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Inventário Grandes Musas da Boca
Agora, todo mês, uma dama do cinema paulista

Sonia Garcia

Por Adilson Marcelino

Quando se fala em musas da Boca, quase nunca é lembrado o nome de Sonia Garcia. O que é uma injustiça, pois essa talentosa atriz atuou em quase duas dezenas de filmes e foi dirigida por cineastas de peso como Clery Cunha, Roberto Mauro, Alfredo Sternheim, Jean Garret e Ozualdo Candeias.

Sonia Garcia nasceu em Campinas/SP, no dia 2 de junho de 1952. A atriz debutou no cinema de forma completamente desglamourizada: uma mulher de subúrbio, grávida, e esposa de um contraventor em Os Desclassificados (1972), de Clery Cunha. No filme ela é Norminha, uma mulher pobre casada com Toninho, personagem do próprio Clery Cunha, que entra em um bando chefiado por um playboy para aplicar um assalto a banco. Norminha implora ao marido para não participar, pois pressente uma tragédia. E é da boca dela que, em embate desesperado para impedir a partida do marido, é proferido no nome do filme, quando ela grita para os comparsas: “animais... desclassificados”.

Primeiro longa-metragem de Clery Cunha, Os Desclassificados é um filme policial vigoroso, sobretudo no cerco final da polícia ao mocó – com diz um dos personagens -, onde o bando está escondido. Depois, Clery Cunha dirigiria outros filmes importantes, como Pensionato de Mulheres e Joelma 23º andar.

Depois de Os Desclassificados, Sonia Garcia atua em Obsessão Maldita, dirigido por Flávio Ribeiro Nogueira, cineasta da Boca que iniciou carreira com mais de cinqüenta anos e dirigiu apenas três filmes: os outros são Nua e Atrevida, o primeiro, em 1972; e Bonecas Diabólicas, o terceiro, em 1975. Em Obsessão Maldita, a atriz é Mônica, operária de uma fábrica que se envolve com um escroque. Ela também atua em Bonecas Diabólicas.

Em 1974, é lançado As Cangaceiras Eróticas, primeira parceria de Sonia Garcia com o cineasta Roberto Mauro, cineasta carioca radicado na Boca, onde realizou inúmeras comédias. Em As Cangaceiras Eróticas, a atriz é a protagonista Del, filha de cangaceiro criada em orfanato depois de ter a família dizimada – só sobram ela e a irmã, Helena Ramos – e que jura vingar a morte do pai. Crescida, Del e suas amigas de orfanato formam um grupo de cangaceiras com o lema de exterminar cangaceiros, não sem antes provarem do dotes sexuais dos marmanjos. É hilária a fita métrica que passa de mão em mão para medir o documento dos coitados, já que todas têm como referência sexual o velho Cacá, um burro que elas deixaram para trás depois que o orfanato é destruído pelo bando de Cornélio Sabiá, o inimigo de Del e de sua irmã Jasmim.

Nesse seu segundo filme, Roberto Mauro faz um tipo de comédia que iria desenvolver nas produções seguintes, com muita mulher despida e diálogos maliciosos e de duplo sentido. E as cangaceiras que reuniu é um time para ninguém botar defeito, todas elas praticamente em seus primeiros filmes, como Sonia Garcia, Helena Ramos, Matilde Mastrangi, Cinira Camargo. Depois desse filme, a atriz voltaria a trabalhar com Roberto Mauro em mais dois títulos, A Praia do Pecado (1978) e Eu Compro Essa Vigem (1979), além de ser a avó que deixa um hotel de herança para novas cangaceiras na continuação A Ilha das Cangaceiras Virgens (1976) - ainda que apareça só em flashbacks de As Cangaceiras Eróticas na narração de sua neta, interpretada por Helena Ramos, que no outro tinha sido sua irmã.

1975 marca o encontro entre Sonia Garcia e dois dos maiores mestres da Boca do Lixo: o cineasta Jean Garret e o produtor David Cardoso. A atriz atua no primeiro filme do diretor, A Ilha do Desejo, trabalho de repercussão que atraiu 700 mil espectadores e que chamou atenção dos olhos da crítica não domesticada, e, claro, dos produtores, para o talento do novo diretor. A Ilha do Desejo foi produzido por David Cardoso, astro desse e de outros filmes do cineasta, que sempre dosou erotismo e suspense com elegância, inteligência e completo domínio da cena, o que fez dele um dos mais talentosos diretores não só da Boca como de todo o cinema brasileiro – ainda que muitos não o reconheçam assim até os dias de hoje. Sonia Garcia está no elenco ao lado de outras deusas como Fátima Antunes, Zaíra Bueno e Helena Ramos.

