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Clássicos de Prestígio

Por Gabriel Carneiro

Vinhas da Ira
Direção: John Ford
The Grapes of Wrath, EUA, 1940.

John Ford é a maior referência do cinema clássico que hoje se tem. Talvez por ser considerado um autor, desde que a Cahiers du Cinema começou com essa história, mesmo que nunca o tenham apontado como tal, hoje isso parece ser um consenso. Ford foi o maior nome do cinema norte-americano da época, fato comprovado pela recém criada Academia de Cinema, a A.M.P.A.S, que o premiou 4 vezes com o prêmio de direção (1935, 1940, 1941 e 1952) – Vinhas da Ira, entre eles. O mestre não só protagonizou diversos dos melhores momentos do cinema mundial, como também diversas histórias inacreditáveis sobre sua pessoa – algumas excepcionais, como as referentes a Ingmar Bergman e a Orson Welles, de quem foi grande influência.

O cineasta era alguém notório: nunca preso a estúdios, procurava sempre filmar em externas para evitar a perturbação do produtor, e filmava sempre planos essenciais, para que este não alterasse sua montagem original. Outra coisa que Ford evitava eram ensaios, é dito que diversas cenas de Vinhas da Ira foram rodadas uma única vez frente às câmeras, sem ensaio, inclusive as mais emblemáticas como o discurso final da mãe e a tocante conversa entre ela e seu filho. Talvez grande parte de sua magnitude venha disso, o homem era capaz de construir as mais belas histórias e seqüências numa única tomada. Era o domínio da técnica, sua exploração e transformação.

Vinhas da Ira, baseado no romance John Steinbeck, publicado em 1938, era uma obra política, feita numa época em que os americanos ainda sofriam brutalmente com os efeitos da crise de 29. O ano de 1940 era apenas o recomeço do novo enriquecimento vindo da Segunda Guerra, o ano perfeito para John Ford fazer o filme. As seqüelas ainda estavam presentes para garantir a instantaniedade, porém a prosperidade por vir abrandava um clima de grande crítica ao governo, assim não era mais algo político esquerdista, e sim uma obra contemporânea apolítica. De fato, John Ford sempre acreditou na grandeza do homem e que ele fez a América, sendo assim colocar um protagonista que agride a imagem da sociedade é plausível, pois esse homem está construindo uma nova sociedade, a que luta pelos seus direitos e que não aceita quieto seu destino. E é como grande Keynesianista que coloca o único bom abrigo como sendo do governo, Ford creia que o mundo melhor viria, e que o mito do homem venceria mais uma vez. Pois mesmo com a tragédia completa do filme, seu final, o discurso da mãe é um grito de esperança.

O filme delineia aquilo o que viria a ser o american way of life, a busca do sonho americano, de uma vida estável, em que conseguissem viver sem faltas. Com o Crack da Bolsa, famílias viam-se desesperadas, sem trabalho, sem comida, sem terras. A terra de oportunidade já não tinha mais oportunidades, e ascensão econômica da década de 20, com um crescente consumismo chocou-se com a miséria. Na tentativa de conseguir comer, de sobreviver é que saem de Oklahoma, num caminhão velho, carregado de coisas e pessoas em direção à “Sunny Califórnia”, a ilusão de um mundo melhor cheio de empregos com bom salário; a teórica chance de ter uma melhor condição de vida. Uma das coisas mais fascinantes é ver a fala do avô, dizendo que quando chegasse na Califórnia pegaria as uvas (vinhas) e espremeria na sua boca e no seu rosto, beberia o seu suco; pegaria as laranjas e as espremeriam, se lambuzaria com elas. Pouco depois, vemos esse mesmo homem relutando a ir, a terra que deixariam para trás fora por ele conseguida há mais de 50 anos, e teria de abandonar algo que lutou para conquistar na juventude. Dopado, colocam-no no caminhão para encontrar a morte na metade do caminho. O sonho morrera junto com o avô, pois todo o desejo pelas gostosas frutas do oeste é uma maneira de justificar sua saída de uma terra incrustada na memória.

Outro grande aspecto temático do filme é a falta de importância que o futuro adquire. O filho, liberto em condicional, está sendo procurado por agressão. A filha está grávida. Pessoas que com eles partiram, não mais estão com eles... É numa conversa entre Tom Joad e Ma Joad (filho e mãe) que primeiro se evidencia a luta contra a opressão humana. Não importa o que ocorrer, juntos sempre estarão, pois “aonde quer que olhe – aonde quer que tenha uma briga (...), eu estarei lá”. A relutância da mãe quanto à segurança do filho – já que como toda mãe coloca a segurança do filho acima de qualquer coisa -, acaba, mesmo que como justificativa para seu desconsolo, passando a mensagem da película em seu último discurso (“A gente rica vem e morre. E seus filhos não prestam. Também acabam morrendo. Mas nós continuamos. Nós somos o povo que vive. Eles não podem nos vencer. Continuamos para sempre, pai, porque nós somos o povo”.) Certamente um belo tratado sobre a desigualdade.

Tecnicamente o que mais me impressiona é a exímia fotografia de Gregg Toland. É incrível como se usa bem a luz e os seus contrastes. Por ser um filme de teor depressivo, circundado por tragédias, usa-se muito a arte barroca de iluminação. Centrada em alguém ou em algum objeto, e deixando a outra região do enquadramento completamente escura, perpetrada por sombras. É uma espécie de penumbra constante. Velas e luz artificial são usadas com pouca intensidade, e a luz natural só em tomadas diurnas e externas. A maestria dos enquadramentos e a brincadeira com luz que se contrasta é tão importante no filme quanto seu roteiro. E isso é algo a se aplaudir num filme como esse, de John Ford, com Henry Fonda e Jane Darwell, numa expressão de cinema que casa o político com o classicismo.


A penumbra

Vinhas da Ira é a prova de que John Ford sabia fazer muito mais do que apenas western. O cinema narrativo nunca foi tão eloqüente, como nas histórias do homem que de tudo fez.




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