Por Andrea Ormond, especialmente para a Zingu!*
Dizer nunca inclui as últimas décadas em que Nelson vem desfrutando de uma unanimidade insuportável, revisto até em peças de teatro infantil e citado por patricinhas e mauricinhos no Orkut. Assim como Nietzsche, um polemista da sua estirpe, um escritor da sua qualidade, não merece tamanha cooptação. Gênios são feitos para incomodarem. "Domesticar" Nelson, trazê-lo para a sala de visitas, foi somente tratar sua obra pelas bordas superficiais, e, em última instância, uma nova forma de ignorá-lo.
Logo, existem dois Nelsons: o real, que viveu entre 1912 e 1980, condicionado pelas piores tragédias, sentado na máquina de escrever dissecando a miséria da alma humana com uma criatividade quase demente; e outro, inventado depois de morto, que virou quadro no Fantástico, ou vendido em meio a livros de auto-ajuda que certamente lhe causariam urticárias.
Nos anos 1960 e 70, quando a crítica não atingira o estágio tatibitati mercenário de hoje, muita gente já apontava que os subprodutos rodrigueanos - os filmes principalmente - padeciam desta incapacidade de emulá-lo com a mesma ferocidade do original. Claro, não sabiam a que ponto a diluição chegaria, pois gente como Braz Chediak, Arnaldo Jabor e Neville D’Almeida compreendiam o autor perfeitamente bem. E se não conseguiam atingi-lo, era porque trata-se de um osso duro de roer, uma armadilha para aqueles que, com a melhor das intenções, busquem uma transposição criativa do universo literário para o cinematográfico.
Tão filmado quanto entrevistado nos anos 70, a verdade é que Nelson abençoou quase todas as adaptações que recebeu em vida. Em uma conjunção de fatores, o cinema setentista foi a cara de suas obsessões. Assim, Jabor fez uma obra-prima com Toda Nudez Será Castigada (1972) e um grande espetáculo em O Casamento (1975). Conta a lenda que o jovem diretor, após o sucesso de Toda Nudez, recebia do ídolo olhares de sincera admiração, que muito lhe preenchiam o ego. Podemos dizer, no entanto, que O Casamento nos cinemas nem chega aos pés do romance de 1966, banido em todo o território nacional pelo governo militar - e uma das melhores coisas já escritas na língua portuguesa em todos os tempos.
Braz Chediak, vindo das adaptações de Plínio Marcos, se atracaria a Nelson percebendo ali um tesouro inesgotável, porém obtendo resultados desiguais. Em Bonitinha Mas Ordinária (1981), a famigerada, politicamente incorreta (e divertidíssima) cena do estupro da personagem de Lucélia Santos, eclipsa um dos melhores olhares às farsas rodrigueanas. Perdoa-me por me traíres (1983), alucinação de Nelson sobre as adúlteras da sua infância, também satisfaz. Já Álbum de Família (1981) peca por extrair de uma peça monocórdia tom igualmente desinteressante.
No mesmo período que Chediak, Neville D’Almeida criava alegorias consistentes sobre um texto de A Vida Como Ela É - A Dama do Lotação (1978) - e uma das melhores peças rodrigueanas - Os Sete Gatinhos (1980). Campeões absolutos de bilheteria, devorados pelo público no período áureo do cinema popular brasileiro - e injustamente, hoje, revistos como pornochanchadas -, os filmes de Neville devem ter enchido Nelson de orgulho, pois são ferozes, satíricos e abjetos, diálogo alucinado entre dois artistas nobres.
Inferiores são Beijo no Asfalto, de Bruno Barreto, e Engraçadinha, de Haroldo Marinho Barbosa -, ambos de 1981. Iniciou-se, então, um crescente ostracismo a Nelson, que acabaria ressucitado pela biografia de Ruy Castro, em 1992, e pelo consequente relançamento de sua obra pela Companhia das Letras.
Infelizmente as produções oriundas deste fenômeno, a partir dos anos 90 - com exceção de Vestido de Noiva (2006), dirigido por seu filho, Joffre Rodrigues - alcançaram estágios inacreditáveis de ruindade. São parte infeliz do referido massacre vulgarizante contemporâneo, a que gênios - vivos ou mortos - estão submetidos por suas próprias qualidades.
É bom lembrarmos que Nelson foi também razoavelmente adaptado para o cinema nos anos 60, mas a censura e o moralismo engessaram grande parte das tentativas. Boca de Ouro (1963), de Nelson Pereira dos Santos, e a primeira versão de Bonitinha Mas Ordinária (1963), trouxeram Jece Valadão - casado com a irmã de Nelson, Dulce - em grande forma. A Falecida (1966), de Leon Hirszman, apesar da interpretação de Fernanda Montenegro, padeceu do fato de que o diretor e seus cacoetes cinemanovistas se levaram mais a sério que o autor.
Recomendo a quem deseje "assistir" a Nelson na tela grande, que se prenda à trilogia de realizadores - Jabor, Chediak, Neville -, pois deram sorte de lidarem com material rodrigueano na época mais propícia ao seu reconhecimento. Hoje, em um mundo onde estetas de sentido complexo - Clarice Lispector, Adélia Prado - renascem entre agendas púberes, o verdadeiro e essencial Nelson Rodrigues fica cada vez mais démodé. Tanto quanto o belo, possesso e imperfeito cinema que motivou um dia.
*Andréa Ormond é pesquisadora e ex-colunista da Zingu! Mantém o blog Estranho Encontro.