Dossiê Jodorowsky
O FILME QUE VOCÊ NUNCA VERÁ
Por Alejandro Jodorowsky
Tradução: Raphael Carneiro
Existe uma lenda Hebraica que diz: “o Messias não será um homem, mas sim um dia: o dia em que todos os seres humanos forem iluminados”. Cabalistas falam a respeito de uma consciência coletiva, cósmica, uma espécie de meta-Universo. Aqui está o que todo o projeto de DUNA significou para mim.
Entusiástica Admiração
De forma a mostrar o processo de iluminação de um herói, de um povo e de um planeta inteiro (que por sua vez, é o Messias do Universo, já que saindo de sua órbita, o planeta sagrado passa a espalhar a sua luz através de todas as galáxias)...
Eu não queria respeitar o livro, eu queria recriá-lo. Para mim, Duna não pertence a Herbert assim como Don Quixote não pertence a Cervantes, nem Édipo a Esquilo.
Existe um artista, apenas um, em meio a milhões de outros artistas, que apenas uma vez em sua vida, por uma espécie de graça divina, recebe um tema imortal, um MITO... Eu digo “recebe” e não “cria” porque um trabalho de arte é recebido em estado de mediunidade direto do inconsciente coletivo. O trabalho excede o artista, e de certa forma o mata, porque a humanidade, recebendo o impacto do Mito, tem a necessidade primordial de apagar o indivíduo que recebeu e transmitiu (o mito): sua personalidade individual obstrui, mancha a pureza da mensagem, que em seu princípio fundamental, pede para ser anônima... Não sabemos quem criou a catedral de Notre-Dame, nem quem criou o calendário solar Asteca, muito menos o tarô de Marseilles, nem o mito de Don Juan, etc.
Penso que Cervantes nos deu SUA versão de Don Quixote – obviamente incompleta – e que carregamos em nosso coração o personagem completo... Cristo não pertence a Marcos, nem a Lucas, nem Matheus e muito menos João... Existem muitos evangelhos conhecidos como Apócrifos e existem tantas vidas de Cristo quanto existem crentes. Cada um de nós tem a sua própria versão de Duna, sua Jessica, seu Paul... Eu sentia uma entusiástica admiração por Herbert, e ao mesmo tempo, me sentia em conflito (e imagino que o mesmo ocorria com ele)... Ele me obstruía... Eu não o queria como um conselheiro técnico... Eu fiz de tudo para afastá-lo do projeto... Eu havia recebido uma versão do Mito e queria transmiti-la: o Mito deveria desistir de sua forma literária e se tornar Imagem.
No filme, o Duque Leto (pai de Paul) seria um homem castrado em um combate ritual contra um touro nas arenas (e o emblema da Casa dos Atreides seria um Touro Sagrado Coroado...) Jessica – freira de Bene Gesserit -, enviada como uma concubina para o Duque com o objetivo de criar uma garota que seria a mãe de um Messias, se apaixona por Leto com tal intensidade que decide pular essa “corrente” e criar um filho, Kwisatz Haderach, o salvador. Utilizando suas capacidades de Bene Gesserit – assim que o Duque, intensamente apaixonado revela seu triste segredo – Jessica é inseminada com uma gota de sangue deste homem estéril... A câmera seguiria (no script) a gota vermelha através dos ovários da mulher até se encontrar com o óvulo, onde, por uma miraculosa explosão, fertilizaria. Paul nasceria de uma virgem; e não pelo esperma de seu pai, mas pelo seu sangue...
Imperador Insano
Em minha versão de Duna, o Imperador da Galáxia é um homem louco. Ele vive em um planeta artificial de ouro, dentro de um palácio de ouro construído de acordo com as não-leis da anti-lógica. Ele vive em simbiose com um robô idêntico a ele. A semelhança é tão perfeita que os cidadãos nunca sabem se estão na presença do homem ou da máquina...
Em minha versão, a Especiaria é uma droga azul de consistência esponjosa repleta de uma forma de vida animal-vegetal dotada de consciência, o maior nível de consciência. Não para de tomar todos os tipos de forma, sempre de maneira inspiradora. A Especiaria produz continuamente a criação de inúmeros universos.
O Barão Harkonnen é um homem imenso, de 300kg. Ele é tão gordo e pesado que, para se mover, ele precisa continuamente utilizar-se de bolhas anti-gravicionais presas as suas extremidades... Suas ilusões de grandeza não têm limites: ele vive em um palácio que é construído como um retrato de si mesmo... A imensa escultura é desenhada sobre um sórdido e pantanoso planeta... Para entrar no palácio, as pessoas devem esperar que o colosso abra sua boca e lance uma língua de aço (algo como um campo de pouso)...
Ao final do filme, a esposa do Conde Fenring se movimenta em direção de Paul, que já se tornou Fremen, e corta sua garganta. Paul, enquanto morre diz: “Tarde demais, ninguém pode me matar... porque...
- Porque, (continua Jessica com a voz de Paul), para matar o Kwisatz Haderach, você terá de me matar também...” E cada Fremen, cada Astreide falam agora com a voz de Paul: “Eu sou o homem coletivo. Aquele que mostrará o caminho.”
A situação muda rapidamente. Três colunas de luz jorram do planeta. Se misturam. Mergulham na areia do planeta: “Eu sou a terra que aguarda a semente!” O chão treme. Água cai e forma um pilar cercado por fogo.
