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Dossiê Paulo Perdigão

DOIS FILMES, DUAS DECEPÇÕES

Por Paulo Perdigão
Seleção e transcrição: Matheus Trunk

Inexpressividade e incompetência continuam predominando no panorama global dos lançamentos cinematográficos do Rio de 1977. Eis alguns novos exemplos: Ladrões de Cinema de Fernando Cony Campos e O Último dos Valentões de Dick Richards. Este revela o sexage- Robert Mitchum: os olhos de ressaca mais empuçados e o jeitão blasé carregado de preguiça e eficiente cinismo caem-lhe ainda melhor no corpo carregado pelo peso dos anos. Metido no chapelão e na amarfanhada capa de chuva com que outrora Humprey Bogart e Dick Powell trajaram o famoso private-eye Philip Marlowe, Mitchum mostra-se enfim à vontade num personagem anacrônico quanto ele próprio.

“Na primavera passada, senti pela primeira vez que estava cansado e envelhecendo”, resmunga Marlowe pela voz de Mitchum. Durante os 97 minutos deste tributo à iconografia do film noir hollywoodiano dos anos 40, o ator parece ruminar saudosas memórias do tempo em que refulgia nos thrillers Rancor e Fuga ao Passado, protótipos daquele gênero banhado por sombras expressionistas e melodramática fatalidade. Então na crista da glória, o jovem Marlowe escapou ao jovem Mitchum. Sanada a falha três décadas depois, o remendo aparece ungido por nostalgia e sentimentalismo.

Questionável teria sido, em primas eras, a escalação de Mitchum para formalizar na tela a imagem de um herói que seu criador Raymond Chandler (1888-1959) esboçara à semelhança de Cary Grant. Hoje, o contraste aguça o que pode haver de irônico na pretendida exumação de mitos ultrapassados. Os produtores deste filme, Elliot Kastner e Jerry Bick, já haviam reanimado Philip Marlowe nos traços desajeitados de Elliot Gould em Um Perigoso Adeus (1973). No moderno mundo chauvinista de James Bond, Shaft e SWAT, que seria mais deslocado do que o código de honra, dever e lealdade do private-eye nos arcaicos moldes ? Eleito Marlowe em 1975, Mitchum neste inclemente decadentismo enxerta um sopro de sonolenta melancolia.

Narração na primeira pessoa, flashbacks alinhavados em técnica grisalha, uma Charlotte Rampling copiando a Lauren Bacall de Á Beira do Abismo, a Los Angeles de 1941 reproduzida com notável zelo detalhista pelo mesmo fotógrafo de Chinatown, John A. Alonzo- eis um insinuante acervo de memorabilias à disposição de cinéfilos saudosistas. Estes podem deleitar-se comparando a espiral de surpresas e cadáveres engendrada por Chandler em sua novela de 1940 com as duas versões cinematográficas anteriores, Nas Garras do Falcão (1942) e Até a Vista, Querida (1944). Infensos à onda de nostalgia, outros talvez preferissem de bom grado que, ao invés de insistir em cultuar relíquias do passado, Hollywood começasse novamente a produzir filmes mais dignos de virem a ser invocados no futuro.

Em Ladrões de Cinema as coisas são ainda mais desalentadoras. A idéia, assaz curiosa, apossou-se do diretor Coni Campos quando, há dez anos, participou ele do júri que escolheu o enredo do Bloco do Pavãozinho, em Copacabana. Pena que, no meio tempo, Dennis Hopper houvesse aplicado idêntido expediente em seu The Last (1971), no qual uma tribo de nativos peruanos rouba uma câmara da equipe do cineasta Samuel Fuller e com ela promove uma sangrenta brincadeira de fazer cinema. Felizmente, para Coni Campos The Last Movie (1971), nunca chegou às telas brasileiras. No seu Ladrões de Cinema, tal como se preparassem para o desfile de carnaval, os moradores da favela, com uma câmara roubada, filmam um samba-enredo sobre a Inconfidência Mineira. “Quero que a platéia se sentisse como nas arquibancadas da Avenida, assistindo ao desfile das escolas de samba”, sentenciou o cineasta.

Triste carnaval. Na comissão de frente, um grupo de excelentes atores negros, submetidos a desajeitados maneirismos, perde a natural exuberância e espontaneidade, face ao desânimo do mestre-escola. Nas evoluções e alegorias, há um acúmulo de diálogos inaudíveis, cortes e imagens amadorísticas, um pseudo ar de malandragem e improvisação passível de ser confundido com desleixo e indigência. Pior ainda: o quesito samba-enredo, um filme dentro do filme com Mano Décio da Viola musicando poemas de Castro Alves, Alvarenga Peixoto e poetas inconfidentes, peca não apenas pela bagunça e letargia, mas sobretudo por ser carente de originalidade: há quatro anos a história de Tiradentes já tinha sido revista e atualizada no filme Os Inconfidentes, de Joaquim Pedro de Andrade.

No último Festival de Brasília - onde Lutero Luiz, no papel do pérfido Silvério, recebeu o prêmio de melhor ator coadjuvante - supôs-se apressadamente que, por fim,o cinema nativo encontrara sua linguagem própria e estabelecera diálogo inteligente com o povo, esse ilustre esquecido. Porém, numa das sessões do Cinema II, no Rio, dos 18 espectadores presentes, a metade retirou-se finda a primeira hora de projeção, estafada principalmente pela proverbial inépcia dessa conjuração de enganos em ser, no mínimo, engraçada.

Encerrado o desfile, vagamente percebe-se que intuitos houve de trombetear contra as agruras de quem se dedica ao cinema no Brasil - tais lamúrias como sempre acolchoadas por contumaz xenofobia. No entanto, motivada pelo tom de postiça naturalidade e alegria forçada, a impressão mais forte é a de que, se a brincadeira fosse mesmo para valer, o trôpego e nada festivo filme-escola de samba seria inevitavelmente rebaixado para o segundo grupo.




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