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Dossiê João Callegaro

Entrevista com João Callegaro
Parte 2: Profissionalizando-se e As Libertinas

Por Gabriel Carneiro
Fotos de Laís Clemente

Zingu! – Quando se iniciou no cinema profissional?

João Callegaro – Eu fui assistente do Roberto Santos em O Homem Nu. Não sei quando. Data para mim, mesmo hoje, nunca foi algo que dei muito valor.

Z – Como era trabalhar com o Roberto Santos?

JC – Muito bom. Eu acabei não sendo oficialmente assistente de direção porque não quis. Quem me indicou foi o produtor e eu achava uma sacanagem. Era muito bom, porque o Roberto Santos era um cara muito fácil. Conversava com o elenco, com o fotógrafo. Era um cara muito inteligente. Era muito interessante. Conhecia profundamente cinema e fez, a meu ver, um dos melhores filmes do Brasil, que é o episódio dele de As Cariocas, um episódio maravilhoso. Ele era um cara curioso. Eu só discordava dele politicamente, por que ele achava que mais importante que ter uma posição política – que ele tinha -, era fazer cinema. Eu achava que não. Ele fazia filmes até para o Serviço de Informação do governo americano. Não era meu caso, mas comecei a participar de longas com ele, e foi muito simpático. O que eu acho mais interessante, apesar do chato do Paulo José...

Z – Ele era muito chato?

JC – Sei lá... O Roberto conseguiu fazer ele interpretar. Uma coisa curiosa de O Homem Nu era que o Roberto, depois de As Cariocas, pegava elementos da realidade. Por exemplo, tinha uma cena que tinha uma roda de samba, aí ele pegou o Elton Medeiros, e outros dos melhores sambistas do Rio. Eu me lembro que eu tive que ir atrás dos caras, um morava na favela, fui lá na casa da mãe do Elton Medeiros e comi uma puta feijoada. Tinha sambistas da Mangueira. O Roberto tinha essa característica: em qualquer lugar, ele pegava, não figurantes, mas pequenos papéis de gente da realidade. Poucas pessoas faziam isso. Foi uma maravilhosa escola, ele era brilhante. A Hora e a Vez de Augusto Matraga é bom para caramba. Revi nesses dias e é belíssimo.

Z – E o Person? Foi alguma influência para você?

JC – Foi. Eu só briguei com ele. Eu adorava o São Paulo S/A, adorava! Acho um dos filmes mais importantes da época, porque foi o primeiro filme que abordou a burguesia nascente de São Paulo. Os filmes de São Paulo tratavam de que, fora os da Vera Cruz? Temas marginais, de certo sentido. E São Paulo S/A mudou o enfoque disso maravilhosamente. Eu só tinha uma dúvida. Tinha um filme japonês, cujo nome eu não me recordo agora, que a meu ver tinha sido a inspiração para o Person – ele ficou muito bravo; disse: “eu nunca vi um filme japonês na minha vida”. Mentira, eu o tinha visto no cinema. (risos) A maior influência do Person foi essa, eu adorava São Paulo S/A. Um filme brilhante, adoro até hoje. E a postura dele era muito correta. Conhecia muito cinema também.

JC – Você também gostava de Cinema Novo?

Z – Muito. Adorava Cinema Novo. Claro que, para gente, de certa forma, era a Nouvelle Vague francesa e o Cinema Novo. O diferencial era que gostavámos muito de cinema americano e japonês, e os cariocas faziam cinema maravilhosamente bem – cariocas entre aspas, que faziam cinema no Rio, pois nem todos eram cariocas -, mas eram de certa forma muito aproveitadores, muito espertos. Como a Nouvelle Vague estava em voga, eles iam atrás da Cahiers Du Cinema. Nós mantínhamos uma certa liberdade, gostávamos de Welles, de Fuller - que eles não gostavam, não conheciam -, e de cinema japonês - que no Rio não existia. Um dos filmes mais importantes da história do cinema mundial é, a meu ver, Deus e o Diabo na Terra do Sol. Um marco do cinema, um filme muito importante. São Paulo começou a ter um cinema revolucionário com O Bandido da Luz Vermelha, do Rogério. Um filme que é uma quebra total com o Cinema Novo. Tinha mais a ver com os movimentos de contracultura do que qualquer outra coisa.

Z – Você gostava do Khouri?

JC – Não. A essência do Khouri era a seguinte: um filme intimista só poderia ser filmado na Suécia, porque era frio. Ele dizia que o Bergman só fazia os filmes dele porque estava muito frio e ele ficava em casa. Ele tinha uma visão de São Paulo peculiar. Os planos de Noite Vazia são muito bonitos, mas eu não gostava.

Z – Ainda hoje não gosta?

JC – Não. Noite Vazia ainda acho simpático, mas...

Z – E Palácio dos Anjos?

JC – Ele chamava de Palais des anjes. Era uma bosta completa. A única coisa interessante, e ele devia ser meio tarado, era que achava mulheres bonitas.

Z – Depois você fez As Libertinas?

