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Dossiê João Callegaro

Entrevista com João Callegaro
Parte 4: Cinema Marginal, cinema brasileiro e outros projetos

Por Gabriel Carneiro
Fotos de Laís Clemente

Zingu! – Era importante, para você, fazer cinema popular?

João Callegaro – Sim, sim. Sempre achei que cinema tinha que dar dinheiro, público. Sempre fui contra pegar dinheiro do governo. Eu era radicalmente contra os milicos e me recusava a fazer qualquer coisa com financiamento estatal. O cinema carioca era aquele contra-senso. Todo mundo era de esquerda, mas todo mundo era filho de milico, de diplomata, de não sei o que. Faziam cinema por diletantismo, não por ideal, sem se preocupar com o resto. A gente não, queria fazer cinema que tivesse participação desde o bandido – o bandido da luz vermelha era famoso; a proposta nossa era público, sempre foi. Esse foi o motivo de eu ter saído da sociedade com o Carlão e com o Lima, porque eles não se importavam com isso.

Z – De onde vem a identificação com o chamado Cinema Marginal? Você concorda com isso?

JC – Claro. A gente era contra a estrutura vigente. Marginal, no sentido de ser à margem da sociedade, só isso. Não por causa do filme A Margem. Estávamos fora do mainstream, fora do cinema tradicional, que era a chanchada, que era a Vera Cruz e que, eventualmente, era o Cinema Novo – na época, já consolidado. Nossa idéia era fazer um cinema completamente diferente, era quebrar tudo. Eu era mais ligado ao cinema americano, não tinha nada a ver com o Cinema Novo. Tínhamos uma visão diferente da realidade. Ninguém fez nada ali que lembrasse o Cinema Novo, pelo que eu me lembre. Por coincidência, o Candeias chamou o filme de A Margem. Na minha opinião, o Candeias colocou o nome A Margem por causa de a ação se passar na margem do rio, não por que era marginal.

Z – Você concorda com o rótulo “marginal”?

JC – Não lembro quem inventou isso, acho que foi o [Orlando] Fassoni, mas acho que atrapalhou muito. Ele só saiu da marginalidade, entre aspas, porque depois o Jairo Ferreira escreveu Cinema de Invenção, e começaram a sair artigos na mídia. Mas no começo era muito complicado.

Z – Você gosta dos outros filmes ditos marginais?

JC – Nossa, gosto. Tem filmes brilhantes. O grande filme é o Lilian M., do Carlão. O Carlão tinha filmes brilhantes, até hoje, muito bons. Tinha um pessoal que era mais amigo do que cineasta, como Trevisan, o Sebastião. O Batista veio a fazer coisas boas depois de um tempo. Capovilla, que era maravilhoso, mas...

Z – E das outras produções da Boca, que foram surgindo nos anos 70?

JC – Não vi nada que me agradasse. Eu achei a idéia d’O Homem de Itu boa, bem realizado, parecia cinema italiano.

Z – E do cinema carioca da época, Pós-Cinema Novo? Como Neville...

JC – Neville era uma bosta. Um Khouri pornô. Mas tinha muita gente boa, que veio do Cinema Novo. Grandes filmes. Minha memória sempre foi muito ruim, por isso não lembro de nome de filme. Me perguntavam porque nunca tinha citação em filme meu. Porque eu não lembrava de nada. Excesso de cachaça. A gente era muito louco. O cinema carioca tinha filmes brilhantes. O Padre e a Moça é um filme belíssimo. Em São Paulo que eu não me lembro mais nada depois, fora o Carlão e o Rogério. Que eu me lembre, de marcante, o Batista, muito anos depois, fez filmes interessantes, nada que empolgasse.

Z – Foi logo depois de O Pornógrafo que você largou o cinema e foi para a publicidade?

JC – Foi. Eu não tinha como sobreviver, a censura estava muito atrás de mim. Não sei porque. Um despachante da censura, Coriolano, que ficou amigo da gente, me falou: “Nem faz, que vão podar.”

Z – E aí parou de freqüentar a Boca também?


JC – Parei. Ia de vez em quando para tomar uma cerveja. Aquilo não saía do lugar. (pausa) Cansei... Depois fiz alguns curtas-metragens.

Z – Papagaio.