Filamentos prateados emergem da Especiaria. Cria um arco-íris. Forma-se uma nuvem de água, que produz uma “lava” vermelha. Um anel azul circunda o planeta agora. É dividido. Produz mais e mais anéis. Duna é agora um mundo iluminado, que cruza a galáxia, espalhando luz – que é a Consciência – para todo o universo.
Verdadeiros Alquimistas
Para conceber esta seqüência final de transmutação da matéria, eu estava em contato com verdadeiros alquimistas... Seres misteriosos (um deles parecia ter mais de cem anos de idade, o que não o impedia de se movimentar com a energia de um jovem adolescente) que se aproximou de mim porque Duna podia ser a pedra filosofal, a pedra que transforma todos os outros metais em ouro... Nessa seqüência, eles descreveram o que realmente ocorre quando eles conseguem, em suas experiências alquímicas, transformar a matéria...
Para a “guerrilha” com a qual Paul e Fremen combatem o exército imperial, eu tive a sorte de contatar um expert em guerrilha da América do Sul... Ele havia lutado na Bolívia, Chile, Peru e América Central... Sua inestimável experiência nos trouxe ao cenário de realismo marcial...
Quando Jessica se torna a suprema Mãe de Fremen, e precisa passar pelas cerimônias de iniciação, aprender medicina com os magos e contatar outras dimensões de realidade, eu conheci a medicina mágica de Ciganos através de Paul Derlon, já falecido... E a cerimônia com os cogumelos alucinógenos e operações miraculosas pela bruxa Pachita, um ser que possuía muito mais capacidade do que os auto-intitulados Cirurgiões Filipinos.
Meu filho Brontis, que faria o papel de Paul, foi iniciado aos nove anos de idade por um lendário guarda-costas – Jean-Pierre Viegneau – no combate com facas (em treinos reais), karate e arco e flecha... Ele recebeu lições de um verdadeiro mentat – Michel de Roisin – que tinha um cérebro enciclopédico... Eu me lembro de vê-lo dar a Brontis uma lição utilizando a fábula da Formiga e da Cigarra, que durou mais de quinze dias... Através dos versos, ele descreveu um período completo e suas civilizações.
Com a produção, eu cruzei o Sahara. Eu queria filmar Duna em Tassili, enquanto encarava os atores, milhares de extras e a equipe técnica, o calor tórrido e a secura para obter verdadeiros “solos” lunares... O governo Algeriano estava muito interessado pelo projeto...
Certa vez, uma Divindade me disse, em um sonho lúcido: “Seu próximo filme será Duna”. Eu não havia lido o livro ainda. Me levantei as 6 da manhã e como um alcoólatra que aguarda o bar abrir, esperei até alguém abrir a livraria para comprar o livro. Eu li de uma só vez, sem parar para comer ou beber. Exatamente à meia-noite do mesmo dia, terminei a leitura. Um minuto passado da meia-noite, liguei de Nova York para Michel Seydoux em Paris... Ele seria o primeiro dos sete samurais que seriam necessários para que eu levasse para frente o imenso projeto que tinha em mente. Michel para mim era um jovem (26 anos), sem experiência em cinema, mas sua companhia Câmera One havia comprado os direitos de Holy Mountain, meu último filme e havia o distribuído de maneira muito satisfatória... Ele havia dito para mim: “Eu gostaria de produzir um filme com você”. Eu não o conhecia muito bem, mas uma intuição que hoje me surpreende, me dizia, que apesar de jovem, ele era o maior dos produtores daquela época... Por que? Mistério... E eu não estava enganado. Quando eu disse que queria comprar os direitos de Duna e que o filme deveria ser internacional porque iria exceder os 10 milhões de dólares (soma fabulosa aquela época: até Hollywood não acreditava em filmes de ficção científica, 2001 era único e insuperável), ele não hesitou: “OK, estaremos em Los Angeles em dois dias para comprar os direitos”.
Ele não havia lido o livro... Eu acredito que ele ainda não havia lido porque a prosa de Herbert o aborrecia... E qualquer um poderia comprar os direitos facilmente, porque Hollywood achava o livro “infilmável” e não-comercial. Michel Seydoux me deu poder ilimitado e um enorme suporte financeiro: eu poderia criar minha própria equipe sem problemas econômicos.
3,000 desenhos
Eu precisava de um roteiro preciso... Eu queria fazer o filme inteiro no papel, antes de filmá-lo... Hoje em dia qualquer filme que use efeitos especiais são feitos desta forma, mas naquela época a técnica não era usada. Eu queria um desenhista de quadrinhos que tivesse o gênio e a velocidade, que poderia ser usado por mim como uma câmera e que ao mesmo tempo daria um estilo visual... Assim conheci meu segundo guerreiro: Jean Giraud, que tinha Moebius como pseudônimo (naquela época ele ainda não havia feito Arzach nem The AQirtight Garage). Eu disse a ele: “Se você aceitar este trabalho, você deve largar tudo que está fazendo e partir comigo amanhã para Los Angeles, para falarmos com Douglas Trumbull (2001: Uma odisséia no espaço)”. Moebius me me pediu algumas horas para pensar a respeito.
