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Especial Medos Privados em Lugares Públicos


Medos privados em Lugares Públicos
Direção: Alain Resnais
Coeurs, França, 2006

Por Filipe Chamy

Alain Resnais filma como um moço. O octogenário cineasta registra imagens com o ímpeto de um jovem estreante, e logicamente isso dá a seu filme uma força fora do comum. Nunca deixou de se reinventar, e essa é talvez a principal característica de seu sempre brilhante cinema. Este seu penúltimo trabalho é prova de genialidade apenas comparável à extraordinária sensibilidade, marca de um homem sábio e que não precisa se mostrar inteligente, pois assim o é naturalmente.

Medos privados em lugares públicos é sobre a rejeição, sobre como o amor tenta se insinuar por frestas. Os seis atores principais (Sophie Azéma, André Dussollier, Pierre Arditi, Laura Morante, Lambert Wilson e Isabelle Carré) estão em estado de graça plena, detentores da mais perfeita verdade que alguém pode querer passar. Não é pouco para um filme que se apóia basicamente em situações envolvendo essas pessoas, mas é algo que seguramente foge do convencional, ao mesmo tempo que tem a sensatez de justamente usar esse disfarce de “filme comum”.

Os personagens de Medos privados em lugares públicos não são corajosos ou ousados. São pessoas que dificilmente se relacionam além do cerco familiar e pessoal em que estão presos. Como todos, têm fraquezas e dúvidas, e é entendendo esse princípio que Resnais carinhosamente os explora, nunca deixando que duvidemos de suas reais intenções, ao mesmo tempo em que não podemos condená-los por absolutamente nada (reconheçamos aqui um brilhante desenvolvimento das atuações). A arte do cinema é fazer o espectador sentir ternura por gente que ele não conhece, por exemplo. E é assim que as pessoas deste filme deixam o espectador, após serem estrategicamente posicionadas pelo diretor nesse campo incerto do drama com toques cômicos. É preciso ser um mestre para conduzir bem algo desse tipo, para acrescentar algo novo a essa altura, e este filme é como um quadro de cores bem fortes (aliás, as cores do filme são mesmo bem fortes): dói o olho, mas a sensação é extremamente gratificante. Também não resta dúvida de que a neve e as tomadas aéreas em espaços reduzidos têm grande valor. Resnais ainda é um exímio arquiteto do olhar, um visionário da beleza. Não há um enquadramento que não seja perfeitamente estudado, e eles não soam frios, mas intensos e poderosos, dominadores em sua plasticidade clássica e esteticamente harmoniosa.

É um prazer passear pela França do frio e dos sobretudos, dos cafés e da badalação, do prazer e do desespero, tudo isso em duas horas. É o cinema maior que a vida? Truffaut e muitos outros gênios da sétima arte pensaram nisso a vida inteira. E Medos privados em lugares públicos prova que, se não é, pelo menos é tão importante e verdadeiro quanto. O sentar-se em um sofá para acompanhar a televisão não é mais cotidiano, é magia, assim como os segredos de irmãos e a falta de perspectiva de um barman. A doença de um velho degenerado é uma interessante mistura de tristeza e comédia, ainda mais quando a religião cega entra na história. O drama comum de um casal que se separa é exposto com calma, mas quem disse que a vida se ajeita por ela mesma? No final das contas, a solidão e a introspecção ditam as regras da convivência, e naturalmente Alain Resnais não se escusaria de mostrar isso em sua obra. Ele, que visitou os horrores de Hiroshima e filmou o medo, a insegurança e o caos, é um otimista, mas não um tolo. Não há essa concessão a valores sociais, a honestidade ocupa esse espaço. É um cinema sincero, em primeiro lugar. Pouco vale se sentar em uma cadeira de cinema esperando ver sempre a mesma fórmula resolvida e encharcada de escapismo. Às vezes é interessante ver como as coisas são realmente. E se isso for feito com delicadeza e maestria, então, pode ser maravilhoso. Esse filme é assim.

*Publicado originalmente na edição #15 da Revista Zingu!



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