Coluna do Biáfora
Dos dez melhores do ano
Por Rubem Biáfora, artigo selecionado por Sérgio Andrade
Uma irretorquível obra-prima do atual cinema alemão, este “O Amigo Americano” (Der Amerikanische Freund) que lamentavelmente ficará só até hoje no Cine Liberty e até quarta no Arouche-A, mas de maneira alguma poderá ser perdido pelo espectador que sabe selecionar o que vai ver, sob pena de ficar desconhecendo um dos mais pessoais e intrigantes tipos de filmes que se fazem hoje em dia.
Enigmático, ambivalente, difícil mesmo de acompanhar, Der Amerikanische Freund poderá ser, e realmente é, tudo isso. Mas é, certamente, pela forma original de emoção que desperta e pelo enriquecimento estético-humano que carreia para quem pode apreciá-lo, um espetáculo incomum, diante do qual a mera ação explicada das exigências convencionais torna-se de todo irrelevante. E nisso ele lembra “À Beira do Abismo”, o clássico “thriller” que Bogart estrelou em 46 na Warner, produzido e dirigido por Hawks, baseado em novela de Raymond Chandler.
“À Beira do Abismo”, ou seu clima, foi um dos acertos do período que mais a “nostalgia” cultuou ou tentou emular (veja-se, por exemplo, o Chinatown de Polanski). Mas nunca essa emulação foi tão bem-sucedida como no caso presente, muito embora este filme de Wenders felizmente (e dizemos isto não por depreciação) nada tenha do cinema americano daquela época e seja um produto típico e absoluto do cinema europeu (e germânico) atual, com seu mergulhar no mundo dos mistérios do desencanto existencial, feito de cidades deterioradas, de falta de espaço para a sobrevivência mínima, de total perda de valores.
Os americanos sempre puderam reconstituir a Europa. Marlene e Garbo estavam lá. Louise Brooks e Ella Raines ali nasceram mas pareciam vindas do outro lado do Atlântico. Lá atuavam e influenciavam, soberanos, Fritz Lang, Siodmak e outros tantos. O europeu, entretanto, não consegue copiar a América, esta é para ele um indômito quebra-cabeças. E, diante do maravilhoso europeísmo deste filme, podemos dizer (sempre sem depreciação): “Ainda bem!”.
Pois “O Amigo Americano” não precisava que Dennis Hopper impossivelmente tentasse reviver Shane, Gary Cooper, Joel McCrea e outros paladinos errantes e solitários da mitologia do western. E ao invés de americano amigo poderia ser búlgaro, iugoslavo ou polonês, que daria na mesma, embora para a sede de outras terras e nova gente do velho mundo, não pareça.
O essencial é que aqui estamos diante do encontro, da quase troca de destinos entre dois homens, do ambíguo ou do fatal surgimento da amizade entre ambos. Uma espécie de inverso da lenda criada por Poe em “William Wilson” ou da perene atração e repulsão do homem por seu “duplo”, conforme lembra o crítico inglês Tom Milne. O homem errante e disponível (Hopper) que sente admiração e/ou inveja e ao mesmo tempo tenta corromper ou destruir o outro, pequeno burguês comum e assentado, mas ambos já marcados pela transmutação de identidades e pela garra da morte (e o episódio da troca de presentes quando o estrangeiro dá ao alemão o cinescópio com figuras de mulheres desnudas é significativo).
Der Amerikanische Freund tem cinco elementos de interesse e validade absolutos. A modernidade e o estilo narrativos da direção de Wim Wenders é um. Aqui, já foram apresentados em especiais pelo Instituto Goethe quatro filmes seus (“O Medo do Goleiro Ante o Penalty”, “Alice nas Cidades”, “O Movimento Falso” e “No Decorrer do Tempo”) mas bastaria agora este Der Amerikanische para colocá-lo em situação equivalente à de Fassbinder e Herzog.
Igual exponencialidade encontramos na procura de ambientes e na cenografia de Tony e Heidi Ludi e na audácia, na secura, na precisão e nas pesquisas de plasticidade, aplicação de cor e clima da fotografia de Robby Miller. O mesmo vale para o comentário musical de Jurgen Knieper.
E coroando tudo, o protagonista, que não é o Denis Hopper corroído e envelhecido pelas drogas logo após seu êxito em “Sem Destino”, mas sim o extraordinário Bruno Ganz, o herói de “O Pato Selvagem”, o compulsivo sedutor da “Marquesa de O”, a vítima de “Nosferatu” que se transforma prazeirosa e satanicamente em vampiro, na recente versão de Herzog. Sem ser bem o tipo cavalheiro como Michel Piccoli (parece mais um carpinteiro, ou, como na história, um moldureiro) Ganz sugere entretanto mais elegância que o próprio Piccoli.
Sua afirmação aqui equivale à de Bela Lugosi em “Drácula”; a depois descurada revelação de Oliver Reed em “Mulheres Apaixonadas”, lembrando por outra – numa história também de inocente colocado entre a guerra de grupos de gangsters – a patética estréia de Wendell Corey, em 47, com I Walk Alone e Desert Fury.
Quando em cena - e ele está quase em todo o filme – para usar uma definição da crítica anglo-americana, é impossível que Ganz não monopolize – mesmerize – a atenção do espectador e, com o devido respeito e transpondo o fenômeno em termos masculinos, não nos leve a aquilatar o que foram as duas primeiras aparições de Greta Garbo, em 1926, na Metro, com The Torrent e “Terra de Todos”.