No dia seguinte, partimos para os Estados Unidos. Levaria tempo demais para contar... Nossa colaboração, nossos encontros na América com estranhos iluminados, nossas conversas às 7 da manhã em um pequeno café que ficava nos fundos do nosso workshop e que era por “coincidência” chamado “Café O Universo”. Moebius fez 3,000 desenhos, todos maravilhosos... O roteiro de Duna é, graças ao talento dele, uma obra-prima. Podemos ver os personagens como se eles estivessem vivos, e seguindo os movimentos de câmera. Visualizamos os “cortes”, as roupas, a decoração... Tudo isso feito com traços de lápis... Eu estava atrás dele, pedindo vários pontos de vista... Colocando em cena os atores, estaria tudo filmado.
Para o terceiro guerreiro, eu queria um sonhador esperto que pudesse desenhar naves que ficassem diferentes das dos filmes americanos. Esse foi o motivo que entrei em contato com Christopher Foss, um desenhista britânico que ilustrava capas de livros de ficção científica... Assim como Moebius, ele nunca havia pensado em se envolver com cinema... Com grande entusiasmo, ele deixou Londres e se estabeleceu em Paris... Este artista, com as naves criadas para Duna, marcou o Cinema. Ele podia produzir máquinas semi-vivas que poderiam se metamorfosear com a cor das pedras do espaço... Ele poderia produzir “sedentas naves de batalha morrendo século após século em um deserto estelar, esperando o corpo vivo que irá preencher seus tanques vazios com as sutis secreções de seu coração...”
Horror Metafísico
Depois encontrei Giger, um pintor suíço cujo catálogo me havia sido mostrado por Dalí... Sua arte decadente, doentia, suicida, brilhante, era perfeita para dar vida ao planeta dos Harkonnen... Ele fez o projeto de um castelo e planeta realmente tocados pelo horror metafísico. (mais tarde ele deu vida aos sets e o monstro de Alien).
Para os efeitos especiais, graças ao poder que Michael Seydoux havia me dado, eu pude recusar Douglas Trumbull... Eu não fui capaz de engolir sua vaidade, seu ar de líder de negócios e seus preços exorbitantes. Como um bom americano, ele demonstrou seu escárnio e desdém pelo projeto e ainda tentou nos constranger, fazendo-nos esperar enquanto falava ao mesmo tempo com 10 pessoas no telefone, e finalmente, nos mostrando máquinas soberbas, que ele tentava melhorar. Cansado de toda essa palhaçada, saí em busca de um talento jovem. Me falaram que fazer isso em Los Angeles era como procurar por uma agulha em um palheiro. Eu havia visto em um modesto festival de ficção científica, um filme feito sem fundos que havia achado maravilhoso: Dark Star.
Contatei o rapaz que havia feito os efeitos especiais: Dan O’Bannon. Era praticamente um filhote de lobo. Totalmente fora da realidade convencional, O’Bannon era para mim um verdadeiro gênio. Ele não conseguia acreditar que eu iria confiar um projeto importante como Duna a ele. Foi obrigado a crer quando recebeu sua passagem de avião para Paris. Eu não estava enganado: mais tarde, Dan O’Bannon montou todos os cenários de Alien e um bom número de outros filmes bem-sucedidos.
Com Jean-Paul Gibon, que era o produtor executivo da Camera-One e que gostou do projeto tanto quanto nós, partimos para a Inglaterra em busca de músicos. Um aspecto vital para mim: cada planeta teria seu estilo de música, uma banda como Magma, por exemplo, poderia muito bem dar conta dos ritmos de guerra dos Harkonnens que poderia expressar de maneira cristalina a beleza do planeta de areia, com seu mistério e força ressonantes, a estranha sinfonia dos anéis dos vermes gigantes.
A Virgin Records nos aceitou e nos ofereceu Gong, Mike Oldfield a Tangerine Dreams. Neste momento eu perguntei: “E porque não o Pink Floyd?” A banda naquela época era tão bem-sucedida que quase todos frisaram que se tratava de uma idéia praticamente irrealizável. Eu havia tido a chance, graças a meu filme El Topo, de conhecer e ser conhecido por esses músicos. Eles alegremente toparam nos receber em Londres, no Abbey Road, estúdio onde os Beatles haviam gravado seus sucessos. Jean-Paul Gibon estava agradavelmente surpreso que o grupo iria nos ver. Eu, à aquela altura, tinha praticamente perdido minha consciência individual. Eu era instrumento de um trabalho miraculoso, onde tudo poderia ser feito. Duna não estava a meu serviço, eu estava, como os samurais que havia encontrado, a serviço do projeto. Eles estavam gravando Dark Side of the Moon. Ao chegar, eu não me deparei com um grupo de músicos realizando sua obra-prima, e sim um bando de garotos comendo bifes com batatas. Jean-Paul e eu, de frente para eles, deveríamos esperar até que a voracidade fosse satisfeita.
Em nome de Duna, fui tomado por uma fúria divina e saí batendo a porta. Eu queria artistas que respeitassem um trabalho de tamanha importância para a consciência humana. Penso que eles não esperavam isso. Surpreso, David Gilmour correu atrás de nós dando desculpas e nos fez assistir a mixagem final do disco. Que êxtase!... Uma hora depois eles foram para o último concerto público, onde foram aclamados por milhares. Eles queriam assistir The Holy Mountain. Viram no Canadá. Decidiram participar do filme produzindo um álbum duplo, que se chamaria Duna. Vieram a Paris resolver a questão econômica, e após uma intensa discussão, chegamos a um acordo. Pink Floyd faria praticamente toda a trilha-sonora do filme.
