O Beijo no Asfalto
Direção: Bruno Barreto
Brasil, 1981.
Por João Pires Neto
(Contém spoilers)
Um acontecimento real teria inspirado Nelson Rodrigues a escrever O Beijo no Asfalto: a história de um repórter do jornal O Globo, chamado Pereira Rêgo, que após ser atropelado por um ônibus, percebendo que poderia morrer, pediu um beijo a uma jovem que tentava socorrê-lo.
A trama escrita em 21 dias pelo dramaturgo carioca parte de uma situação semelhante: Arandir, um jovem de bom coração, atende ao último pedido de um desconhecido que agoniza em seus braços, beijando-lhe na boca. Entre a multidão que assiste a cena está o jornalista mau caráter Amado Ribeiro. O fato é distorcido e transformado em escândalo pela imprensa sensacionalista e Arandir é acusado de homossexualismo, tornando-se alvo do preconceito de amigos e vizinhos, perdendo o emprego e posteriormente sendo investigado pela morte do moribundo.
Encomendado por Fernanda Montenegro para a companhia Teatro dos Sete, O Beijo no Asfalto causou furor em julho de 1961, ao ser encenado pela primeira vez (sob a direção de Fernando Torres), quando parte considerável da platéia retirou-se ainda no segundo ato. O polêmico texto de Nelson Rodrigues foi levado aos cinemas dois anos depois por Flávio Tambellini, com Reginaldo Faria, Norma Blum e Jorge Dória no elenco.
No início dos anos 80, uma nova versão cinematográfica resultaria da parceria entre o roteirista Doc Comparato e o diretor mainstream Bruno Barreto. Embora não esbanje muita “vitalidade”, é inquestionável o fato de que a filmografia do cineasta carioca tenha sido construída por meio de produções bem sucedidas comercialmente. Na ocasião de O Beijo no Asfalto, Barreto já trazia no currículo o sucesso absoluto Dona Flor e Seus Dois Maridos, adaptação da obra de Jorge Amado, recorde imbatível de bilheteria que levou mais de 10 milhões de brasileiros aos cinemas em 1976. O Beijo no Asfalto é uma boa exceção à regra que rege a filmografia do cineasta. Méritos distribuídos para o excelente roteiro de Comparato, para o elenco excepcional (Ney Latorraca, Daniel Filho e Oswaldo Loureiro em atuações impecáveis), para a trilha sonora inspirada de Guto Graça Mello, e para não cometermos nenhuma injustiça, para a direção experiente de Bruno Barreto, que constrói um filme sóbrio e sem exageros, apesar do enredo trágico. Merece destaque ainda os ótimos diálogos, adaptados do texto original pelo próprio Nelson Rodrigues.
Apesar da narrativa linear e aparentemente fechada, o filme permite diversas leituras reflexivas. Entre elas, a mais latente é uma crítica feroz à imprensa sensacionalista. O repórter Amado Ribeiro, canalha e desprezível, definido por Nelson Rodrigues como um “cafajeste dionísico”, aqui interpretado de forma surpreendente por Daniel Filho, consegue transformar um ato de misericórdia, o último beijo, num evento de proporções trágicas, destruindo a vida de um homem simples e de bom caráter. A verdade é manipulada de forma preconceituosa e o homossexualismo tratado como algo sujo e até mesmo criminoso. A relação nada sadia entre a imprensa e o estado é representada pela amizade do repórter com o truculento e corrupto delegado Cunha. Não satisfeitos com o estrago na vida do pobre Arandir, a dupla ainda o acusa posteriormente de ser o responsável pelo atropelamento do seu suposto amante. O personagem Amado Ribeiro aparece também em Asfalto Selvagem (romance que ficou conhecido como Engraçadinha), sendo descrito da mesma forma vil. O mais curioso é que Amado não seria apenas um personagem e teria realmente existido. Ele, que seria um companheiro de redação no jornal em que Nelson Rodrigues trabalhava, não se incomodava com o modo como seu “personagem” era representado nos textos. Muito pelo contrário, costumava afirmar que era muito pior do que sua versão fictícia. Mas vale lembrar que a polêmica gerada após a tumultuada estréia da peça obrigou Nelson Rodrigues a se desligar do jornal para qual escrevia na época. Na adaptação cinematográfica, o roteirista Doc Comparato inteligentemente atualiza o texto de Rodrigues, acrescentando a cobertura televisiva sobre o caso de Arandir. São entrevistas de pessoas comuns que opinam sobre o tão falado beijo e que, de certo modo, incrementam o realismo da produção.
