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Dossiê Paulo Perdigão

APOCALYPSE DAS AMBIÇÕES

Por Paulo Perdigão
Seleção e transcrição: Matheus Trunk

Contando com uma narração em voz off escrita por Michael Herr (autor de um brilhante inventário do Vietnã, Dispatches), Francis Ford Coppola pretendeu em Apocalypse (Apocalypse Now) atualizar o tema de Heart of Darkness, do escritor inglês Joseph Conrad (1857-1924), um libelo contra a exploração dos colonizados no Congo Belga de 1890. Infelizmente, dotou seu filme de ambições descabidas- pois arvorou-se em descabidas- pois arvorou-se em oráculo do nosso tempo, compondo um espetáculo de 31 milhões de dólares (o terceiro filme mais caro do mundo, depois de Superman e Cleópatra) com ingredientes de experimento vanguardista (logo, de aceitação problemática pelas grandes platéias) e a intenção dominante de formalizar uma epopéia filosófica sobre a condição humana num universo de loucura e delírio psicodélico. Fez, sem dúvida, um supershow eletrizante nos dois terços iniciais, incluindo seqüências de batalha que os observadores estrangeiros reputam sem paralelo na história do cinema de guerra (no Brasil, Apocalypse foi lançado em cópias de 35mm, sem a parafernália audiovisual da tela de 70mm e um revolucionário sistema de som Dolby Stereo, que em salas dos EUA e Europa envolviam o auditório com impressionantes estímulos sensoriais),

Nas cópias aqui exibidas, o impacto não chega a ser estarrecedor, como já se percebe na cena de abertura: lentas sobreimpressões de imagens bélicas sobre o rosto do Capitão Benjamin Willard (Martin Sheen), assassino profissional a soldo do Pentágono, acompanhadas de ruídos abafados de helicópteros e bombardeios, como se o espectador fosse convidado a partilhar o estado de transe anestésico do personagem, enquanto o grupo The Doors entoa a canção The End. Convocado em Saigon para efetuar missão altamente sigilosa- matar o Coronel Walter E. Kurtz (Marlon Brando), emérito oficial graduado em West Point que as atrocidades da luta converteram num renegado e reina na fronteira do Camboja sobre um bando de nativos e mercenários, fazendo sua guerra particular- Willard inicia sua exasperante jornada ao coração das trevas. Logo de saída, depara com um tenente-coronel (Robert Duvall) que dizima vilarejos para praticar surfe- uma piada de humor negro reminiscente do clima surrealista de Dr. Fantástico e Ardil 22. Em terra, cinegrafistas de TV gravam o ataque, advertindo aos soldados: “Ei, não olhem para a câmara. Ajam como se estivessem mesmo numa guerra”.

Esse efeito avalassador, dilui-se, em seguida mal Willard embarca numa Lancha da Marinha, com quatro tripulantes, e às margens do rio Nung vão se processando episódios estanques que outorgam à travessia o sentido de um ritual de iniciação aos absurdos de guerra. Serviriam também de iniciação aos mistérios da metafísica e da moral se Coppola não fosse tão pouco letrado nessas ciências humanas. Pior ainda: tanta insensatez é encarada supostamente pelos olhos de Willard, mas a expressão e a conduta do personagem, um matador frio e apático, contradizem frontalmente seu pensamento interior, cheio de indignação contra a selvageria do combate. O que Coppola não logra mostrar em imagens fica por conta de solilóquios que também não descerram a verdade sobre Willard- nem mesmo quando ele consulta documentos sobre sua futura vítima e aos poucos vai se reconhecendo nela. “Não há modo de contar a história de Kurtz sem contar a minha própria história”, pensa o capitão. Fica-se sabendo, em teoria, que Kurtz, tal como Willard experimentou tão a fundo a hipocrisia moral da guerra que acabou entregando os pontos à monstruosidade para viver mais de acordo com ela.

É com essa mesma ética pragmática que Kurtz aguarda o homem que irá mata-lo e a hora de seu suplício. No terrível santuário do coronel, que recorda a ilha da Caveira de King-Kong, vemos o personagem apenas do pescoço para cima, entre sombras- exigência de Marlon Brando, que cobrou 2,5 milhões de dólares por cinco semanas de trabalho mas achou que não ficaria bem aparecer na tela de corpo inteiro, com 142 quilos de peso.

Depois de torturar seu carrasco, Kurtz explica-lhe que o fez entender que, na guerra, moral e horror não põem coexistir: durante uma campanha de rotina, os vietcongues cortaram os braços de todas as crianças de um vilarejo vacinados contra pólio por soldados americanos. “Horror, horror” são suas últimas palavras, ao expirar, abatido a golpes de sabre, enquanto, numa cerimônia pagã de fertilidade, os nativos esquartejaram um búfalo a machadadas. De fato, a morte de Kurtz, verdadeiro parricídio simboliza um sacrifício ritual e coincide com a assunção de Willard no poder agora vago. Os nativos o acolhem como sucessor ao homem-deus, segundo costumes das civilizações ancestrais analisadas pelo antropólogo inglês Sir James George Frazer (1854-1941) num famoso tratado, The Golden Bough, que Coppola leu antes de fazer o filme e a câmara focaliza, em primeiro plano, entre os pertences de Kurtz.

Entre os críticos brasileiros, fui o único a impor restrições a esse desfecho dimunuendo, que me pareceu um eclipse na estrutura dramática de Apocalypse e uma tentativa vã de mostrar o invisível- o Mal em pessoa. Imagina o que não teria feito com esse mesmo material o gênio de Orson Welles. Em 1939, ao chegar a Hollywood, Welles planejou uma adaptação de Heart of Darkness com Dita Parlo e ele próprio no papel de Kurtz, usando em toda a narrativa a técnica da câmara subjetiva, efeito inédito na época (e que, na verdade, só viria a ser usado uma única vez, em A Dama do Lago de Robert Montgomery, em 1946). O projeto frustrou-se e Welles terminou realizando Cidadão Kane, o que também não foi mau negócio. Quanto a Francis Ford Schoppenhauer, digo Coppola, deve estar a essa altura de dedos cruzados, rezando para que Apocalypse renda, no mínimo, 77 milhões de dólares- pois só a partir daí é que terá direito a embolsar o primeiro vintém dos 18 milhões que a United Artists lhe emprestou para completar o superfilme onde o pai do Poderoso Chefão perdeu quatro anos de vida e 20 quilos de peso, hipotecando toda sua fortuna pessoal. Sim, é claro, inclusive seu iate e seu avião particular. Talvez fosse mais prudente gastar dinheiro e massa cinzenta lendo tratados filosóficos não tão elementares quanto digests de Will Durant, que, pelo visto, em Apocalypse, deve ser seu autor de cabeceira.




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