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Especial Jovem Cinema Paulista dos anos 80

Suzana Amaral

A Hora da Estrela
Direção: Suzana Amaral
Brasil, 1985.

Por Filipe Chamy

Todos já estão mais que familiarizados com o romance de Clarice Lispector, figura facilmente encontrável nas listas de livros obrigatórios para vestibular, por exemplo.

Mas não é dessa obra que se trata este texto, é bom esclarecer. O filme da hoje septuagenária Suzana Amaral é uma bela produção cinematográfica e merece respeito pelo que é, ou seja, um delicado trabalho que não tem no cerne o duvidoso mérito de ser uma bem sucedida adaptação literária.

A bem da verdade, não cabe aqui falar da discussão tão bem sistematizada por François Truffaut, sobre a fidelidade ao espírito ou à letra da obra original. Não se exige isso de um filme, porque se o que se deseja é o livro sem mudanças, que se leia o livro sem mudanças. O filme deve conseguir se expressar com independência, e também deve ser livre para dizer o que quiser, até o que vá contra sua base de adaptação.

E o filme de Suzana Amaral consegue ultrapassar esse preconceito já tão enraizado no inconsciente coletivo do preconceituoso público freqüentador do cinema popular. Porque possui todos os ingredientes capazes de satisfazer aos seus espectadores, apoiado numa narrativa disfarçada de clássica: estamos diante de um episódico relato na vida da humilde Macabéa (Marcélia Cartaxo, dona da verdade da personagem), nordestina de pouca beleza e muita ingenuidade. Macabéa, personagem que não se encaixa na sociedade, não é revoltada e nem justiceira; é conformada, batalhadora nas suas pequenas lutas cotidianas, esforçada para agradar ao próximo. Mas não agrada. No mundo bruto e insensível da industrialização apressada das grandes metrópoles (São Paulo, claro), não há muito espaço para essas pessoas que andam a passo lento. Elas sempre são deixadas para trás.

A hora da estrela tem um tom familiar, de construção caseira, que antes de chocar pela rudeza anima pela espontaneidade. Não é um filme mal feito. Trata-se de um método de direção simples e incrivelmente eficaz. É algo como um filme de Hawks, que parece comum na forma, mas é bem estruturado e também é sagaz ao permitir diversos níveis de leitura e acompanhamento: quem quiser se divertir, divertir-se-á; quem quiser refletir, refletirá; quem quiser uma peça de boa linguagem cinematográfica, assim o terá. Pois A hora da estrela é bem dirigido nesse sentido. Com planos simples, closes normais e seqüência habitual, consegue conquistar pela honestidade da narrativa. Assim como Macabéa, o filme é cheio de boas intenções. E é bonito, também, dessa beleza que ninguém enxerga em Macabéa: a beleza do caráter e da falta de malícia. Suzana Amaral não quer doutrinar ninguém, convencer ninguém, chocar ninguém, acusar ninguém. Quer emocionar, talvez, e trabalha para isso, enfrentando a difícil tarefa de adaptar um romance que, por sua autora e importância, já instiga mil olhares inquisidores sobre quem se dispõe a alterar uma vírgula que seja. Mas cinema é, sobretudo, imagem, som, quadros que se sucedem como música, não uma obra literária. Se alguém vê A hora da estrela esperando uma peça de teatro, um amontoado de diálogos decorados transcritos literalmente do livro e recitados mecanicamente com a intenção de “traduzir” pictoricamente Clarice Lispector, bem, não é culpa da versão - vejam só - filmada do romance!

No fundo, essa incompreensão é também metalingüística, pois Macabéa sofre do mesmo mal. O problema é aceitar os outros, sempre, e qual diálogo pode se estabelecer se um sujeito chamado Olímpico zomba de uma mulher chamada Macabéa? Não dá para estabelecer contato se nos colocamos acima dos outros. A hora da estrela é uma pequena tentativa de mostrar que as pessoas erram, mas sem execrá-las por isso.

Suzana Amaral tinha pouco mais de 50 anos quando estreou na direção de filmes, com esse A Hora da Estrela. Faria a inda Uma Vida em Segredo (2001) e Hotel Atlântico (2009), recém-lançado nos cinemas brasileiros.



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