100,000 mil dólares por hora
Com o melhor da música ao nosso lado, comecei a procurar os atores. Havia visto Charlotte Rampling em Zardoz. Eu a queria no papel de Jessica. Ela recusou o papel. Queria fazer dois ou três filmes comerciais, o amor pela vida a interessava mais do que a Arte. David Carradine veio a Paris, interessado no papel de Leto.
O ator que eu mais queria era Dalí, para o papel do Imperador louco... Que aventura!... O Imperador bufão, em minha opinião, só poderia ser interpretado por um homem de personalidade delirante como Dalí. Em Nova York, com Michael Seydoux e Jean-Paul Gibon, chego em nosso hotel, San Régis e no hall, vejo sentado El Salvador Dalí. Eu imaginei que seria indelicado me aproximar naquele momento, e no dia seguinte, liguei para ele. Falo espanhol. Dalí não havia visto meus filmes, mas alguns amigos haviam falado sobre eles com grande entusiasmo. Ele me convidou para uma exposição surrealista bem particular e prometeu deixar o convite embaixo da minha porta.
Às 6 horas daquele dia, encontrei o convite para duas pessoas, Dalí pediu que eu estivesse lá exatamente às 7. Cheguei com Michael Seydoux cinco minutos atrasado, Dalí não mais se encontrava no local. Ele veio, saiu de seu carro, passeou por um minuto no quarto e foi embora.
Pegamos um táxi e chegando ao hotel, por coincidência, me encontro com Dalí no hall novamente. Marco um encontro para o dia seguinte no bar do hotel, e então saio.
Esta noite, decido jantar em um restaurante francês e por outra coincidência, descubro que a poucos passos de nossa mesa está El Salvador Dalí, jantando com sua amiga Amanda Lear, e eu digo a ele: “Esta é a chance”. Ele me responde: “É mais do que isso. Iremos conversar amanhã!”, e no dia seguinte, o encontro no bar do hotel San Régis.
Dalí concorda bastante entusiasmado com a idéia de fazer o Imperador da Galáxia. Ele quer filmar em Cadaqués e usar como trono uma privada feito com dois golfinhos em intersecção. Os rabos irão formar os pés e as duas bocas abertas serão usadas, uma para receber a urina, e outra, as fezes. Dali acha de extremo mau-gosto misturar a urina com as fezes.
É dito a ele que precisaremos de sua presença por sete dias... Dalí responde que Deus fez o universo em Sete dias e que Dalí, não sendo menos que Deus, deve custar uma fortuna: 100,000 dólares a hora. Talvez, chegando ao set ele decida filmar mais de uma hora por dia pelo mesmo valor.
A única condição é que o Imperador tenha o trono escatológico. Ele não quer ler o roteiro: “Minhas idéias são melhores que as suas”. Ele quer escolher sua corte entre seus amigos, quer dizer o que ele quer e mais, no momento em que assinar o contrato, irá me dar de presente três idéias que eu terei o direito de escolher usar ou não.
O acontecimento “Daliesco” irá nos custar 700,000 dólares. Eu peço um tempo, uma noite para tomar a decisão, e parto. Aquela noite, eu tiro uma página de um livro de tarô e tem uma carta reproduzida: o Homem Enforcado. Eu escrevo uma carta dizendo a ele que não podemos bancar 700,000 dólares, mas que tentarei convencer meu produtor a usa-lo por três dias, recebendo a soma de 300,000 dólares.
No dia seguinte, envio a carta para Dalí. Ele dará a resposta em Paris.
Em Paris, Dalí nos convida via telefone a encontra-lo no hotel Meurice. Não é surpresa o fato dele não estar sozinho: tem um equipe de pessoas, vendedores, modelos, jovens e belos homens, uma mulher que ele chama de Rei e é viril, uma enorme alemã que irá posar para Dalí, um cara que diz ser neto do pétomane (o homem que em 1900 tocou nas salas de música, e de quem Dali diz que com sua nádega fez o que o Tino Rossi não fez com a garganta).
Eu não tenho a chance de conversar com o pintor porque ele nos leva junto a um jantar, e nesse jantar, Dalí quer falar comigo a respeito do filme. Dessa forma, preparo um pequeno questionário: como um Imperador morre? Como é o palácio? Como ele se veste? Etc.
Em um festival onde encontro Mick Jagger, Nathalie Delon, Johnny Hallyday e outras celebridades, Dalí demonstra todo seu entusiasmo pelo papel de Imperador e quando dou a ele meu questionário dizendo: “Vim preparado”, ele me responde: “Eu também”. Ele puxa de seu bolso o desenho da privada-trono feita com os golfinhos e me diz: “É imprescindível que o imperador seja mostrado produzindo seus excrementos”. Eu pergunto se ele está pronto para mostrar seu genital e ânus e ele diz para mim que gostaria de ser “dublado”, que só quer ser visto sentado.