JC – Que é bonito. Deu problema com a censura também. Era um festival de pipa. Fui lá, porque gostava de pipa. Cheguei lá, no autódromo de Interlagos, e o pessoal começou a empinar papagaio. Apareceram uns caras com umas pipas sofisticadas, gente mal encarada, japoneses velhos. Começaram a empinar as pipas, e elas pareciam águias, com brasão da República, bandeira brasileira. Aquelas pipinhas pequenas e aqueles puta monstros de pipas. Veio uma tempestade. A bandeira brasileira caía, o brasão da república rasgava. Filmei tudo aquilo, e mostrava o contraponto das pipinhas da molecada brincando e das pipas grandes caindo, e os caras frustrados. No fundo, era uma apologia da queda da república. Nossa, deu um rolo aquilo lá. Por isso que eu estou falando, tinha gente da censura que não era burra. Era pós-censura, os remanescentes.

Z – Continua a trabalhar com publicidade?

JC - Depois eu fiz um documentário sobre índios. Eu tinha uma fazendo no Mato Grosso, freqüentava muito lá, conhecia o pessoa de Cuiabá, e m convidaram para dirigir um documentário sobre índios. Fiz muito documentário sobre índio, mas só. Cheguei a trabalhar com campanha política, olha o absurdo, com a bandidagem.

Z – Fez mais um curta, não? Auwe?

JC – Sobre xavantes, muito curioso. Também deu rolo. Fiz há uns 8 anos, em vídeo. Quando apareceu o vídeo, fui um dos primeiros a fazer comercial em vídeo. Gostava da textura do suporte, mais psicodélica, mais agressiva.

Z – Por que ficou tanto tempo sem fazer um curta?

JC – Enjoei. Completamente. A TV Cultura está querendo fazer uma série de filmes sobre a Boca, sobre a Cracolândia e tal. Por que não pegar O Pornógrafo, que é um personagem de lá, e colocar no final da Boca, na decadência? Aí lembrei que o Carlão falou que cinema hoje se faz com financiamento do governo, basicamente um patrocínio do governo. Eu não quero fazer isso. Se for fazer, quero que o filme se pague. O Carlão se permite fazer isso porque sabe que não dá. Não concordo com isso, eu não concordo com o governo. Os filmes feito pelo pessoal da ECA, pelo pessoal da Vila Madalena, são filmes bons, para dar dinheiro. Mesmo o filme que o pessoal não gosta, como Cidade de Deus, é um filme bom, não adianta falar mal. O pessoal mete o pau, para quê? Porque se deu bem? Vai dizer que Pixote era ruim? Não é ruim, não são filmes ruins. Tem filmes muito bons, muito muito bons. Esse cinema de arte-ensaio acabou, infelizmente. No fundo, no fundo, nós profetizamos que daria mais certo Hitchcock que Nouvelle Vague, infelizmente. Ninguém vai ver cinema iraniano, só o Cakoff. Porra, ver um filme iraniano... não dá para ver. É que eu parei de beber. Se estivesse bebendo, ia ver tudo, de uma vez; mas sóbrio não dá.

Z – O que representou o cinema marginal para você?

JC – Eu acho que, sem querer, a gente nunca pensava no cinema marginal. Pensando hoje, acho que foi importante para caramba, foi uma ruptura com tudo. Foi a efervescência do Cinema Marginal que permitiu, por exemplo, que o pessoal da ECA começasse a fazer filmes. Se não, não conseguiriam fazer filmes. O cinema estava completamente parado, os grandes investimentos tinham acabado. O grupo conseguiu fazer filmes para o mercado e que puderam garantir que o cinema continuasse. Se não, teria acabado. Ia direto para o pornô, para o cinema comercial. Esses filmes são uma prova de que o cinema continuou bom, e não adianta falar mal, é uma puta besteira. Tem cada filme bom do pessoal da ECA. Não sei se são da ECA ou não. O Meirelles é de jornalismo ou propaganda, mas tem filmes ótimos. Eu não me lembro por título, mas tinha um montão. Tem um filme que eu recomendo, que é maravilhoso, da Carla Camurati, Copacabana. É um filme nota 10. Brilhante. Aqui em São Paulo, não me lembro, mas tem filmes maravilhosos. Com exceção do Guilherme de Almeida Prado. Um horror aquele cara. Fora isso, tem coisas muito boas. Almeida Prado é muito ruim. Eu briguei com a produtora dele, mulher do João Batista, a Assunção Hernandez. Perguntei como ela produzia aquela merda e ela ficou brava. Lá no Mato Grosso. Uma merda, um comercial de uma hora, sem cliente. É isso aí.


Parte 3



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