html> Revista Zingu! - arquivo. Novo endereço: www.revistazingu.net
Dossiê André Klotzel

Entrevista com André Klotzel
Parte 2: A Marvada Carne

Entrevista e fotos por Gabriel Carneiro



Zingu! – Como surgiu a Superfilmes?

André Klotzel – Tinha saído da ECA havia algum tempo, e já estava com meu projeto de longa, A Marvada Carne. Tinha inscrito-o na Embrafilme, num concurso. Nesse tempo, era muito amigo do Pedro Farkas. Eu já queria montar uma produtora, uma iniciativa independente, para poder fazer longa. O Pedro estava com um equipamento que precisava sair da casa da mãe dele, o Thomas tinha deixado para ele meio como herança. Tinha moviola, câmera 16 mm. Tinha meio que transferido a guarda para o Pedro, que não sabia o que fazer. A mãe queria que ele tirasse da casa, pois ocupava espaço. Propus a ele que montássemos uma produtora. Ele achou legal a idéia. Éramos muito amigos do Zé Bob [José Roberto Eliezer], e do Ricardo Dias. Pouco depois entrou a Zita [Carvalhosa], e fizemos a Superfilmes. Logo depois que inauguramos, foi aprovado A Marvada Carne, na Embrafilme. O longa foi produzido pela Tatu Filmes, que ficava a um quarteirão de distância, em frente ao Empanados, na Vila Madalena. A Superfilmes foi produtora associada da Tatu Filmes em A Marvada Carne.

Z – Essa era o cinema da Vila Madalena?

AK – Era. A Barca Filmes foi lá perto, logo em seguida. A Tatu era composta pelo Chico Botelho, Walter Rogério, Mário Masetti, Adrian Cooper, Alain Fresnot, Cláudio Kahns e Wagner Carvalho. A Marvada Carne foi o segundo longa que ele produziram – o primeiro foi Janete, do Chico Botelho, em que fui assistente de direção.

Z – O Wilson Barros freqüentava lá?

AK – O Wilson freqüentava, era sócio da Barca Filmes. Lá eram dez sócios, era uma loucura. [José Roberto] Sadek, Wilson Barros, Zé Bob, D’Ávila, Renato Neiva... Sei lá quem mais, não vou me lembrar de todos. A Barca fez curtas, nunca chegou realmente a produzir longas. O Wilson fez o longa dele pela Superfilmes. O ano em que estava lançando A Marvada Carne em Gramado foi o ano em que produzi Anjos da Noite.

Z – Como surgiu A Marvada Carne?

AK- A idéia surgiu quando fui fazer Curumim. Fazia produção no filme, e tinha que uma faixa que precisava ser pintada. O cara que ia fazer era de Itu e ficava contando um monte de história. Na primeira conversa, já havia percebido como ele contava história caipiras, e que daria um belo filme. Ninguém tinha feito, só o [Amacio] Mazzaropi. Fiquei com aquilo na cabeça. Minha primeira idéia era um cara que tinha ‘nomadismo’, não conseguia parar no mesmo lugar. Isso deve ter sido 1977. Até fiquei meio assim, o Guilherme Lisboa até falou que não tinha nada a ver. Quando surgiu Na Estrada da Vida, do Nelson Pereira, ele sabia dessa minha idéia de fazer um filme caipira. O Guilherme me explicou que não tinha nada a ver, que eles tiveram a idéia indo de Rio a São Paulo, passando pelo Vale do Paraíba. Eles conheceram o empresário do Milionário e José Rico, e que era uma coisa bem diferente. Para A Marvada Carne, queria um filme caipira, não sertanejo. Tem uma distinção aí. O sertanejo vem da indústria cultural.

Z – Você vê os filmes do Oswaldo de Oliveira como sertanejos, e não caipiras, como Sertão em Festa?