Dalí considera minha carta como uma espécie de contrato. Ele está tocado pela imagem do Homem Enforcado e diz: “Eu vejo o Homem Enforcado com seus cabelos como raízes no chão, e por suas nádegas, uma coluna de merda ligada aos céus”. Uns dias depois, o neto do pétomane nos convida para um encontro em Barcelona. Mas Dalí me chama antes para um almoço e fala sobre o seu papel. Ele não quer ser “dirigido” (colocado em cena). Ele quer fazer o que der na telha. Eu pergunto a ele: “Se eu fosse um homem rico e pedisse para que você me pintasse um quadro que você gostaria, mas na forma de uma mesa octagonal, você faria?”
Dalí: “Sim”
Eu: “Então é possível que trabalhemos juntos. Eu irei dirigi-lo enquanto lhe pergunto e você me responderá com as ações”.
Amanda Lear
Dalí aceita. Eu penso que será uma “briga” formidável. Será necessário achar questões que contenham apenas uma resposta. E será preciso que eu encare suas respostas como falhas.
Por exemplo, se eu perguntar como iremos vestir o Imperador, é possível que ele me responda: “No século 20, Dalí será considerado Deus, como hoje é Cristo. O Imperador do Universo se vestirá como Dalí”.
Se eu perguntar como será o palácio, ele pode me responder: “Como uma reprodução da velha mansão de Perpignan”. Se ele me der essas duas respostas, eu posso matar Duna e deverei dizer que tudo tem um limite: Dalí não pode interpretar Dalí.
A idéia de tal “partida” me parece surrealista e eu estou mais do que pronto para trabalhar com o pintor sem levar em conta as palavras que me foram ditas por Amanda Lear, que, interessada no papel de Irulan, a filha do Imperador, disse em um jantar que o Mestre é um sabotador masoquista, e que sempre gosta quando as coisas falham.
Um roteirista que fez um filme para a TV com Dalí me alertou que o mesmo era imprevisível a ponto de escolher ser filmado em cantos escuros, e mesmo tendo passado todo o dia nos sets iluminados, se recusa a colocar os pés por lá até o último segundo.
Isso me dá a idéia de no dia das filmagens, filmar Dalí não apenas no set, mas também nos corredores, banheiros, telhados, tudo. Se não tivermos cantos escuros, esta batalha estará vencida. Algo me diz que para ele, a carta do Homem Enforcado é seu contrato.
Chegamos uma hora depois em Barcelona. Antes de encontrarmo-nos, eu decido encarar o problema via telefone. Falo com o descendente do pétomane: “Escute, não perca tempo, não podemos oferecer ao Dalí 300,000 dólares. Temos apenas 150,000. Se ele não estiver interessado, voarei de volta para Paris. Se ele se interessar, ligue-nos de volta em 10 minutos”.
Ao final dos 10 minutos, recebemos o retorno: “Podem vir, Dalí os espera.”
Dalí, neste momento, se encontra relativamente sozinho. Amanda Lear está presente com duas secretárias, e começa o assunto depreciando-o de forma cortês: “Dalí é como um táxi, quanto mais tempo passa, mais caro fica, e quanto mais caro fica, menos você quer pagar!. Eu finalmente apresento Jean-Paul Gibon a ele. Tento entrar em um acordo. É praticamente impossível filmarmos em Cadaquès, precisará ser feito em Paris.
Por 150,000 dólares eu quero três dias de filmagem, não apenas uma hora e meia. Eu também gostaria de fazer um boneco de polietileno, para usar como seu “duplo” no filme. Dalí fica irritadíssimo: “Vocês são como ratos! Eu irei filmar em Paris, mas irá custar mais caro do que se fosse em Cadaquès. Dalí custa 100,000 dólares a hora!”
Ele se acalma e concorda com a idéia de ser reproduzido em plástico, se após as filmagens eu der a escultura para seu museu. Eu decido definitivamente fechar o contrato no dia seguinte. Discuto com Jean-Paul Gibon e concluo que é impossível pechinchar com Dalí. Eu medito e tomo a decisão final: reduzo o papel de Dalí para apenas uma página e meia de roteiro. Eu aceito seu preço, 100,000 dólares a hora, mas o utilizarei por apenas uma hora. O restante, filmarei com seu sósia robô. A Dalí não é permitido reconsiderar seu preço. Vou vê-lo. Dou-lhe a pequena página, a ele aceita a proposta porque sua honra está segura. Será o ator mais bem pago da história do cinema. Ganhará mais que Greta Garbo.
Dalí, entusiasmado, me mostra sua cama com escultura de golfinho. Um trabalhador já está pegando as formas para montar a privada-trono.
Para Dalí, assim como para mim, o tarô do Homem Enforcado onde escrevi algumas palavras, serve como contrato.
Dalí aprecia a aristocracia e como um homem de espírito nobre, mantém sua palavra.
Após a assinatura do contrato, eu celebro com um grande jantar, onde Dalí é nomeado Cavaleiro de Grayfish. Ele me faz sentar de um lado, e do outro, ele acomoda Pasolini. Durante todo o jantar ele introduz comida diretamente de seus dedos na boca de Pasolini.
Eu me preocupo, já que quero ser o primeiro a utilizar Dalí como ator e estava chocado com a descoberta de um novo diretor conosco.
Amanda Lear diz para mim: “Você não deve se preocupar. Pasolini apenas está aqui para requerer uma permissão para usar um quadro de Dalí como pôster de seu filme 120 dias de Sodoma. Dalí quer 100,000 dólares dele. Ele aprecia pessoas que brigam por ele”.
