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Clássicos de Prestígio

Por Gabriel Carneiro

Outubro
Direção: Sergei M. Einsenstein e Grigori Aleksandrov
Oktyabr, URSS, 1927.

Outubro é um mês de festas. A Zingu! faz um ano, o filme de Eisenstein faz 80, e a revolução bolchevique faz 90. Como a revolução só é importante para Sergei, comemoremos o aniversário da Zingu! e do filme Outubro. Friso que a revolução ainda será tratada na coluna.

Outubro foi feito a pedido do serviço de propaganda de Stálin em comemoração aos 10 anos da Revolução Russa, que, em 25 de outubro de 1917 (calendário deles), explodiu, culminando numa guerra civil de cinco anos até a formação da URSS. De cunho marxista, pregava o fim da exploração do trabalhador e melhores condições de vida. A saída da 1ª Guerra Mundial lhes era inevitável, assim como a coletivização do trabalho e da terra. Em fevereiro do mesmo ano, a revolução menchevique tomara o poder dos czares, mas sem mudar a estrutura sócio-econômica, agravando ainda mais a insatisfação da sociedade marginalizada. Lênin e seus comparsas assumiram o poder clamando a ditadura do proletariado, todo poder aos soviets e o fim das injustiças.

Em homenagem a essa transformação, o governo encomendou um filme a um dos mais prolíficos e talentosos diretores da época, Sergei M. Eisenstein. Mesmo fazendo filmes por encomenda, deixou sua marca na história do cinema como um dos maiores cineastas. Começou com A Greve, em 1924, e no ano seguinte, em comemoração dos vinte anos da Revolução de 1905, fez uma das obras mais celebradas do cinema, O Encouraçado Potemkin. Outubro foi o terceiro da safra, e mais um acerto na carreira.

Em tom documental, Sergei pretende recriar a atmosfera da vitória do povo contra a opressão. Obviamente que, por ser um filme do governo, a visão é deveras manipulada, inclusive, contendo vetos de Stálin. O filme se baseia no livro Dez dias que abalaram o mundo, de John Reed, e a partir dele reconstrói em imagens os dias que precederam a revolução, com muitos figurantes, e atores muito parecidos com os personagens originais. Uma de suas principais características é o clima impregnado na celulóide. Ao fazer um filme que vislumbra esse mundo dos excedentes marginalizados, coloca a massa e a filma. Filma o povo, que é a sua principal preocupação, e contemplando essa miséria, cria empatia com o público-alvo. Muito antes dos filmes nazistas, ou do american way of life, foi na URSS que a propaganda no cinema encontrou sua forma.

Houve poucos que conseguiram compreender tão bem a forma fílmica como o principal diretor de Outubro. Seu maior trunfo pode ser a montagem, que foi revolucionada – não era só na política que havia revoluções – por essa classe de diretores proeminentes da URSS, mas muito mais que isso, o que nos prende a atenção é a atmosfera e sua intensidade, fruto da fotografia, acima de tudo. A montagem dinâmica, que explora o paralelismo e a associação, coloca-nos dentro da situação efervescente do movimento, e, quando em período burocráticos, insere-nos através da própria chatice do metódico Porém é a fotografia P&B, bem iluminada no centro da imagem, e com enquadramentos que variam do plano geral das manifestações ao primeiro plano do rosto de Lênin. Outros quadros de suma importância são os planos-detalhes de objetos que simbolizam a essência da personagem em determinado momento de sua vida. O copo que passeia nas mãos de Kerensky pouco antes de ser deposto diz muito mais que seu rosto aflito. É a conjunção desses dois aspectos fundamentais que constrói o brilhantismo dos filmes de Eisenstein, e mesmo que o sentido de Outubro se desgaste, sua atmosfera vigora.

O que apetece tanto seu cinema é essa sua imposição de filmar o que lhe aparenta representativo com tanta propriedade, sabendo o que fazia, muito além do que a mera prática de sua teoria. Sua convicção não é importante, o cinema de Eisenstein pode ter seu conteúdo relevado – afinal, propaganda por propaganda, fico com a capitalista -, seu trunfo está na criação, na construção de tão importante paradigma da história contemporânea. Sua câmera é uma observadora atenta, que capta os grandes e os singelos momentos daquilo que talvez fosse o mais significativo acontecimento político da época. Furtiva e experiente, adentra-se por ângulos inusitados e por travelling ópticos sintomáticos, fazendo daquela visão unificada um documento tão importante quanto o relatado.

Eisenstein depende da forma, pois é graças a ela que seus filmes se excluem da típica propaganda, podendo ser considerado “arte”. Mais, se não fosse sua metodologia revolucionária em criar um novo panteão quanto à construção do cinema, talvez estivéssemos muito mais pendentes a achar que o conteúdo é o fundamental. Não era o objetivo do diretor, e por isso seu mérito. Independente disso, criou em Outubro a obra essencial para entender o seu experimentalismo publicitário sobre os dez dias que abalaram o mundo... Ninguém mais fez – e dificilmente fará – algo tão explosivo e significativo acerca da revolução proletária, algo genuinamente notável.

Um cineasta de odes, odes ao cinema e seu sentido, sua atmosfera e sua forma.




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