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As Aventuras do Sr. Hulot no tráfego louco

Por Filipe Chamy

As Aventuras de Sr. Hulot no tráfego louco
Direção: Jacques Tati
Trafic, França/Itália, 1971.

Gravata borboleta, chapéu, sobretudo bege até os joelhos, calças mais escuras e que terminam antes do esperado, culminando num par de meias listradas e sapatos até mais comuns do que o restante dos trajes daria a imaginar. Coloque-se um cachimbo na boca, um grande guarda-chuva em uma das mãos (por vezes uma mala na outra), e aí está, de cima para baixo, sr. Hulot, magnífica criação de Jacques Tati. Com sua imensa estatura, seu rosto inocente e de expressão perplexa, Hulot é um homem assombrado com o caos moderno e que vive numa era de modernidades absurdamente caricaturais: a nossa.

A estética de Tati é clássica e extremamente pessoal e particular, com seus grandes e reconhecíveis espaços abertos, arquitetura também muito ampla. Hulot passa muito tempo apenas andando e observando, e suas muitas andanças levam o espectador à confirmação do humor contemplativo do diretor. Pessoas e seus comportamentos, seres humanos com manias e personagens com “tiques”, é isto que o cineasta revela, de maneira bonita e sem pieguice, com certo pessimismo, mas com terna leveza.

Nesta comédia de observação, diálogos têm pouca (ou nenhuma) importância. Mas a utilização do som é genial, Jacques Tati foi um dos mais brilhantes realizadores do cinema nesse sentido. Muito silêncio, muito barulho; sons de carros, objetos, melodias, onomatopéias, tudo é explorado conscientemente pelo artista. Hulot mesmo fala muito pouco — o que não impede a legítima babel de línguas presente no longa: literalmente, um atropelamento de diferentes idiomas nas discussões.

E o sr. Hulot é o centro de todas essas situações. Sempre calmo, educado e prestativo, ele possui uma inata curiosidade pelo novo e pelo incomum. Assim como são certas as suas boas intenções, é correto confiar na sua capacidade de atrair problemas — ou, mais propriamente falando, confusões —, bem como sua habilidade de resolver tudo da melhor maneira possível (sendo que às vezes a melhor maneira é simplesmente evadir-se do local). Com seu andar peculiar e sua boa-vontade, troca pneus — em um belo festival de piadas visuais —, media altercações, desaconselha a perda da temperança, enfim. É um personagem positivo, não resta dúvidas.

Outra marca do cinema de Tati é a contraposição entre o vazio e o cheio, o oco e o completo: aqui vemos, para contrastar com os grandes e arejados locais, cenas de multidão e aglomeração, um pouco menos carregadas do que as de seu longa anterior, Play time. Mas uma exposição de carros é mesmo um belo pretexto para esses propósitos; Tati ainda pinta cenas repletas de closes e sons claustrofóbicos, talvez passando a alguns a sensação de estar realmente dentro de um automóvel.

A comédia dos filmes de Jacques Tati é obviamente incompreendida e menosprezada. Suas gags são brilhantemente elaboradas e o efeito cômico é imediato. Verdade é que se aproxima de Chaplin ao não fazer um humor tão explícito, graça tendendo mais ao aspecto “gracioso” que “engraçado”. Ainda assim (e sem que isso interfira negativamente em coisa alguma), é muita rabugice rejeitar os méritos histriônicos de passagens como a da pretensa morte do cachorro, as batidas de carros e, ainda que conquistem mais pela singeleza, os minutos finais, em que os pára-brisas mexem conforme as disposições das gentes: é uma metáfora interessante, e seu clímax se dá justamente no ponto de maior beleza plástica do filme (ponto discutível, claro): a chuva, que cai sobre o tráfego, ocasionando um congestionamento de carros e guarda-chuvas.

O olhar de Jacques Tati não se adapta hoje às aventuras do sr. Hulot apenas; por onde andemos, vemos vítimas (ou conseqüências) dessa modernidade tão ridícula.




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