cai do céu; e há vários negros presentes no filme. É muito impressionante para mim, no sentido de como eu realmente estava antenado com a questão de uma representação do Brasil, e o cinema não se importava muito. Em uma cena, tem um negro carregando uma cruz, e de repente ele está chorando com uma caveira nas mãos, com uma canção muito lamentosa. E o travesti é um travesti negro, era uma dupla provocação, e ainda era um travesti elegantíssimo, magricelo, alto, vestido de Carmen Miranda, com um penico na cabeça, cheios de frutas de plástico, e declamando Oswald de Andrade, que, na época, para mim, era um ícone.

Z – Porque trabalhar com o conceito da antropofagia para fazer esse filme?

JST – Era algo daquele momento, de Tropicália, de Zé Celso. Rei das Velas, por exemplo, está presente no Anuska, e nós tivemos muita proximidade com o Zé Celso e com o Oficina ao filmar o Anuska. Eu tive que mediar a cena, pois nós filmamos a peça, e eu precisava arranjar gente para compor a platéia - e acho que é nesse momento que apareço, porque não tinha gente para fazer a platéia do Rei da Vela. Eu e Batista fizemos um roteiro baseado no Serafim Ponte Grande, que para mim era o máximo da esculhambação, muito mais que o Memórias Sentimentais de João Miramar. O Serafim Ponte Grande chegou a expulsar um personagem do livro porque o ele peida, ou seja, era um deboche só. Eu e Batista queríamos fazer um filme, feito em cenários de teatro - eram coisas loucas, mas muito avançadas do ponto de vista teatral. Nossa idéia era fazer todo o cenário de papelão. Infelizmente, eu e Batista nunca conseguimos realizar isso. Respirava-se Oswald de Andrade. A obra completa dele estava sendo reeditada, muita coisa praticamente inédita, que devorávamos vorazmente. A autobiografia dele, para mim, era um deslumbramento. Lá se via as contradições do Brasil. Um cara anticlerical, que vai para Aparecida do Norte, pagar uma promessa, por conta de uma namorada dele, anterior à Pagú, que estava morrendo. A cabeça do Oswald de Andrade era o emblema do Brasil, ele significava Brasil; e aquela poesia, aquele modernismo levado ao extremo. É engraçado porque meu primeiro contato com o Modernismo não foi com Mário de Andrade, foi com Oswald de Andrade, através da prosa e da poesia dele. E o meu personagem declama os poemas do Oswald de Andrade. Ele já fazia deboche em cima da literatura brasileira, e eu estava fazendo deboche em cima da cultura brasileira, e em cima do Cinema Novo. Ao mesmo tempo, era um deboche que desembocava numa angústia profunda. O Orgia é um filme absolutamente sem saída, é um filme angustiante, doloroso, e melancólico até o extremo. Tem os índios sifilíticos devorando o bebê do cangaceiro. O cangaceiro grávido tem um filho no cemitério de Vila Formosa, onde não consegui permissão para filmar. Nós entramos clandestinamente no cemitério, nos trocamos lá dentro, e pulando por cima dos túmulos, fomos filmando. O nascimento da criança é em cima de um túmulo, e as pessoas como loucas. Os atores já tinham sido ensaiados, pulando em cima dos túmulos, e eu lá gritando: “Carlão, pega isso, pega aquilo”. A presença de Oswald de Andrade foi marcante no filme, a questão da antropofagia. Devorar o nenê que nasce, fruto do signo do macho – o meu cangaceiro era uma Lampião relido, uma mistura de Lampião com Antonio Conselheiro, influência do Deus e o Diabo na Terra do Sol; e ao mesmo tempo era uma gozação ao filme do Glauber, porque na bandeira eu coloquei o emblema da Wolkswagen, e esse cangaceiro está o tempo todo carregando esse emblema. Era uma esculhambação sobre o Brasil. No filme, quando eles chegam na cidade, são recebidos por dois empresários, que tinham entrado em falência. A fábrica de camisinha deles tinha ido à falência porque o Papa apoiava a camisinha. E eles estão lá, chorando como loucos, na entrada da cidade. A Wolskwagen era o grande signo de industrialização no Brasil. Oswald de Andrade entrava como um tempero fundamental nisso.

Z – Como você conseguiu financiar esse filme?

JST – Nem me fale! Ninguém foi pago. Eu já havia dito aos atores e aos técnicos que não tinha dinheiro para pagar ninguém. Nós comíamos pão com mortadela, como almoço, e guaraná. O carro, uma Kombi, era emprestado de um dos maquinistas. Nós íamos filmar perto de São Paulo, em Francisco Morato, e aí eu emprestei dinheiro para comprar o negativo. Eu não tinha condição de fazer 2:1, não tinha como refilmar, era um take só, filmou, ficou. Não tinha escolha. Um co-produtor entrou com laboratório e estúdio. Eu peguei dinheiro do banco, e nunca tive como pagar esse dinheiro de volta, e a pessoa que teve que avalizar – e eu não vou dizer o nome para não mexer em feridas -, queria me matar. Sei lá, com toda razão, mas era um amigo meu. Eu fiquei escondido na Vila Madalena durante muitos meses – foi um dos piores da minha vida -, em 1971, quando a censura prendeu o filme, e não tinha como lançar para, como o dinheiro de bilheteria, pagar a dívida. Eu não tinha dinheiro para nada. Almoçava e jantava farinha de soja com leite. Estava na casa de uma amiga, e lá ficava eu. Não queria entrar em contato nem com a minha família, porque eu me sentia muito humilhado. Só saí de lá quando minha mãe ficou muito doente e tive que cuidar dela no hospital. Foi um ano tão infeliz quanto a felicidade de realizar Orgia.

Z – A censura não liberou o filme por quê?

JST – Eles me deram o certificado considerando que o filme era “inconveniente em toda a sua totalidade”. Eu precisava cortar as pornografias e as obscenidades do Orgia ou o homem que deu cria. Deram três tópicos. Eu disse: “o meu filme não tem nenhum obscenidade, eu não tenho que cortar.” Na verdade, tinha ator cagando para câmera. E eu ia cortar? Eu tinha feito um filme barato justamente porque eu sabia que podia ter problema, mas não sabia que ia chegar a esse nível. Não deram o certificado de Cinema Brasileiro. Era uma forma de censura violenta, pois se não lhe dão certificado, não é permitido exibir comercialmente. Durante mais de dez anos, esse filme ficou lá parado, até quando todo o aparelho da ditadura se desarticulou, aí o filme automaticamente foi liberado, porque não tinha outra solução. A essa altura, eu nem tinha mais como exibir o filme comercialmente, já não havia mais o menor interesse.

Z – Foi por isso que você deixou o cinema?

JST – Foi por isso que deixei o cinema. Foi uma coisa muito dolorosa. Aí eu comecei a alimentar a vontade que eu tinha de ir embora do Brasil. Fiquei trabalhando meio clandestinamente, pois eu não podia dar meu nome, que estava sujo na praça, devido ao empréstimo do banco. Fui morar numa comunidade gay, éramos todos homossexuais, e lá, eu fazia trabalhos para a editora Abril. Não trabalhava para lá diretamente, eu trabalhava para alguém que trabalhava para a editora Abril, nas enciclopédias que ela publicava na banca. Com isso, eu fui juntando dinheiro para ir embora do Brasil. Meu projeto era ir para Berkeley, o lugar das lutas estudantis, eu queria saber como é que essa bosta toda ia acabar no império americano, o que tinha de novo para ver. Eu fui para Berkeley, para ver um novo mundo.


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