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Dossiê João Silvério Trevisan


Orgia ou o homem que deu cria
Direção: João Silvério Trevisan
Brasil, 1970.

Por Gabriel Carneiro

“Em matéria de demagogia, viva o cinema!”, exclama um dos loucos personagens de Orgia ou o homem que deu cria, em determinado momento do filme. Enquadrado no rótulo de Cinema Marginal, o único longa-metragem de João Silvério Trevisan, hoje renomado escritor, é um desbunde total, e ainda assim extremamente crítico quanto ao cinema brasileiro até então produzido. A frase que abre esse texto cabe perfeitamente no Cinema Novo, feito com dinheiro do governo, contra o Estado, de maneira demagoga – o público, então, pouco importava. A renúncia dos preceitos cinemanovistas de falar do povo é o ponto de partida para seu filme, uma longa caminhada pela terra brasileira.

Ao matar seu pai, um jovem tresloucado começa uma caminhada, e vai angariando diferentes pessoas para seu bando. No filme, não há história, tudo é um grande desfile de tipos formadores da sociedade brasileira. A antropofagia aqui é antropológica, o conhecimento do povo, de sua formação, diferentemente da antropofagia cinematográfica que parecia predominar. Cada pessoa que é encontrada no percurso, é um novo traço da brasilidade – tem de tudo, do matuto ao padre católico, do índio ao europeu, do travesti ao cadeirante (que é rei) -, cada pessoa agrega um sentido, um trejeito ao produto final.

O caminho encontrado por Trevisan é mostrar, de maneira suja, feia, a formação de um povo. Dizem: “Vamos descobrir o Brasil”. E descobrem, a cada pessoa que entra no grupo, é uma nova descoberta. Alguns personagens parecem desconexos nisso, mas cada um tem seu papel. O cadeirante com uma coroa e um cetro na mão é o rei (momo), o travesti negro, fantasiado à Carmen Miranda, que grita e fala alto, as prostitutas, são todos matéria-prima para uma criação. O Brasil é desbravado como um grande carnaval, uma festa, com gente dançando, pulando, gritando, urrando, tirando a roupa, comendo, bebendo, se reconhecendo. Em alguns momentos, até parece uma chanchada da Atlântida com personagens marginais e incompreendidos. Brincando com os estereótipos, Trevisan pega seus personagens-tipos e lhes dá uma nova roupagem: o cangaceiro, cabra-macho do sertão, carrega uma bandeira, da Wolkswagen – seria a comercialização de um símbolo, o capitalismo incorporando os mitos anti-burgueses?

Quase como um delírio coletivo, as personalidades vão mutando, recebendo novos estigmas, novos valores. Chegam à cidade, e o que é aquilo? Um grande vazio, um nada. Ruas, cartazes, lojas, propagandas; e as pessoas? O que aconteceu delas? Elas têm medo, se escondem, não conseguem enxergar a multiplicidade de culturas: o negro, o branco, o europeu, o homossexual, o sertanejo, o sexo fácil. Tudo compõe uma realidade. Trevisan parece ter entendido a complexa formação, e à sua maneira, num road-movie à pé, cria o país – um homem deu cria, seria machismo? Não, é perfeito: o país nasceu torto, por vias tortas, sem cuidado algum, ao Deus-dará. O que se pode fazer com isso? Conhecê-lo, desbravá-lo, entendê-lo, aceitá-lo? Não se sabe, Trevisan não se propõe a responder nada – ele mostra e indaga. O que é o Brasil? O que é seu povo? É isso? O final do caminho é um cemitério. Lá nasce uma criança. Na morte, surge a vida.

Orgia ou o homem que deu cria é um mosaico do povo brasileiro. A agremiação dessas pessoas frutifica, o homem dá cria, e nasce o Brasil. A metáfora é brilhante: a antropofagia, o canibalismo, unifica a espécie – o país tem um pouco de tudo, falta descobri-lo (será?).



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