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Especial Nelson Rodrigues no Cinema

A Dama da Lotação
Direção: Neville D’Almeida
Brasil, 1978.

Por Gabriel Carneiro

Com as adaptações de Arnaldo Jabor, levar Nelson Rodrigues ao cinema tornou-se um investimento lucrativo. Alguns diretores entraram na onda, caso de Neville D’Almeida, cineasta ligado ao chamado Cinema Marginal, com filmes como Jardim de Guerra e Mangue bangue. Neville conseguiu algo com A Dama da Lotação que nenhum outro cineasta conseguiu adaptando Nelson Rodrigues para as telonas: levar 6,5 milhões de pessoas ao cinema, a segunda maior bilheteria do cinema nacional (que foi comprovada por dados da Embrafilme). Não à toa, dois anos depois adaptaria outro texto de Nelson, Os Sete Gatinhos.

Numa época em que o cinema erótico era certa garantia de público, uma forma fácil de ganhar dinheiro na área, os textos de Nelson Rodrigues passaram a ser usados como base no cinema – há filmes que respiram a alma dos textos do dramaturgo sem nada terem concretamente dele. A questão é que Nelson Rodrigues é mais do que simples e pura libertinagem e sacanagem. Toda sua obra é permeada pela discussão sobre a família e o tabu sexual – temas profundos, que trazem o sexo como elemento coercivo das narrativas, através de ousadias, estigmas, e erotismo, claro. Realizar um filme que se apóia predominantemente no sexo, é deixar de lado o que há de melhor no texto de Nelson. Infelizmente, Neville faz isso.

Baseado na brilhante crônica homônima, do livro A Vida como Ela é, A Dama da Lotação é um filme que explora a beleza e sensualidade de Sônia Braga – sendo as cenas em que aparece nua o centro do filme. A adaptação de Neville é reducionista em relação ao texto, e nem com os diálogos do próprio Nelson Rodrigues consegue dar profundidade ao tema. Independente disso, não se sustenta como uma obra cinematográfica. Cheio de firulas no roteiro, com narrativa fragmentada, idas e vindas deslocadas da história, A Dama da Lotação parece perdido. Primeiro, tenta solidificar a importância da família e da frigidez de Solange durante mais da metade do filme, para então entrar no ponto central do filme, a traição com estranhos no ônibus. Porém, nessa parte, ele muda completamente a linha temporal, causando não só estranhamento, como confusão, sem deixar isso claro a quem assiste. Isso será explicado depois, mas perde-se o impacto da revelação, torna menor, banal.

Dessa forma, mal justifica o título do longa-metragem. A Dama da Lotação (que pega ônibus, com direito a placa e tudo) interage apenas com duas pessoas de um ônibus antes que o marido descubra – a história, creio, todos já conhecem: após se casarem, Solange não consegue transar com o marido; em estranhos, na lotação, encontra o refúgio, e uma crise é instalada na família quando o marido descobre tudo. As sequências, deslocadas, são longas, e parecem apenas justificadas pela nudez da grande estrela do cinema da época, Sônia Braga – e disso, de fato, não há o que reclamar; Neville a filma nas mais diferentes posições e ângulos permitidos pelo cinema softcore dos anos 70, além de exercer o fetiche, corriqueiro do cinema erótico.

O final, lúdico, e, a priori, chocante, quase um soco no estômago, perde o fôlego, fica sem graça, com uma esquisita cenografia, a fotografia escura de Edson Santos, além da falta de dramaticidade da cena – no filme, tudo é blasé, quando não deveria ser, como se faltasse energia. O foco é tanto em Sônia Braga, nas diferentes cenas em que mantém relações sexuais das mais diversas ordens (ficando até repetitivo), que um personagem interessante como o de Carlos, interpretado por Nuno Leal Maia, e de importância para a história, fica apagado – entende-se assim porque os conflitos soam bobos, banais.

Nelson Rodrigues mostrava como todas as pessoas têm sua parcela de culpa, sua responsabilidade sobre os atos e suas conseqüências, como a família era corrupta e como a sexualidade era reprimida. Neville esvazia tudo. Em A Dama da Lotação, tudo é indiferente, tudo é passível, nada importa. Ninguém tem culpa de nada, o conformismo impera. Um filme vazio de sentido.



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