Amadas e Violentadas (1976) é mais uma parceria entre Garret e David Cardoso, que produz e protagoniza. Mais uma vez Sonia Garcia é escalada e tem participação marcante. O filme é sobre Leandro, um escritor de best-sellers policiais, traumatizado pelo suicídio do pai após assassinar a mãe, e que, quando garoto, via-se traindo o patriarca. O que ocorre é que não consegue ter relações sexuais plenas e acaba assassinando suas amantes. Sonia Garcia é a fotógrafa Trinéia, uma das vítimas do psicopata a bordo de uma peruca crespa e loura. A sequência dos dois é deliciosa e emblemática, com a personagem dizendo frases filosóficas como “no nu, o fotógrafo não vê o sexo, mas o elemento plástico”; ou “não existe atração física entre fotógrafo e modelo, mas a atração pelo fascinante momento de registrar o belo”. Bom, logo em seguida vemos que as coisas não são bem assim e a sedutora Trinéia acaba assinando sua sentença exatamente por não seguir à risca seus dizeres. Amadas e Violentadas é um belíssimo filme.

Depois de atuar na comédia O Artesão de Mulheres (1978), de Antônio Bonacin Thomé, e no policial O Porão das Condenadas ((1979), de Francisco Cavalcanti, Sonia Garcia tem outro encontro marcante, dessa vez com Alfredo Sternheim. Produzido e protagonizado por David Cardoso, Corpo Devasso (1980) foi um filme ousado para a época. Alfredo deu depoimento para o Dicionário de Filmes Brasileiros – Longas-Metragens, de Antonio Leão da Silva Neto, em que diz sobre David: “Ele foi corajoso como produtor e ator. Em plena ditadura militar, autorizou e topou fazer cenas gays, algo inédito. E conseguiu liberar o filme sem cortes”. A atriz, mais uma vez, está em um elenco de deusas: Neide Ribeiro, Patrícia Scalvi, Meire Vieira e Nádia Destro.

Em 1981, Sonia Garcia é escalada novamente por Alfredo Sternheim para Violência na Carne. O filme é sobre uma trupe de teatro que é surpreendida por um trio de assaltantes em uma casa de campo onde iriam ensaiar para uma peça. Na trama ela é Ana, uma atriz lésbica, dona da casa, e que tem um caso com Sandra, personagem de Nádia Destro. Durante o filme, elas protagonizam várias cenas de sexo para esquentar a libido dos arruaceiros e também da platéia do lado de cá da tela.

Ainda nesse início década de 80, Sonia Garcia atua nos dramas Motel, Refúgio do Amor (1980), de Alexandre Sandrini, e Casais Proibidos (1981), de Ubiratan Gonçalves. É protagonista também do episódio A Tia de André, de John Doo, no cult Aqui Tarados (1980), que tem ainda os segmentos A Viúva do Dr. Vidal, de Ody Fraga, e O Pasteleiro, de David Cardoso. A Tia de André, do mítico John Doo, é sobre o encontro entre um adolescente, interpretado por Jefferson R. Pezeta, e Sonia Garcia como a irresistível tia Lídia. Os diálogos são deliciosos, pois o que tia e sobrinho dizem é completamente diferente do que eles pensam, esses últimos de alta temperatura e sacanas. Pensamentos como “que tia gostosa!” e “que tesudinho!” dão uma atmosfera deliciosa, engraçada, e toda particular ao filme. O Pasteleiro é o seguimento de maior sucesso do longa – e é mesmo sensacional – mas os outros dois também não fazem feio, além de termos três deusas em cena: Sônia, Zaíra Bueno e Alvamar Taddei.

É de 1983 uma das mais impressionantes interpretações de Sonia Garcia. A do filme A Freira e a Tortura, dirigida pelo mestre Ozualdo Candeias, produzida por David Cardoso e protagonizada por ele e pela deusa Vera Gimenez. Sonia Garcia é a puta que está encarcerada em um porão de delegacia, ou a piranha, como o delegado de David Cardoso gosta de chamá-la. Baseado na peça O Milagre da Cela, do genial Jorge Andrade, o filme tem a estética característica de Candeias, com uma cenografia marcada por ambientes sórdidos, elenco formado por atores e não-atores, e personagens bestiais. A piranha de Sonia Garcia é ponto alto na carreira da atriz, com uma entrega absoluta para a personagem, que rola nua e esfrega o corpo sujo e suado nos outros detentos, sempre com o rosto maquiado exageradamente e descuidadamente, e exalando uma tristeza profunda sob a postura de lassidão. A Freira e a Tortura é um ótimo e surpreendente filme, que confirma Ozualdo Candeias como um dos maiores cineastas da Boca do Lixo e do cinema brasileiro, com um estilo autoral, particular e inconfundível.