Outra possibilidade de leitura crítica mais específica seria acerca da homofobia e das questões fundamentais que orientam as relações humanas, principalmente as familiares. O protagonista Arandir é casado há pouco mais de um ano com a bela e apaixonada Selminha (interpretada por Christiane Torloni). Eles são felizes vivendo numa pequena casa, em um modesto bairro do Rio de Janeiro. Dália (Lídia Brondi), a irmã mais nova de Selminha, mora junto com o casal. A dúvida sobre a homossexualidade do personagem central desperta reações e sentimentos diversos nas duas mulheres. Selminha, que a princípio protege o marido incondicionalmente, começa a questionar seus sentimentos quando é torturada fisicamente pela dupla delegado/repórter, que insistem que o tão famigerado beijo seria um ato homossexual. Dália sai em defesa do cunhado, revelando um amor até então reprimido. Enquanto isso, Aprígio (interpretado por Tarcísio Meira), que sempre demonstrou um sentimento de aversão exagerado pelo genro, indaga Selminha sobre a sua felicidade sexual (insinuando sempre sobre a homossexualidade do protagonista). Dália suspeita que o ciúme desmedido do pai pela filha mais velha possa revelar também um amor excessivo e incestuoso. Entre todos os personagens da trama, o único de caráter indiscutível e de uma ingenuidade até pueril é Arandir, que acredita fielmente no amor da esposa e não percebe as insinuações da cunhada.
Algumas cenas de nudez e uns poucos palavrões podem chocar os espectadores mais puristas, principalmente os mais jovens. Fato totalmente compreensível, já que atualmente a produção nacional deixou de lado o erotismo que foi a grande marca do cinema brasileiro durante muitos anos. Em O Beijo no Asfalto, a atriz Lídia Brondi, com os seus vinte anos, protagoniza dois longos nus frontais. Nenhuma das situações é gratuita. Num dos momentos, Arandir surpreende sem querer a cunhada no banho. Esta sequência se justifica principalmente para o desenvolvimento psicológico do personagem Arandir, já que a sua reação de desejo contraria as acusações que recaem sobre ele. Sua honestidade é também reforçada, como descobrimos pouco depois pelas palavras de Selminha, que afirma que o marido havia lhe contado sobre o acontecido. O segundo nu acontece perto do desfecho, quando Dália se declara para Arandir e tenta seduzi-lo. Mais uma vez o protagonista demonstra seu caráter incorruptível, ignorando a cunhada e afirmando que ama sua mulher. Outra momento mais incômodo é o interrogatório de Selminha, quando, num ato inescrupuloso, o delegado Cunha e o repórter Amado Ribeiro abusam sexualmente da mulher. O jornalista obriga Selminha a tirar a roupa e ameaça queimar seus órgãos sexuais com um charuto. O ato do estupro não é mostrado, mas sugerido em diálogos posteriores entre as duas irmãs.
Um dos melhores momentos do filme é a inesperada reviravolta apresentada no desfecho, quando descobrimos que o sentimento que impedia Aprígio de pronunciar o nome de Arandir e que motivava o ciúme excessivo de Selminha não era uma paixão incestuosa nutrida pela filha, como é insinuado diversas vezes durante o desenrolar da trama. A surpresa, elemento recorrente no universo de Nelson Rodrigues, é que Aprígio na verdade ama o genro. A única redenção para o sofrimento de ambos os homens é a morte de Arandir. A tragédia se concretiza com o assassinato do genro cometido pelo sogro, seguido de um beijo. É interessante o fato que o beijo espontâneo de Arandir no desconhecido é off screen, enquanto o beijo revelador de Aprígio não é só mostrado como é congelado enquanto sobem lentamente os créditos finais.
Um enredo aparentemente simples, mas extremamente rico, que resulta num grande filme e num dos melhores representantes do universo marginal concebido pelo genial Nelson Rodrigues. Como reflexão, O Beijo no Asfalto revela-se ainda atual, como um manifesto contra os preconceitos e a falsidade de uma sociedade hipócrita controlada por uma mídia sem nenhuma ética.