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Especial Nelson Rodrigues no Cinema

A Falecida
Direção: Leon Hirszman
Brasil, 1965.

Por Filipe Chamy

Um dos gêneros mais controversos da literatura é a crônica; não é dada a ela a importância de uma arte maior, relevante para seu tempo e para a reflexão em anos futuros. Mas o menosprezo não é restrito às letras: em cinema, por exemplo, a crônica também não é muito bem-vinda. E até entende-se o fato, quando a crônica é manuseada por gente apressada, que simplesmente quer registrar um fato, como se a câmera de cinema fosse uma espécie de diário oficial de um órgão público; aí, naturalmente, mata-se a graça, o interesse do espectador e a durabilidade da obra. Obras de arte restritamente condizentes com um tempo específico só têm interesse histórico; portanto, não é difícil constatar que filmes que apenas queiram dizer algo a respeito de um assunto pertinente a uma época e condições muito peculiares pode, com grande facilidade, virar apenas peça de museu, sem maior alcance que o de mostras ou catálogos do próprio local de origem; se não se preocupar minimamente com o aspecto “artístico” do trabalho, toda intenção humana se perde — é compreensível que não haja vontade de acompanhar uma obra que diz respeito a uma mentalidade e a um período sepultados. É necessário um mínimo de esforço dos artistas realizadores (sejam eles escritores, músicos, cineastas...) para preencher suas criações com elementos que viabilizem e garantam seu porvir: a crônica deve ser, antes que informativa ou anedótica, bela e bem escrita. O filme A Falecida não é uma crônica, mas a ela se assemelha; por sorte (e capacidade e talento de seus participantes), é memorável o suficiente para amparar-se sem muletas históricas. Mas todo o teor crítico e inconformado de uma crônica, a descrição ora cômica ora cruel de uma realidade social, o sarcasmo narrativo, tudo está aqui, mas bem definido e desenvolvido, delineado com sensatez, verniz que permite à obra a sobrevivência em tempos diversos daquele em que foi realizada. Feito em 1965, A falecida continua hoje excelente, e deve perpetuar-se assim, como toda obra de arte de qualidade.

Os méritos do filme não acabam nessa sagacidade em escapar da prisão temporal: a quantidade de nomes de destaque em seus créditos é capaz de atrair, por si só, a curiosidade de qualquer “passante”: o que dizer de um filme com nomes como Radamés Gnatalli e Nelson Cavaquinho na música, e Eduardo Coutinho no roteiro? O capital é: A falecida é suficientemente seguro para depender de seus nomes famosos.

É tudo no geral bem simples: extraído de uma história do mítico Nelson Rodrigues, é a vida de uma certa Zulmira (Fernanda Montenegro) e sua derrocada advinda de um terror confirmado pela superstição: o medo de perder seu homem (Ivan Cândido) dá-se conjuntamente a seu ódio por uma determinada mulher e ao seu espírito de mudança (interior, sobretudo). Personagens rápidos nos diálogos e na hipocrisia, Zulmira rodeia-se deles e não consegue escapar da teia que é tecida por todos (ela, inclusive); o final é inevitável, mas inversões são propícias e nunca pensamos conhecer realmente o íntimo das personagens. Há uma bizarra mescla de descaso, machismo, esporte e ironia; ao final (afinal) não compreendemos bem se o sofrimento vem da partida de futebol, da partida da falecida, da tristeza da vida ou se são lágrimas de crocodilo; não existe uma intenção certa, como sempre o crucial é observar esses flagrantes de vida cotidiana, nesses pequenos espaços habituais é que está a grandeza dos sentimentos e a complexidade da vida real.

A falecida talvez seja uma comédia de humor bem negro; um ácido e corrosivo ataque aos costumes dos “novos ricos”; um drama amoroso sobre desajuste familiar; algo amorfo e sem objetivo certo — o que é certo é que é um filme feito com percepção, o que o destaca de uma imensa gama de crônicas mal elaboradas.



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