JC - Depois de O Homem Nu, a gente fez As Libertinas, com o Carlão e com o Antonio Lima. Foi uma idéia minha. Naquela época, muitos amigos nossos de esquerda assaltavam bancos para conseguir fundos para um movimento político contra a ditadura. Na mesma época, fizeram um filme chamado Superbeldades, uma tentativa de pornô – porque o pornô era proibido -, com mulheres peladas. Ridículo. Dirigido por Konstantin Tkaczenko. O filme deu uma nota cabeluda, por ser, entre aspas, um pornô que não era pornô. Pensei: nós somos inteligentes, competentes; vamos fazer um filme erótico – não pornô – para ganhar dinheiro. O Carlão sempre foi maluco, e falou: “Porra, legal, vamos fazer dinheiro para fazer os filmes que a gente quer.” Convidei então o Lima para dar um embasamento jornalístico, já que ele era chefe de redação do Jornal da Tarde, que era o melhor jornal do Brasil. A gente tentou fazer um filme erótico, meio pornô, mas não conseguimos, só que o nome era muito bom, As Libertinas, dado, aliás, pelo Antonio Lima. Nessa época, eu fazia comerciais para a DPV, que antigamente era a melhor agência do Brasil. O Saragoça, que era chefe da agência, fez o cartaz, que ficou muito bonito. E um amigo nosso da DPV inventou o slogan, tema do filme, que era: um sexo-filme, de um sexo-diretor, idem-idem. Foi uma brincadeira, que fez com que o filme fosse muito divulgado pelo nome, tema e porque o Lima era chefe de redação do JT. Toda semana saíam matérias nossas em três, quatro jornais. Eu tenho uma pilha de recortes guardados no arquivo sobre As Libertinas. Nós vendemos a metade para um cara que tinha 3, 4 cinemas em São Paulo, incluindo o cine Coral, que era bonito. Ele tinha um cinema na Av. Rio Branco. Na época, tinha a obrigatoriedade do filme nacional. Nosso filme ficou umas 52 semanas em cartaz consecutivamente. Eu fiz uma picaretagem maravilhosa: do lado do cinema Normandie, tinha um posto do INSS com uma fila imensa, aquela sacanagem de sempre, e eu fiz uma foto de como se essa fila estivesse entrando no cinema. Colocaram um anúncio com a foto: Na vigésima semana, o sucesso continua. (risos)

Z – Deu bastante dinheiro?

JC – Deu. Sustentou a gente muito tempo. Mas era uma bosta o filme. O meu era o pior, apesar de o Carlão falar o contrário.

Z – Como você conheceu o Antonio Lima?

JC – Ele freqüentava a Cinemateca, tinha sessões na rua Aurora. Conhecíamo-lo de lá. Ele era crítico de cinema do Jornal da Tarde, junto com o Rogério. Foi através dele que provavelmente conhecemos o Antonio. Nos tornamos próximos, e fiquei tão amigo dele que me permiti convidá-lo para fazer um filme, As Libertinas.

Z – De onde veio a idéia de brincar com o voyeurismo em As Libertinas?


JC – De um filme de sacanagem – sacanagem entre aspas, isso não existia ainda – chamado Sonho da hoteleira. Ele passava no cinema e a história era muito simples: num hotel, as prostitutas alugavam os quartos para fazerem programa, e a hoteleira fez um buraco na parede para as pessoas olharem. Claro, no final a hoteleira também tirava a roupa. A razão foi essa, principalmente, também por um amigo nosso que freqüentava um hotel em que alugava um quarto com um furo na parede para ficar espionando o quarto ao lado. Eu acho que todo filme meio erótico da época tinha um quê de voyeurismo. O espectador não ligava para nada, só queria ver a mulherada tirando a roupa. Hoje em dia passaria na Sessão da Tarde, se fosse bom, o que não era. Não adianta falar que As Libertinas tem coisa boa, porque não tem. Não tinha nada de bom. Aliás, uma atriz minha era assaltante de banco. Ela foi morta pela ditadura, ninguém sabe onde, mas provavelmente na França, e ela queria matar os caras que mataram o Marighella.

Z – Quem era a atriz?

JC – Carmen Monteiro. Ele falava: “vou matar todos os caras que mataram o Marighella”. Daí conseguiram mandar ela para a França e mataram–na lá. Vai sair um livro sobre isso agora, de um jornalismo que eu não conheço. Falei com eles esses dias, ele queria um depoimento para um livro da Cia. das Letras, sobre o Marighella.

Z – E por que foram filmar em Itanhaém?


JC – (risos) A gente não tinha grana. Tinha um cara que eu conheci nas filmagens de O Homem Nu, um produtor de campo, e o contratamos. Tinha um grande requinte, e aí ele pegou um cara, Wilson Monteiro. Nós precisávamos de comida e hospedagem no litoral. Ele descobriu que a Cia. De Ônibus Estatal de São Paulo tinha uma colônia de férias em Itanhaém. Eu conheci a cidade por causa do Pancetti, o pintor. Se o Pancetti morava e pintava lá, então tinha coisa boa. Como tinha comida e hospedagem de graça, filmamos lá. É o único motivo.

Z – E como conseguiram o dinheiro?


