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Clássicos de Prestígio

Por Gabriel Carneiro

A Morte Cansada
Direção: Fritz Lang
Der Müde Tod, Alemanha, 1921.

O cineasta alemão Fritz Lang começou a filmar em meados da década de 10, mas seria na década de 20 que seu nome se tornaria referência mundial. No auge da efervescência cultural da Alemanha, na complicada República de Weimar, um movimento estético cinematográfico surge, o Expressionismo Alemão. Outros cineastas, como F.W. Murnau, surgem nessa época também, à parte do movimento de renome. Fritz Lang, diferentemente de Murnau, flerta com o Expressionismo, mas dificilmente pode se enquadrar qualquer de seus filmes nesse marco. Lang vislumbra a morbidez e os cenários pré-feitos deste, mas nunca se fecha aos locais abertos e românticos. A Morte Cansada é, talvez, um dos exemplos mais visíveis disso.

O tema é mórbido. Uma retomada da figura mítica da Morte que aparece para levar a alma embora quando menos se espera. Já no começo, aquela figura estranha que ronda o povoado se mostra excluída e isolada. Pessoas falecem, e, em sua clausura fortificada, a Morte recebe as almas perdidas. Só que esse ser não é visto como algo demoníaco, que cobra vidas a torto, sem consideração com os entes próximos. Não há o mal na visão de Lang, e é descomunal ver a sobriedade da película. O emotivo está presente, mas não é o foco. A Morte é um simples serviçal de Deus, cumpre suas ordens. Ele foi incumbido de transportar tais almas a um diferente mundo. Um trabalho que se mostra ingrato, pois todas culpas e maldições recaem sobre sua figura. Daí que vem o título, A Morte Cansada. Cansada desse excesso...

A Morte é uma figura romantizada. Independente da aproximação entre o Romantismo literário e o Gótico, a morbidez não faz parte desse romantismo visual. O fato de existir uma vila, com aberturas campestres, e, acima de tudo, três civilizações diferentes, afronta o clima tenebroso com uma atmosfera lúgubre, e serena. É importante notar que as paisagens são abertas, e não pré-fabricadas (pinturas ao fundo, locais fechados). O que pode parecer um redimensionamento do Expressionismo para alguns, para outros tantos, isso seria uma subversão. Em contrapartida, quando digo que Lang vislumbra a morbidez e os cenários pré-concebidos, vê-se toda essência do seu cinema. Lang é um cineasta controverso, ao menos em sua fase alemã. As cenas mais lindas, mais provocantes e mais retumbantes são feitas em ambientes escuros, iluminado por velas apenas.

O filme trata de um assunto pouco referido num âmbito particular, e comentado ao excesso num mais geral. Há duas nuances no filmes que são trabalhadas: o amor que perdura mesmo após a morte, e a imutabilidade espiritual. A Morte, em mais um de seus trabalhos, leva a outro plano um sujeito enamorado. Sua esposa, ao descobrir a tragédia e a morada da serviçal, tira sua própria vida. Não esperando, ele debate com ela. Um desafio é lançado, se ela conseguir evitar a morte do sujeito em uma das três situações experienciadas – uma na Pérsia, outra na Veneza Renascentista, e a terceira na China imperial -, terá seu amado de volta. Mas uma coisa deixa clara, ele é a Morte, e nada ele perde.

É genial ver a criatividade desse mestre. A introspecção exaustiva, a intimidade com o espectador, a configuração espacial são recursos minimalísticos de uma profundidade incessante. É delicioso assistir à lamúria da Morte em estado absorto. É uma atmosfera que nos imerge num mundo ilusório, mas que aparenta ser tão belo. O mundo dos mortos, das almas penadas, é carregado de um sentido tão profundo, tão simbólico e tão expressivo, que me causa uma certa comoção.

A construção dos períodos históricos me lembra um pouco Intolerância, de Griffith. Não sei se é bobagem, se é um excesso meu, mas ao olhar as tomadas dos monumentos – que nesse caso não são tão grandiosos quanto os do americano -, e dos próprios eventos a ocorrer, vejo um certo distanciamento da câmera. Não fisicamente, mas na sua condição abstrata. Ele olha para o evento, mas não cria empatia com a moça, com o pretendente à morte, ou mesmo com o considerado profanador. Não é um olhar histórico, mas desmedido.

É interessante ver como uma obra pode ser tão desconcertante e tão fantástica ao mesmo tempo. Um fator que me causa esse rebuliço interno são os efeitos visuais, se é que os pode chamar assim. As trucagens são herdeiras de Méliès, pessoas e objetos desaparecem nas de um momento para outro, cenas são justapostas para dar o aspecto sobrenatural... É incrível ver tais artimanhas em 1921. Não só a Morte paira no ar, mas há também um tapete voador e o efeito de espíritos que vagam e que atravessam paredes. E o melhor é a credibilidade de tais efeitos, pois, sinceramente, acreditei neles – diferentemente dos efeitos visuais horríveis de Motoqueiro Fantasma, feito 86 anos depois com tecnologia de ponta.

Outro fator que gostaria de ressaltar é o fato de deixarem, no DVD Continental – distribuidora bem mal falada -, o cromatismo original da película. É de uma riqueza ver aquelas cores tão representativas. Tons avermelhados, azulados, alaranjados, sempre com algum significado – em que, como não entendo nada do assunto, não me aprofundarei.

Pensando mais sobre esta resenha, vejo que talvez tenha sido pouco opinativo e mais analítico. Mas sempre que ressalto um fator é para mostrar seu fascínio sobre mim. O filme se mostrou algo bem original para mim, talvez por isso esse pensamento – que espero ser coletivo – para entendê-lo.

A beleza de A Morte Cansada recai na trivialidade, na simples trivialidade da vida e da morte.




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