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Especial Nelson Rodrigues no Cinema


O Casamento
Direção: Arnaldo Jabor
Brasil, 1975.

Por Vlademir Lazo Correa

Nelson Rodrigues nem sempre teve sorte com as versões de suas histórias para o cinema. A maioria dessas adaptações apenas arranha a superfície da obra do dramaturgo, muitas vezes se concentrando mais no erótico e no escandaloso do que propriamente em seus aspectos psicológicos.

Arnaldo Jabor nos anos setenta fez duas das mais bem-sucedidas transposições de histórias do Nelson, em adaptações que também estão facilmente entre os melhores filmes do cineasta: Toda Nudez Será Castigada (1972) e O Casamento (1975), ambos disponíveis em DVD na coleção da Versátil dedicada ao cineasta. Foi quando Jabor se encontrou como realizador, depois de suas razoáveis primeiras experiências dentro do movimento do Cinema Novo (do qual viu o bonde andando e pegou carona por pertencer àquela geração).

A obra de Nelson proporcionou ao Jabor a oportunidade dele concretizar com mais eficácia o talento que possuía como cineasta. O Casamento é adaptação de um raro romance do Nelson (que pouquíssimas vezes se dedicou a esse gênero literário) que, como não poderia deixar de ser, engloba a maioria das obsessões e temáticas do escritor: drama adúltero, incesto, perversão, homossexualismo, assassinato, etc.

Jabor não vai tão a fundo na adaptação porque seria quase que inviável transportar tamanho inventário para uma diferente forma de expressão que não a do romance, ainda mais numa arte como o cinema que atinge maior número de pessoas do que a literatura, o que provocaria ainda mais problemas com o moralismo e a censura do que causou o livro original (o romance do Nelson foi uma das raras obras literárias a serem interditadas no país). Ainda assim, Jabor saiu-se muito bem na empreitada, mesmo que seu filme não atinja a grandeza do original.

Por sorte, recentemente tive a oportunidade de ler o livro, que devorei num único fim de semana, podendo depois rever o filme de Jabor para analisá-lo como adaptação cinematográfica. Se já admirava bastante O Casamento, assisti-lo de novo após a leitura do livro não fez com que eu passasse a desgostá-lo.

O que mais senti falta no filme é de um certo humor mórbido beirando o patético que havia em profusão nas páginas do romance, uma malicia maior muito próxima do tragicômico que em película é diluída em favor de uma atmosfera pesada de horror. O romance de modo algum deixa de ser trágico ao nos despertar sorrisos e gargalhadas, porém o filme perde uma faceta que tornava a leitura ainda mais estimulante.

A favor do filme, um excepcional trabalho de encenação por parte do diretor, que se torna ainda mais evidente se comparado com os filmes nacionais de hoje em dia que se amparam numa estética televisiva e rasteira. Um grande exemplo dessa virtude de O Casamento é num dos momentos mais fortes da trama, na orgia no casarão do militar paralítico, pai do personagem homossexual (André Valli) que era surrado na infância por sua condição. O filme conseguiu tornar a cena tão boa ou até melhor do que na obra do Nelson, devido à sua mise-en-scène extraordinária (especialmente quando Glorinha e Antonio Carlos, ao se beijarem, empurram acidentalmente a cadeira de rodas em que está o militar, que vai se precipitar diante do filho repudiado, que o recebe aos gritos e choros).

Em contrapartida, é uma pena ter sido suprimida a sequência seguinte do romance original, em que Glorinha (Adriana Prieto, prematuramente falecida) e sua amiga Maria Inês (Cidinha Millan) transam uma com a outra por ordem de Antonio Carlos (Erico Vidal), antes que ele deflore Glorinha. Outra cena digna de antologia no filme é o encontro fortuito entre Sabino (Paulo Porto), o rico empresário pai de Glorinha, e sua secretária Noêmia (Camila Amado), que o ama, mas que ele despreza. Instante repleto de delírio e loucura.

De todos os personagens transpostos, o mais fraco é o Monsenhor, o padre que no romance escandaliza o pai de Glorinha com tiradas surpreendentes e impagáveis como “o ato sexual é uma mijada!”, mas que no filme é de longe o personagem mais desperdiçado.

São pormenores que não impediram que o filme cumprisse com louvor o impiedoso e demolidor retrato de dissolução da família e do próprio mundo burguês. Como adaptação, Toda Nudez Será Castigada é um trabalho superior; no entanto, O Casamento é tão ou mais bem-sucedido como cinema.




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