AK - O Oswaldo de Oliveira sabe quem foi? O cara que me chamava de ‘inútil’. (risos) Ele era diretor de fotografia e judiava de mim quando entrei na Boca. Depois ele passou a me adorar, o Carcaça. Acho que os filmes dele são mais sertanejos. A música tem uma delimitação clara. Tonico e Tinoco, por exemplo. A música mais industrializada, com guitarra, mais misturada com rock, é considerada sertaneja. Nem sei se hoje em dia tem essa divisão. Em todo caso, Milionário e José Rico têm uma distinção bem clara. Assim como Na Estrada da Vida e A Marvada Carne. Tem a coisa do interior paulista, mas a semelhança vai até aí. Baseado nessa idéia antiga, saí para pesquisar. Fui na biblioteca do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), da USP, e perguntei o que tinha de coisa caipira. Me falaram do Cornélio Pires. O rapaz falou que tinha, inclusive, um livro anotado pelo Mário de Andrade. Era da coleção do Mário, cheio de anotações, e o rapaz da biblioteca me deixou xerocar. Quando li aquilo, falei: ‘é isso!’ Cornélio Pires é o lance. Aquele era o tom do filme. O Cornélio tinha escrito alguns livros, uma espécie de comediante dos anos 20, considerado um pré-modernista, advogado – formado em direito pela São Francisco. Ele era o cara do caipirismo. (risos) O Cornélio Pires tem um pouco a ver com essa gênese do Mazzaropi. Eu quase fui assistente de direção num filme dele, mas o filme foi sendo adiado, aí fui fazer outra coisa. Não consegui ser assistente do Pio Zamuner, que era o diretor dos filmes do Mazza na época. Eu adorava o Pio, ele sempre me dava muito apoio. Foi nas mesmas raízes do Jeca do Mazzaropi que surgiu A Marvada Carne. A busca do humor popular, caipira.

Z – Mas você não acha A Marvada Carne mais debochado?

AK – Quando falo isso, quero dizer que o humor surgiu na mesma raiz. A piada caipira. A forma de fazer comédia do Mazzaropi vem do circo, do rádio. O filme em si, A Marvada Carne, não tem nada a ver com Mazzaropi. É um galho num tronco semelhante. Mas misturado com aquela outra cultura que eu tinha, que era do Cinema Novo, do Paulo Emílio, do cinema paulista que estava surgindo.

Z – Você acha que o deboche que está presente nos seus filmes vem do clima dos anos 80, ou é uma coisa que esteve sempre presente para você?

AK – Tenho até dificuldade de reconhecer isso. Isso pode ser mais claro para quem olha de fora. Eu nem achava que era deboche. Talvez seja deboche mesmo, eu não sei. Pode ser uma coisa até pessoal minha, algo que extravase para os filmes involuntariamente. Não é essa a intenção.

Z – È algo que dá para ver mais claramente no Memórias Póstumas, pois vem do personagem...

AK – A escolha talvez vá mais nesse sentido. Acaba me caindo uma escolha humorística, de uma forma ou de outra. Até tento fazer um filme sério, mas acaba indo para o lado cômico. Isso é meio recorrente, mas é involuntário.

Z – Porque a carne é o objeto de desejo em A Marvada Carne?

AK – Porque, eu não sei. Sei como surgiu a idéia. Estava tentando escrever o roteiro, tinha lido de tudo que era sobre caipira, li desde Cornélio Pires até livros de sociologia. E peguei Os Parceiros do Rio Bonito, do Antonio Cândido. Num dos apêndices, ele fala sobre a fome psicológica, que em determinadas regiões, na cultura de subsistência – seja no Brasil, seja na Europa -, em lugares pequenos, não passam fome, são bem alimentados, mas têm desejo por determinados alimentos que são inviáveis de conseguirem nesse lugar - o que gera essa característica psicológica, que é quase fome. Como o trigo; às vezes o cara só tem pão de milho. Não que tenham falta de pão, ou de farinha, têm falta de trigo. Outro é carne. Às vezes, até tem vaca, mas serve para tirar leite, para puxar arado. Também pode ser que não tenha gente para consumir um boi inteiro. Mata uma galinha, mata um porco, mas um boi não. E fica esse desejo. Um cara que quer comer carne, carne de boi. Dá uma ótima história! Assim que surgiu. Foi o Antonio Candido que escreveu isso.

Z – Como chegou ao Adilson Barros?


AK – O Adilson tinha sido ator na peça Na Carreira do Divino. Era uma peça que eu não conhecia, do Carlos Alberto Soffredini, e que foi bastante importante, anterior ao A Marvada Carne. Não sabia nem que existia a peça. Quando o roteiro foi aprovado pela Embrafilme, senti necessidade de reescrevê-lo. Falei com algumas pessoas e todo mundo me aconselhava o Soffredini, que tinha essa coisa do caipira. Mas eu, como acabei lendo o texto da peça, achava um pouco sociológico demais, queria outra coisa. Tive uma resistência muito grande. De qualquer forma, fui falar com o Soffredini, ele era o cara que tinha o dialeto do caipira, e o chamei para escrever o roteiro comigo. Isso foi em 1983. Quis pegar o lado poético, o lirismo do caipira, diferentemente do sociológico da peça dele. Foi um pouco difícil, mas fizemos. Aí surgiu a história de quem seria o ator. Não queria o Adilson, porque tinha medo de ficar muito parecido com Na Carreira do Divino. Eu queria um frescor, que não fosse contaminado pelas idéias pré-concebidas. Tinha medo que se perdesse a originalidade, se as pessoas já estivessem muito conectadas a uma representação solidificada do caipira. Todo mundo me falava do Adilson, mas não queria mais uma pessoa da peça. Chamei outros atores, fiz testes, e aceitei fazer um com o Adilson. Não tinha jeito (risos), o Adilson era muito bom, era ótimo, e tinha que ser ele mesmo. Fiquei preocupado com isso, como muito receio. Também pelo fato de que, como havia um romance entre a Carula e o Quim, ele deveria ter algo de galã, e que não era o Adilson. Mas acabei optando pelo Adilson e não podia ter feito coisa melhor.