*Publicado originalmente em “O Estado de São Paulo” de 26 de outubro de 1980
Dos dez melhores do ano
Por Rubem Biáfora, artigo selecionado por Sérgio Andrade
Uma irretorquível obra-prima do atual cinema alemão, este “O Amigo Americano” (Der Amerikanische Freund) que lamentavelmente ficará só até hoje no Cine Liberty e até quarta no Arouche-A, mas de maneira alguma poderá ser perdido pelo espectador que sabe selecionar o que vai ver, sob pena de ficar desconhecendo um dos mais pessoais e intrigantes tipos de filmes que se fazem hoje em dia.
Enigmático, ambivalente, difícil mesmo de acompanhar, Der Amerikanische Freund poderá ser, e realmente é, tudo isso. Mas é, certamente, pela forma original de emoção que desperta e pelo enriquecimento estético-humano que carreia para quem pode apreciá-lo, um espetáculo incomum, diante do qual a mera ação explicada das exigências convencionais torna-se de todo irrelevante. E nisso ele lembra “À Beira do Abismo”, o clássico “thriller” que Bogart estrelou em 46 na Warner, produzido e dirigido por Hawks, baseado em novela de Raymond Chandler.
“À Beira do Abismo”, ou seu clima, foi um dos acertos do período que mais a “nostalgia” cultuou ou tentou emular (veja-se, por exemplo, o Chinatown de Polanski). Mas nunca essa emulação foi tão bem-sucedida como no caso presente, muito embora este filme de Wenders felizmente (e dizemos isto não por depreciação) nada tenha do cinema americano daquela época e seja um produto típico e absoluto do cinema europeu (e germânico) atual, com seu mergulhar no mundo dos mistérios do desencanto existencial, feito de cidades deterioradas, de falta de espaço para a sobrevivência mínima, de total perda de valores.
Os americanos sempre puderam reconstituir a Europa. Marlene e Garbo estavam lá. Louise Brooks e Ella Raines ali nasceram mas pareciam vindas do outro lado do Atlântico. Lá atuavam e influenciavam, soberanos, Fritz Lang, Siodmak e outros tantos. O europeu, entretanto, não consegue copiar a América, esta é para ele um indômito quebra-cabeças. E, diante do maravilhoso europeísmo deste filme, podemos dizer (sempre sem depreciação): “Ainda bem!”.
Pois “O Amigo Americano” não precisava que Dennis Hopper impossivelmente tentasse reviver Shane, Gary Cooper, Joel McCrea e outros paladinos errantes e solitários da mitologia do western. E ao invés de americano amigo poderia ser búlgaro, iugoslavo ou polonês, que daria na mesma, embora para a sede de outras terras e nova gente do velho mundo, não pareça.
O essencial é que aqui estamos diante do encontro, da quase troca de destinos entre dois homens, do ambíguo ou do fatal surgimento da amizade entre ambos. Uma espécie de inverso da lenda criada por Poe em “William Wilson” ou da perene atração e repulsão do homem por seu “duplo”, conforme lembra o crítico inglês Tom Milne. O homem errante e disponível (Hopper) que sente admiração e/ou inveja e ao mesmo tempo tenta corromper ou destruir o outro, pequeno burguês comum e assentado, mas ambos já marcados pela transmutação de identidades e pela garra da morte (e o episódio da troca de presentes quando o estrangeiro dá ao alemão o cinescópio com figuras de mulheres desnudas é significativo).
Der Amerikanische Freund tem cinco elementos de interesse e validade absolutos. A modernidade e o estilo narrativos da direção de Wim Wenders é um. Aqui, já foram apresentados em especiais pelo Instituto Goethe quatro filmes seus (“O Medo do Goleiro Ante o Penalty”, “Alice nas Cidades”, “O Movimento Falso” e “No Decorrer do Tempo”) mas bastaria agora este Der Amerikanische para colocá-lo em situação equivalente à de Fassbinder e Herzog.
Igual exponencialidade encontramos na procura de ambientes e na cenografia de Tony e Heidi Ludi e na audácia, na secura, na precisão e nas pesquisas de plasticidade, aplicação de cor e clima da fotografia de Robby Miller. O mesmo vale para o comentário musical de Jurgen Knieper.
E coroando tudo, o protagonista, que não é o Denis Hopper corroído e envelhecido pelas drogas logo após seu êxito em “Sem Destino”, mas sim o extraordinário Bruno Ganz, o herói de “O Pato Selvagem”, o compulsivo sedutor da “Marquesa de O”, a vítima de “Nosferatu” que se transforma prazeirosa e satanicamente em vampiro, na recente versão de Herzog. Sem ser bem o tipo cavalheiro como Michel Piccoli (parece mais um carpinteiro, ou, como na história, um moldureiro) Ganz sugere entretanto mais elegância que o próprio Piccoli.
Sua afirmação aqui equivale à de Bela Lugosi em “Drácula”; a depois descurada revelação de Oliver Reed em “Mulheres Apaixonadas”, lembrando por outra – numa história também de inocente colocado entre a guerra de grupos de gangsters – a patética estréia de Wendell Corey, em 47, com I Walk Alone e Desert Fury.
Quando em cena - e ele está quase em todo o filme – para usar uma definição da crítica anglo-americana, é impossível que Ganz não monopolize – mesmerize – a atenção do espectador e, com o devido respeito e transpondo o fenômeno em termos masculinos, não nos leve a aquilatar o que foram as duas primeiras aparições de Greta Garbo, em 1926, na Metro, com The Torrent e “Terra de Todos”.
*Publicado originalmente em “O Estado de São Paulo” de 26 de outubro de 1980