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Especial José Agrippino de Paula

PanAmérica, de José Agrippino de Paula

A antilira do Bruxo do Embu
“É o não-herói (não o anti-herói) pós-
moderno literariamente realizado”
Por Madson Hudson Moraes

Imagine a seguinte situação: Max Cavalera, da banda Sepultura, interrompe o show e anuncia a todos uma canção inédita. Os integrantes da banda preparam seus instrumentos, os fãs esperam ansiosos e o baterista dá o tom com as baquetas e imediatamente começam a cantar. A surpresa? Com a voz rouca, Max Cavalera entoa, então, a maravilhosa Ilíada, de Homero, acompanhado pelos acordes e riffs pesados e pela bateria massacrante do Sepultura. Rock pesado com os versos épicos de Homero?

A descrição acima – ilógica e fantasiosa – foi sugestionada por Caetano Veloso ao prefácio da 3ª edição de PanAmérica (1967), livro de José Agrippino de Paula e considerado um marco de transgressão na literatura brasileira. A situação descrita caberia perfeitamente em PanAmérica, que cheira a subversão em todos os sentidos, diga-se de passagem. É um daqueles livros considerados malditos e incompreensíveis pela maioria. Diz-se bastante à boca pequena: ‘Ah, conheço, mas nunca li’. Munido de uma prosa vanguardista elaborada dentro de sua própria mitologia e simbolismo, Agrippino de Paula foi uma espécie de contraventor da linguagem literária com suas facilidades narrativas. Nelson de Oliveira, em um livro de contos que organizou chamado Geração 90 – os transgressores, classifica PanAmérica como um dos livros indispensáveis da ‘biblioteca básica dos transgressores’. Filiado à pop art, movimento artístico surgido na Inglaterra em meados dos anos 1960 com seu auge em Nova York, Agrippino já vinha praticando sua literatura hiperbólica, quase onírica, no seu livro de estréia chamado Lugar Público (1965), em que importara à vida real Galileu Galilei, Pio XII e Napoleão. Prefaciado pelo jornalista Carlos Heitor Cony, que já apontava que ali nascia um novo criador. Por que a obra agrippiniana hoje é um clássico da literatura e contemporânea em suas interpretações?

É inconteste que as abordagens culturais, políticas, sociais e econômicas presentes em PanAmérica continuam tão atuais que seria arriscado vincular a obra à sua época (ditadura militar, guerrilha urbana, mass media). Existem livros que desgarram-se do autor e ganham vida própria, e autores sabem que intervir nesse processo natural de condução, ou melhor, de consagração, seria imprudente. As classificações do livro superabundam: obra contracultural, obra de protesto alegórico, obra gerida por influência beat, obra que ridiculariza a sociedade de consumo com seus fetichismos enrustidos, obra disso e obra daquilo. As definições não param por aí. O curioso é que PanAmérica é tudo isso e mais um pouco: o anticonsumismo e a crítica aos meios de comunicação de massa, motes preconizados pela contracultura; o movimento pop art cuja iconografia era a da televisão, da fotografia, do cinema, dos quadrinhos e que ironizava o bombardeamento da sociedade pelos objetos de consumo, tendo Agrippino como confesso filiado (as revistas sobre o tema estavam em voga e em 1966 a Bienal de São Paulo teve o salão pop art); a escrita quase onírica e automática; o caos e a quebra da linearidade narrativa; um narrador onipresente e personagens sem perfis psicológicos delineados numa epopéia que não busca singularizar e sim pluralizar e identificar as ações de coletividade.

O crítico Mario Schenberg utilizou acertadamente a expressão ‘Epopéia contemporânea do Império Americano’ para avaliar a obra agrippiniana. Resumir ou condensar a narrativa alógica de PanAmérica em poucas palavras é uma tentativa que desvirtua o que a obra apresenta de mais importante: o narrador oculto, sem rosto, sem nome, sem definições físicas ou psicológicas, sem consciência, sem domínio do motor que conduz a própria história e, conseqüentemente, sem domínio de si mesmo como senhor narrativo. Mas é um Eu que necessita reiterar-se a todo instante. Um Eu em demasia que carece reforçar a fragmentação e arquitetura dos capítulos sem parágrafos, cujo enredo vai desenrolando-se como um roteiro cinematográfico sendo filmado. Agrippino rouba da vida real, por assim, dizer, os mitos de Hollywood e os transfere, à sua maneira, para um universo mítico e pessoal. Ao trazer esses mitos para o plano ilógico-absurdo da literatura, Agrippino critica os mecanismos sutis da indústria cultural, sempre pronta a criar seus mitos cotidianos. Ao mesmo tempo, misturados aos elementos da cultura pop, percebe-se que esses mitos, assim como os deuses do Monte Olimpo, são demasiadamente humanos. E quem são esses mitos e ícones da cultura de massa? Marilyn Monroe, Burt Lancaster, Marlon Brando, Tony Curtis, Frank Sinatra, John Wayne e outros espalhados pelas mais de 250 páginas da obra.

PanAmérica começa expondo as estripulias do narrador por Hollywood em meio as gravações de um filme chamado ‘A Bíblia’. Tudo, no livro, é extraordinariamente hiperbólico. Os ‘900.000 judeus’, os ‘50.000 carros que pegam fogo’, os ‘30 helicópteros que conduziam o triângulo de 100 anjos pendurados’, os ‘300.000 arqueiros e os 300.000 mil soldados’. Marilyn Monroe permeia quase todo o livro, sendo um personagem de destaque e o love-story do narrador oculto em PanAmérica. O título, em si, já demonstra o caldeirão onde tudo é formado: o narrador passeia por Hollywood, pelas guerrilhas que proliferaram na América Latina na figura de Che Guevara, faz ganhar vida a Estátua da Liberdade que, por ironia, vai destruindo tudo que vê pela frente, briga com integrantes da Klu Klux Klan e por aí se desenrola a trama inconseqüente. Outra característica é que inexiste um tom intimista ou existencial na narração, prevalecendo um questionamento sobre o coletivo, sobre o todo. O que se pretende afirmar é que juízos eternos ou julgamentos durante a leitura do livro não serão apreciados. Existem cenas em PanAmérica que radicalizam e põem em xeque tudo o que existe de transgressor na atual literatura brasileira. Como aquela cena em que Marilyn Monroe faz sexo com o narrador atrás de uma pilha de latas, enquanto Marlon Brando masturba-se vendo os dois, numa cena de voyeurismo em pleno supermercado. Ou quando o narrador alista-se no exército e faz sexo com outro soldado e, ao ser repreendido, diz: ‘Mas lembrei-me de que o cabo corneteiro havia dito que não existia mais problema de corrupção de soldados, que essa ideia de moral já estava ultrapassada’. Toda essa linguagem em uma ditadura já instalada que tudo proibia.

Ler PanAmérica representa um gesto de radicalidade extrema. É como quebrar algo de vidro e depois ter a pachorra de querer colar os cacos. Bob Dylan tentou exercer uma poesia-prosa experimental influenciado pelos beatniks com seu único livro de ficção, chamado Tarântula, de 1966. Não sabemos se Agrippino chegou a lê-lo ou bebeu naquela fonte. Para sorte da música, Dylan continuou com as estrofes musicais mesmo. E, para nossa sorte, Agrippino criou seu próprio reino e nos ofereceu, gentilmente.



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