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Lançamentos
Por Vlademir Lazo Correa


O Estranho que Nós Amamos
Direção: Don Siegel
The Beguiled, EUA, 1971.

No tempo em que era conhecido como um astro de filmes de ação e faroestes, Clint Eastwood se juntou com o seu mentor Don Siegel para a realização desse que é um dos mais estupendos trabalhos no qual o nome do astro esteve envolvido. A dupla já vinha trabalhando junto desde 1968, quando Clint voltara dos faroestes que realizou na Itália com Sergio Leone e fundou na América uma companhia produtora, a Malpaso, para melhor tocar a sua carreira. O plano era passar à direção, o que aconteceu em longo prazo, mas desde o principio o ator soube se juntar com talentos indiscutíveis, no caso o de Don Siegel, que até então era um semi-obscuro diretor de excelentes filmes classe B e cultuado por parte da crítica francesa. Em associação com Eastwood, o cineasta chegou aos sucessos comerciais em larga escala, e, em 1970, os dois se dedicaram a realização dessa obra-prima que é O Estranho Que Nós Amamos.

Na linha de Férias de Amor (Picnic), clássico dos anos 50, narra num curto espaço de tempo profundas transformações que um estranho causa na vida de pessoas regradas e ordeiras. Só que os anos setenta permitiram que o filme de Siegel contivesse ousadias que jamais seriam abordadas com o mesmo modo na época de Férias de Amor. O que seria praticamente inimaginável, acaba resultando num choque bem mais intenso, que se acentua ao situar a narrativa em uma das eras mais românticas da história americana, a época do velho oeste e de valores de moral e ética entre damas e cavalheiros, que vem a calhar em ser também um dos períodos mais trágicos dos Estados Unidos, o da guerra civil – que, por cinco anos, colocou em conflito os soldados do Norte contra a população do Sul, uma batalha longa que dividiu uma nação e abalou a confraternização entre os norte-americanos.

É nesse cenário beligerante que adentramos no filme, iniciando-se com ecos de uma película de guerra, mas logo dirige o seu foco em um colégio para garotas do Sul, em que diretora e estudantes abrigam um soldado (Clint Eastwood) do Norte ferido gravemente em combate. Paira entre as mulheres a incerteza de que se deveriam entregar o soldado inimigo para o exército sulista, ou se cuidam dele para que, só depois que suas condições se restabeleçam, elas decidam que atitude tomar. Enquanto se recupera e sua saúde melhora, o estranho, muito simpático, mexe com a cabeça de todas as nem tão indefesas moradoras do local. Por causa da guerra, ele não via mulheres há muito tempo, enquanto que a simples imagem do soldado destoa em relação ao ambiente, a começar pelo fato de que ele se torna o único homem em meio a uma casa composta só de mulheres. Um clima bastante tenso se estabelece no seminário, carregado de receios e indecisões. No rosto de todas as mulheres da casa é nítida a sensação incomum que uma tal presença masculina causa naquele ambiente, em especial na diretora Farnsworth (Geraldine Page), baluarte dos códigos rígidos e da severa disciplina religiosa na escola, além da professora Edwina (Elizabeth Hartman, atriz de feições bem melancólicas, e que se suicidaria com quarenta e poucos anos de idade), que tem por hábito desconfiar das intenções de todos os homens, e a mais atirada das alunas, Carol (Jo Ann Harris), adolescente dissimulada e cheia de falsidade e que costuma ser sinônimo de encrenca, quase sempre desencadeando consequências desagradáveis quando intervém em cena.

As tais mulheres desejam, mentem, namoram e manipulam as vontades do protagonista, conseqüência dos hábitos modorrentos e castradores que a moral religiosa infligiu nelas, e então elas passam por cima de toda ética que possuíam, ainda que sempre utilizando como respaldo a máscara da moral do nome de Deus. Os papéis se invertem, de conquistador o soldado passa a seduzido e enganado (como sugere o titulo original, The Beguiled). Um prisioneiro dos mecanismos hipócritas da vaidade e das intrigas das enclausuradas donzelas, logo ele que havia escapado dos exércitos inimigos nos campos de batalha. Explodem sentimentos reprimidos de inveja, ciúme e rancor. Até mesmo a menor e mais inocente das jovens (uma criança de doze anos) tem o seu instante de perversidade. A menina era a que havia encontrado o soldado no início do filme, numa árvore próxima ao internato enquanto colhia cogumelos. Uma cena inesquecível: o soldado ferido, logo que recebe a ajuda da menina, em estado de semi-consciência, ao saber da idade dela, dá-lhe um beijo na boca depois de dizer: “Então já tem idade para ser beijada”. A menina é a que mais se importa com o soldado durante o filme inteiro, só que, no final, magoada com um acesso de fúria dele, também contribui com a sua condenação. Ela o salvou, ela mesma o liquidou, depois de eventos aterrorizantes dignos de um filme de horror que incluem mutilações e trapaças inventadas para torná-lo vulnerável e garantir sua permanência e subordinação naquele enclausuramento.

Ainda assim, partindo de um viés feminino, não é seguro afirmar que o soldado encarnado por Clint Eastwood tenha sido vítima de uma canalhice imerecida, visto que ele foi completamente responsável por muitos dos seus atos numa ciranda em que a maioria jogou sujo, com a sua desonestidade masculina ao dar confiança à expectativa de mais de uma das mulheres e abusar da hospitalidade que lhe foi oferecida no lugar. O que ocorre é uma disputa pelo poder na residência, um confronto entre os sexos, o masculino em menor número representado por um único indivíduo, em um duelo massacrante com a maioria esmagadora das mulheres. Antes seu magnetismo quase animal era uma arma a seu favor, agora ele está entregue e acuado como um bicho indefeso em pleno território adversário.

O Estranho que Nós Amamos não é tão coberto de reconhecimento e popularidade como outros filmes de Clint Eastwood, mas é um thriller psicológico que não falha: praticamente todas as pessoas que conheço que o assistiram o têm em altíssima conta e não o esquecerão tão cedo. É um filme por demais enervante para não surpreender o espectador, e sua posição relativamente marginalizada só se explica por ser completamente diferente do que Clint Eastwood fazia na época e, sobretudo, por mexer em um vespeiro que o torna politicamente incorreto em demasia - por apresentar reações violentas e nada éticas entre os dois sexos; e em como as circunstâncias podem gerar atitudes que por causa do bom senso social a maioria se envergonha de assumir. Ao final, é praticamente impossível não estar com o queixo caído e o estômago embrulhado quando os créditos de encerramento invadem a tela.



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