Z – E a Fernanda Torres?

AK – A Fernanda não foi a primeira opção. Quem seria Carula era outra atriz, que prefiro não dizer o nome. Conheci a Fernanda na casa do Walter Lima Jr., pois ela tinha sido atriz de Inocência, e fomos junto à estréia do filme. Como perdi a atriz que havia escolhido, não sabia quem e surgiu a idéia da Fernanda – não lembro quem sugeriu. Achei que poderia ser legal, mas fiquei receoso, porque não tinha nem um grande motivo para chamá-la – só havia feito um filme, não era popular, não era grande atriz ainda. Dei o roteiro para ela ler, e no dia seguinte ela já havia entendido tudo da personagem: o caráter, a personalidade, os trejeitos, tudo. Falei: ‘é ela’! (risos)

Z – E o Dionísio Azevedo e a Geny Prado?

AK – Eles representam o caipira. A Geny é o Mazzaropi dentro de A Marvada Carne, porque ela é sua mulher em todos os seus filmes. E o Dionísio também tem essa tradição. Juntei os dois, com gente como a Fernanda e a Regina Casé, que não tinham nada disso, assim como eu. O Adilson, nascido em Sorocaba, sabia fazer todas as coisas de caipira, como ralar mandioca, colher milho, sabia tudo. Era nosso acessor de caipira para a filmagem.

Z – Como era fazer filme pela Embrafilme?

AK – A Embrafilme em si era um assunto ultra-complexo, cheio de situações e variáveis. Era muito difícil, pois era uma empresa que abarcava todo mundo – todos precisavam dela. O cinema carioca, o Cinema Novo de base, estava todo concentrado nela, que ficava no Rio de Janeiro. Eles, então, tinham muito mais possibilidades e mais fácil acesso. O cinema paulista batalhava para conseguir espaço de financiamento na Embrafilme – a única forma na época. Estrear em cinema não é uma coisa fácil, porque a arte é cara, e demanda grande esforço. Um estreante em cinema, paulista, era muito complicado de conseguir financiamento. Era complicado para lançar, distribuir. Nós formamos um grupo, especialmente os saídos da ECA, de cinema paulista. O cinema paulista, em certo sentido, era um grupo. Nós saímos da ECA e fomos montar produtoras, e assim conseguimos alguma possibilidade política de financiamento dos filmes.

Z – Como foi a sensação de ganhar em Gramado?

AK – Foi ótimo, porque foi um filme muito penoso, não tínhamos dinheiro – acabou antes de terminarmos a filmagem; tivemos que pedir reajuste -, não tinha como finalizar... Dentro da Embrafilme, o filme não era bem recebido. Por ser um filme caipira, era visto com maus olhos. Mas quando o filme caipira começou a ganhar Gramado e ir para Cannes, aí mudou a história. Tiveram que ficar quietos e aceitar a coisa. (risos)

Z – A vitória em Gramado ajudou de alguma forma na sua carreira?

AK – Claro que ajudou. Deu reconhecimento. O filme começa a ter um espaço próprio, uma importância para a crítica, que é uma importância inegável mesmo. O filme foi um sucesso de público depois, mas a crítica, de cara, valorizou bastante o filme, e fez com que eu o conseguisse lançar razoavelmente bem.

Z – O que você acha de Gramado hoje?

AK – Nesses últimos anos, não tenho acompanhado o festival, mas parece que está bastante ladeado. Mas isso vai e vem em Gramado. Teve época que era ibero-americano - achamos que ia acabar na época do Collor, não tinha filme brasileiro. Depois se recuperou. Parece que entrou de novo numa certa decadência. Espero que se recupere. Tem uma importância bastante grande.


Parte 1 // Parte 3



<< Capa