Não é Hollywood o bastante
Eu adorei lutar por Duna. Vencemos a maioria das batalhas, mas perdemos a guerra. O projeto foi sabotado em Hollywood. Era francês, e não americano. A mensagem era de que “não era Hollywood o bastante”. Houve intrigas. O storyboard circulou por todos os grandes estúdios da época. Mais tarde, o aspecto visual de Star Wars lembrava o nosso estilo. Para fazer Alien, eles chamaram Moebius, Foss, Giger, O’Bannon, etc. O projeto anunciou aos americanos a possibilidade de se fazer filmes de ficção científica como grandes espetáculos, sem o rigor científico de 2001: Uma Odisséia no Espaço.
O projeto de Duna mudou nossa vida. Quando o mesmo foi terminado, O’Bannon se internou em um hospital psiquiátrico. Depois voltou a luta cheio de raiva e escreveu doze roteiros que foram recusados. O décimo terceiro foi Alien.
Assim como ele, todos que participaram da ascensão e queda do projeto Duna aprenderam a cair milhares de vezes com selvagem obstinação até se levantarem. Eu me lembro de meu velho pai, que enquanto morria alegremente, me disse: “Meu filho, em minha vida, eu triunfei pois aprendi a falhar”.
*Traduzido do artigo “THE FILM YOU WILL NEVER SEE”, que por sua vez foi retirado do suplemento “DUNE LE FILM QUE VOUS NE VERREZ JAMAIS” publicado em Metal Hurlant 107
Por Alejandro Jodorowsky
Tradução: Raphael Carneiro
Existe uma lenda Hebraica que diz: “o Messias não será um homem, mas sim um dia: o dia em que todos os seres humanos forem iluminados”. Cabalistas falam a respeito de uma consciência coletiva, cósmica, uma espécie de meta-Universo. Aqui está o que todo o projeto de DUNA significou para mim.
Entusiástica Admiração
De forma a mostrar o processo de iluminação de um herói, de um povo e de um planeta inteiro (que por sua vez, é o Messias do Universo, já que saindo de sua órbita, o planeta sagrado passa a espalhar a sua luz através de todas as galáxias)...
Eu não queria respeitar o livro, eu queria recriá-lo. Para mim, Duna não pertence a Herbert assim como Don Quixote não pertence a Cervantes, nem Édipo a Esquilo.
Existe um artista, apenas um, em meio a milhões de outros artistas, que apenas uma vez em sua vida, por uma espécie de graça divina, recebe um tema imortal, um MITO... Eu digo “recebe” e não “cria” porque um trabalho de arte é recebido em estado de mediunidade direto do inconsciente coletivo. O trabalho excede o artista, e de certa forma o mata, porque a humanidade, recebendo o impacto do Mito, tem a necessidade primordial de apagar o indivíduo que recebeu e transmitiu (o mito): sua personalidade individual obstrui, mancha a pureza da mensagem, que em seu princípio fundamental, pede para ser anônima... Não sabemos quem criou a catedral de Notre-Dame, nem quem criou o calendário solar Asteca, muito menos o tarô de Marseilles, nem o mito de Don Juan, etc.
Penso que Cervantes nos deu SUA versão de Don Quixote – obviamente incompleta – e que carregamos em nosso coração o personagem completo... Cristo não pertence a Marcos, nem a Lucas, nem Matheus e muito menos João... Existem muitos evangelhos conhecidos como Apócrifos e existem tantas vidas de Cristo quanto existem crentes. Cada um de nós tem a sua própria versão de Duna, sua Jessica, seu Paul... Eu sentia uma entusiástica admiração por Herbert, e ao mesmo tempo, me sentia em conflito (e imagino que o mesmo ocorria com ele)... Ele me obstruía... Eu não o queria como um conselheiro técnico... Eu fiz de tudo para afastá-lo do projeto... Eu havia recebido uma versão do Mito e queria transmiti-la: o Mito deveria desistir de sua forma literária e se tornar Imagem.
No filme, o Duque Leto (pai de Paul) seria um homem castrado em um combate ritual contra um touro nas arenas (e o emblema da Casa dos Atreides seria um Touro Sagrado Coroado...) Jessica – freira de Bene Gesserit -, enviada como uma concubina para o Duque com o objetivo de criar uma garota que seria a mãe de um Messias, se apaixona por Leto com tal intensidade que decide pular essa “corrente” e criar um filho, Kwisatz Haderach, o salvador. Utilizando suas capacidades de Bene Gesserit – assim que o Duque, intensamente apaixonado revela seu triste segredo – Jessica é inseminada com uma gota de sangue deste homem estéril... A câmera seguiria (no script) a gota vermelha através dos ovários da mulher até se encontrar com o óvulo, onde, por uma miraculosa explosão, fertilizaria. Paul nasceria de uma virgem; e não pelo esperma de seu pai, mas pelo seu sangue...
Imperador Insano
Em minha versão de Duna, o Imperador da Galáxia é um homem louco. Ele vive em um planeta artificial de ouro, dentro de um palácio de ouro construído de acordo com as não-leis da anti-lógica. Ele vive em simbiose com um robô idêntico a ele. A semelhança é tão perfeita que os cidadãos nunca sabem se estão na presença do homem ou da máquina...
