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Ultra-realizando-se

Por Filipe Chamy

A verdade é esta: vivemos em uma era em que o espectador médio não quer imaginar, atar as pontas. Quer tudo feito, pronto, entregue. O que isso representa para o cinema? Filmes cada vez mais preguiçosos, que evitam os “espaços vazios” em nome de uma realidade barroca, forjada por artificialismos cômodos - para os realizadores e para o público.

Apesar de, neste início do século XXI, termos acesso a praticamente todo o acervo conservado da realização humana nos mais díspares campos de atuação, o imediatismo cada vez mais se insinua vencedor na guerra da preferência; difícil achar quem veja filmes antigos, por exemplo, aquele velho problema já discutido. O que se quer? Emoções rápidas, fáceis, pensar o menos possível (e, se possível, nem pensar). O cinema vem se tornando cada vez mais, em círculos assombrosamente maiores e mais constantes, uma diversão fugaz e um passatempo ligeiro. Então nada mais natural que querer ver algo de fácil assimilação e sem complexidade, durante as poucas horas de projeção de um filme na sala escura do cinema (para depois se esquecer completamente aquilo a que se assistiu).

O principal fenômeno decorrente desse quadro é uma assustadora descartabilidade cinematográfica, o que ocorre particularmente com o recente cinema de entretenimento norte-americano; seus espectadores querem, mais do que nunca, ultra-realismo para ocupar seus sentidos e evitar raciocínio ou perda de tempo estudando a obra (ou mesmo se importando com ela). Daí ao problema dos efeitos especiais é um pulo: a fantasia morre sob a pasteurização da criatividade; a ultra-realidade não abre concessões a idealizações ficcionais, e seus desdobramentos devem ser verossímeis e críveis. Insinuações e representações estão fora do jogo: o comando é o da semelhança total com a vida, mesmo que estejamos falando de algo que não existe; o que diria algum espectador contemporâneo de Alphaville, de Jean-Luc Godard, constatando horrorizado que a atmosfera e as armas de outro planeta são rigorosamente iguais às da França sessentista? Sábio foi Godard, e seu colega Truffaut em Fahrenheit 451, quando entenderam que a modernização dos conceitos é menos uma adequação total aos planos concretos da realidade que uma estilização conforme o objetivo do trabalho. A ficção científica, nos dois casos, é atual ontem, hoje e amanhã, pois baseada em uma realidade física mas não inventada; decorrente, é certo, de uma modificação planejada, mas sem o aparato fabricado dos efeitos especiais, que viabilizam a construção total de um mundo diferente mas que por isso mesmo lhe tiram o encanto e a magia (o cinema virando registro, mesmo, de uma alternatividade que perverteu).

Além de tudo, essa obsessão compulsiva por realidade excessiva e efeitos especiais “de monta” beira o ridículo quando a tecnologia é ultrapassada em anos futuros; pegue-se de exemplo as hoje odiosas (e terríveis) backprojections, recurso utilizado à exaustão principalmente (mas não só) na Hollywood clássica. Hoje é quase impossível ver um filme como o hitchcockiano Correspondente estrangeiro (que não tem lá tantas qualidades marcantes que o eximam de certas irritações técnicas) sem se aborrecer ou mesmo rir das malfadadas projeções, defeito que em outros filmes pode ser exemplificado por montagens absurdas, maquetes ineficientes, trucagens ingênuas. Os efeitos especiais são uma arma ilusória, que mascara a falta de competência com os efeitos puramente visuais de um filme. E, como se não bastasse, tanta tecnologia só tem graça em uma sala de projeção; o filme perde sua discutível “essência” visto em casa, por exemplo. Os efeitos especiais se perdem no tempo e na análise. O ultra-realismo quer acabar com a atemporalidade do cinema.




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