Os últimos filmes de Sonia Garcia, antes de abandonar as telas, são reencontros com duas personalidades importantes em sua trajetória: David Cardoso e Jean Garret.

A atriz está na produção de Cardoso, Caçadas Eróticas (1983), com dois episódios dirigidos por David e um por Claudio Portioli. E é no de Portioli, O Dia da Caça, que ela é a protagonista Juliana. Cansada do namorado, ela atende um de seus insistentes telefonemas para dizer a frase clássica: “não quero mais nada com você e vou dar para o primeiro que encontrar na rua”. E sua saída para tomar uma inocente laranjada acaba sendo o mote para se refugiar no antigo ninho de amor para se entregar a esse primeiro que realmente acabou encontrando. O que ela não sabia é que o antigo amor teria a mesma idéia, e ela acabaria é nos braços de um travesti.

Já com Jean Garret, atua no drama Meu Homem, Meu Amante (1984). No filme ela é Ana, objeto de desejo do protagonista Marcos, interpretado pelo ator e também cineasta Deni Cavalcanti.

Sonia Garcia é uma atriz importante na história da Boca do Lixo, e precisa ser mais reconhecida e comentada.

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Pitaco do produtor

Sonia Garcia é uma grande profissional. Eu não sei por onde ela anda, mas ela faz falta. Era muito competente, chegava no horário, enfim, essas coisas todas que são importantes para um produtor, como também era o caso de outras atrizes, como Matilde Mastrangi, Helena Ramos, Patrícia Scalvi.

Eu gostei muito de trabalhar com ela. Eu praticamente a lancei, pois muitos dos filmes mais importantes de sua carreira ela fez comigo. No Amadas e Violentadas, por exemplo, ela faz uma fotógrafa muito bem, é muita boa aquela sequência com ela, com aquela peruca. Imagina que na época o filme foi terminantemente proibido para menores de 18 anos. Veja só, pensar nisso hoje é até uma piada.

No A Ilha do Desejo, também, ela tem um papel importante e aparece no filme todo. E também no A Freira e a Tortura, em que ela está genial.

A Sonia Garcia tinha uma beleza clássica, que funcionava muito bem. Se não me engano, ela fez uns cinco filmes comigo. Muito bacana se lembrarem dela.

David Cardoso produziu diversos filmes com Sonia Garcia, entre eles A Ilha do Desejo, Amadas e Violentadas, A Freira e a Tortura e Caçadas Eróticas.

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Filmografia

Os Desclassificados (1972), de Clery Cunha;
Obsessão Maldita (1973), de Flávio Ribeiro Nogueira;
As Cangaceiras Eróticas (1974), de Roberto Mauro;
Bonecas Diabólicas (1975), de Flávio Ribeiro Nogueira;
A Ilha do Desejo (1975), de Jean Garret;
Amadas e Violentadas (1976), de Jean Garret;
A Praia do Pecado (1978), de Roberto Mauro;
O Artesão de Mulheres (1978), de Antonio Bonacin Thomé;
O Porão das Condenadas (1979), de Francisco Cavalcanti;
Eu Compro Essa Virgem (1979), de Roberto Mauro;
Motel, Refúgio do Amor (1980), de Alexandre Sandrini;
Corpo Devasso (1980), de Alfredo Sternheim;
Aqui, Tarados! (1980), em episódio de John Dôo;
Casais Proibidos (1981), de Ubiratan Gonçalves;
Violência na Carne (1981), de Alfredo Sternheim;
A Freira e a Tortura (1983), de Ozualdo Candeias;
Caçadas Eróticas (1983), episódio de Claudio Portioli;
Meu Homem, Meu Amante (1984), de Jean Garret.

Fontes
Livros: Dicionário de Filmes Brasileiros – Longa Metragem (Antonio Leão da Silva Neto) e Cinema da Boca – Dicionário de Diretores (Alfredo Sternheim).
Sites: Mulheres do Cinema Brasileiro e IMDb.




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