Em minha versão, a Especiaria é uma droga azul de consistência esponjosa repleta de uma forma de vida animal-vegetal dotada de consciência, o maior nível de consciência. Não para de tomar todos os tipos de forma, sempre de maneira inspiradora. A Especiaria produz continuamente a criação de inúmeros universos.
O Barão Harkonnen é um homem imenso, de 300kg. Ele é tão gordo e pesado que, para se mover, ele precisa continuamente utilizar-se de bolhas anti-gravicionais presas as suas extremidades... Suas ilusões de grandeza não têm limites: ele vive em um palácio que é construído como um retrato de si mesmo... A imensa escultura é desenhada sobre um sórdido e pantanoso planeta... Para entrar no palácio, as pessoas devem esperar que o colosso abra sua boca e lance uma língua de aço (algo como um campo de pouso)...
Ao final do filme, a esposa do Conde Fenring se movimenta em direção de Paul, que já se tornou Fremen, e corta sua garganta. Paul, enquanto morre diz: “Tarde demais, ninguém pode me matar... porque...
- Porque, (continua Jessica com a voz de Paul), para matar o Kwisatz Haderach, você terá de me matar também...” E cada Fremen, cada Astreide falam agora com a voz de Paul: “Eu sou o homem coletivo. Aquele que mostrará o caminho.”
A situação muda rapidamente. Três colunas de luz jorram do planeta. Se misturam. Mergulham na areia do planeta: “Eu sou a terra que aguarda a semente!” O chão treme. Água cai e forma um pilar cercado por fogo.
Filamentos prateados emergem da Especiaria. Cria um arco-íris. Forma-se uma nuvem de água, que produz uma “lava” vermelha. Um anel azul circunda o planeta agora. É dividido. Produz mais e mais anéis. Duna é agora um mundo iluminado, que cruza a galáxia, espalhando luz – que é a Consciência – para todo o universo.
Verdadeiros Alquimistas
Para conceber esta seqüência final de transmutação da matéria, eu estava em contato com verdadeiros alquimistas... Seres misteriosos (um deles parecia ter mais de cem anos de idade, o que não o impedia de se movimentar com a energia de um jovem adolescente) que se aproximou de mim porque Duna podia ser a pedra filosofal, a pedra que transforma todos os outros metais em ouro... Nessa seqüência, eles descreveram o que realmente ocorre quando eles conseguem, em suas experiências alquímicas, transformar a matéria...
Para a “guerrilha” com a qual Paul e Fremen combatem o exército imperial, eu tive a sorte de contatar um expert em guerrilha da América do Sul... Ele havia lutado na Bolívia, Chile, Peru e América Central... Sua inestimável experiência nos trouxe ao cenário de realismo marcial...
Quando Jessica se torna a suprema Mãe de Fremen, e precisa passar pelas cerimônias de iniciação, aprender medicina com os magos e contatar outras dimensões de realidade, eu conheci a medicina mágica de Ciganos através de Paul Derlon, já falecido... E a cerimônia com os cogumelos alucinógenos e operações miraculosas pela bruxa Pachita, um ser que possuía muito mais capacidade do que os auto-intitulados Cirurgiões Filipinos.
Meu filho Brontis, que faria o papel de Paul, foi iniciado aos nove anos de idade por um lendário guarda-costas – Jean-Pierre Viegneau – no combate com facas (em treinos reais), karate e arco e flecha... Ele recebeu lições de um verdadeiro mentat – Michel de Roisin – que tinha um cérebro enciclopédico... Eu me lembro de vê-lo dar a Brontis uma lição utilizando a fábula da Formiga e da Cigarra, que durou mais de quinze dias... Através dos versos, ele descreveu um período completo e suas civilizações.
Com a produção, eu cruzei o Sahara. Eu queria filmar Duna em Tassili, enquanto encarava os atores, milhares de extras e a equipe técnica, o calor tórrido e a secura para obter verdadeiros “solos” lunares... O governo Algeriano estava muito interessado pelo projeto...
Certa vez, uma Divindade me disse, em um sonho lúcido: “Seu próximo filme será Duna”. Eu não havia lido o livro ainda. Me levantei as 6 da manhã e como um alcoólatra que aguarda o bar abrir, esperei até alguém abrir a livraria para comprar o livro. Eu li de uma só vez, sem parar para comer ou beber. Exatamente à meia-noite do mesmo dia, terminei a leitura. Um minuto passado da meia-noite, liguei de Nova York para Michel Seydoux em Paris... Ele seria o primeiro dos sete samurais que seriam necessários para que eu levasse para frente o imenso projeto que tinha em mente. Michel para mim era um jovem (26 anos), sem experiência em cinema, mas sua companhia Câmera One havia comprado os direitos de Holy Mountain, meu último filme e havia o distribuído de maneira muito satisfatória... Ele havia dito para mim: “Eu gostaria de produzir um filme com você”. Eu não o conhecia muito bem, mas uma intuição que hoje me surpreende, me dizia, que apesar de jovem, ele era o maior dos produtores daquela época... Por que? Mistério... E eu não estava enganado. Quando eu disse que queria comprar os direitos de Duna e que o filme deveria ser internacional porque iria exceder os 10 milhões de dólares (soma fabulosa aquela época: até Hollywood não acreditava em filmes de ficção científica, 2001 era único e insuperável), ele não hesitou: “OK, estaremos em Los Angeles em dois dias para comprar os direitos”.