JC – São aquelas idiossincrasias do cinema brasileiro. O Antonio Lima era mineiro. No Jornal da Tarde, naquela época, quase todos os jornalista vinham de Minas, a melhor formação de jornalista que tinha. Havia um cara que era dono de um banco pequeno, chamado Banco Mineiro do Oeste. Não sei como, o Lima era amigo do cara. Muitos bancos emprestavam dinheiro para filmar – não era financiamento, era empréstimo. Nós fomos lá, o Lima falou que íamos fazer um filme e que precisávamos de grana. Perguntou se o banqueiro não queria investir na gente, e não sei como, ele quis e deu o dinheiro. Acabou o dinheiro, procuramos um co-produtor, para finalizar o filme e exibir. Um cara que curiosamente tem até uma fundação com o nome dele no Rio, chamava-se Valancy, um francês que era dono do Cine Coral, na Rua Sete de abril, que só exibia filmes europeus, principalmente franceses. A sala exibia os filmes da Paris Filmes. Era um grupo judaico-francês que começou a fazer filmes no Rio, e eles compraram metade de As Libertinas e garantiram a exibição. Por isso ficou 52 semanas. O banco deu grana e a gente pagou. Deu muita grana o filme. Mas foi estranho. Que influência o Antonio Lima tinha com um cara que tinha um banquinho minúsculo?

Z – Quanto tempo de filmagem?


JC – 3, 4 semanas. O Carlão, para variar, foi o que mais demorou. O Carlão é louco, então não seguia o roteiro, ficava disperso. Tanto que o episódio dele é o mais longo. Eu adoro o Carlão, mas é louco. Para ir de um ponto a outro, ele vai, dá a volta, cruza o caminho, para chegar ao outro ponto.

Z – Como era trabalhar com ele?

JC – Era ótimo. Nós montamos uma produtora, a Xanadu Produções Cinematográficas. Depois montei outra produtora, e ele fazia comerciais para mim. Ele é um dos caras mais criativos que eu conheço: ele escreve, dirige, fotografa, faz música. Teve uma formação cultural muito boa, principalmente pela casa dele. O pai editava uma revista chamada Lady, que foi uma precursora da Nova, da Cláudia. Ele ia para o festival de Cannes, para o Oscar. A mãe tocava piano, então ele tinha um bom piano em casa. Tem uma formação cultural muito, muito boa. Curiosamente, nunca fez nada de trabalho específico fora de cinema. Saiu da escola e sempre fez cinema. Eu, por exemplo, trabalhei com computadores, dei aula de natação. O Lima era jornalista, e o Carlão não.

Z – Como era trabalhar com o Antonio Lima?

JC – O Lima era um burocrata, um jornalista burocrata, tanto que era chefe de redação – e era crítico de cinema. Apesar de ser completamente louco – a gente bebia 23 horas por dia -, era o cara que colocava o papel na máquina de escrever e escrevia o roteiro. O episódio dele é muito fraco. Era mais um crítico do que qualquer outra coisa, nem chegava perto de um teórico. O mais velho entre nós, um cara sério. Só trabalhei com ele em As Libertinas e nem acompanhei as filmagens dele. Foi a mais convencional, digamos, porque ele não conhecia fotografia, não conhecia câmera, não conhecia nada. Na época, éramos cineastas porque tínhamos conhecimento de fotografia – meu pai era fotógrafo -, e a gente determinava para o fotógrafo a profundidade de campo, a lente, e ele foi um dos precursores dos cineastas que não entendiam meleca nenhuma de fotografia. Na época, era muito difícil ter um fotógrafo bom. O que fez As Libertinas era o Waldemar Lima, que era fotógrafo de Deus e o Diabo na Terra do Sol.

Z – Por que você não fez o Audácia?

JC – Porque eu me cansei de o Carlão não chegar na hora certa e dos problemas que tivemos com contabilidade. Éramos sócios legalmente, mas o Carlão não ligava a mínima. O Lima enchia a cara e eu detestava contabilidade. Nós contratamos um contador que roubou a gente. Era muita porra-louquice para o meu gosto. Então caí fora. Eu não concordava com aquele tipo de cinema porra-louca, fazer sem roteiro, aqueles delírios do Carlão – eu achava muito bonito, mas não combinava comigo. Tanto que o Audácia é muito ruim.

Z – Como você foi parar no elenco de Ritual dos Sádicos?

JC – Não tenho a menor idéia. Era num debate, uma besteira.

Z – Como era o Mojica dirigindo?

JC – Não sei se tinha formação em história em quadrinhos, mas deve ter feito fotonovela [fez no começo da carreira], então tinha uma noção, realmente sabia o que queria. Tempos depois eu percebi que ele sabia mais do que eu imaginava. O problema é que a produção era péssima, o fotógrafo era péssimo...

Z – O Giorgio Attili?

JC – Desse foi o Attili? Não me lembro. Ele era bom. Era muito amigo nosso, era competente. Depois que foi fazer com uns assistentes do Attili que eram muito ruins.

Z – Você não gosta nem de Ritual dos Sádicos?

João Callegaro balança a cabeça negativamente.

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