Ele não havia lido o livro... Eu acredito que ele ainda não havia lido porque a prosa de Herbert o aborrecia... E qualquer um poderia comprar os direitos facilmente, porque Hollywood achava o livro “infilmável” e não-comercial. Michel Seydoux me deu poder ilimitado e um enorme suporte financeiro: eu poderia criar minha própria equipe sem problemas econômicos.
3,000 desenhos
Eu precisava de um roteiro preciso... Eu queria fazer o filme inteiro no papel, antes de filmá-lo... Hoje em dia qualquer filme que use efeitos especiais são feitos desta forma, mas naquela época a técnica não era usada. Eu queria um desenhista de quadrinhos que tivesse o gênio e a velocidade, que poderia ser usado por mim como uma câmera e que ao mesmo tempo daria um estilo visual... Assim conheci meu segundo guerreiro: Jean Giraud, que tinha Moebius como pseudônimo (naquela época ele ainda não havia feito Arzach nem The AQirtight Garage). Eu disse a ele: “Se você aceitar este trabalho, você deve largar tudo que está fazendo e partir comigo amanhã para Los Angeles, para falarmos com Douglas Trumbull (2001: Uma odisséia no espaço)”. Moebius me me pediu algumas horas para pensar a respeito.
No dia seguinte, partimos para os Estados Unidos. Levaria tempo demais para contar... Nossa colaboração, nossos encontros na América com estranhos iluminados, nossas conversas às 7 da manhã em um pequeno café que ficava nos fundos do nosso workshop e que era por “coincidência” chamado “Café O Universo”. Moebius fez 3,000 desenhos, todos maravilhosos... O roteiro de Duna é, graças ao talento dele, uma obra-prima. Podemos ver os personagens como se eles estivessem vivos, e seguindo os movimentos de câmera. Visualizamos os “cortes”, as roupas, a decoração... Tudo isso feito com traços de lápis... Eu estava atrás dele, pedindo vários pontos de vista... Colocando em cena os atores, estaria tudo filmado.
Para o terceiro guerreiro, eu queria um sonhador esperto que pudesse desenhar naves que ficassem diferentes das dos filmes americanos. Esse foi o motivo que entrei em contato com Christopher Foss, um desenhista britânico que ilustrava capas de livros de ficção científica... Assim como Moebius, ele nunca havia pensado em se envolver com cinema... Com grande entusiasmo, ele deixou Londres e se estabeleceu em Paris... Este artista, com as naves criadas para Duna, marcou o Cinema. Ele podia produzir máquinas semi-vivas que poderiam se metamorfosear com a cor das pedras do espaço... Ele poderia produzir “sedentas naves de batalha morrendo século após século em um deserto estelar, esperando o corpo vivo que irá preencher seus tanques vazios com as sutis secreções de seu coração...”
Horror Metafísico
Depois encontrei Giger, um pintor suíço cujo catálogo me havia sido mostrado por Dalí... Sua arte decadente, doentia, suicida, brilhante, era perfeita para dar vida ao planeta dos Harkonnen... Ele fez o projeto de um castelo e planeta realmente tocados pelo horror metafísico. (mais tarde ele deu vida aos sets e o monstro de Alien).
Para os efeitos especiais, graças ao poder que Michael Seydoux havia me dado, eu pude recusar Douglas Trumbull... Eu não fui capaz de engolir sua vaidade, seu ar de líder de negócios e seus preços exorbitantes. Como um bom americano, ele demonstrou seu escárnio e desdém pelo projeto e ainda tentou nos constranger, fazendo-nos esperar enquanto falava ao mesmo tempo com 10 pessoas no telefone, e finalmente, nos mostrando máquinas soberbas, que ele tentava melhorar. Cansado de toda essa palhaçada, saí em busca de um talento jovem. Me falaram que fazer isso em Los Angeles era como procurar por uma agulha em um palheiro. Eu havia visto em um modesto festival de ficção científica, um filme feito sem fundos que havia achado maravilhoso: Dark Star.
Contatei o rapaz que havia feito os efeitos especiais: Dan O’Bannon. Era praticamente um filhote de lobo. Totalmente fora da realidade convencional, O’Bannon era para mim um verdadeiro gênio. Ele não conseguia acreditar que eu iria confiar um projeto importante como Duna a ele. Foi obrigado a crer quando recebeu sua passagem de avião para Paris. Eu não estava enganado: mais tarde, Dan O’Bannon montou todos os cenários de Alien e um bom número de outros filmes bem-sucedidos.
Com Jean-Paul Gibon, que era o produtor executivo da Camera-One e que gostou do projeto tanto quanto nós, partimos para a Inglaterra em busca de músicos. Um aspecto vital para mim: cada planeta teria seu estilo de música, uma banda como Magma, por exemplo, poderia muito bem dar conta dos ritmos de guerra dos Harkonnens que poderia expressar de maneira cristalina a beleza do planeta de areia, com seu mistério e força ressonantes, a estranha sinfonia dos anéis dos vermes gigantes.
A Virgin Records nos aceitou e nos ofereceu Gong, Mike Oldfield a Tangerine Dreams. Neste momento eu perguntei: “E porque não o Pink Floyd?” A banda naquela época era tão bem-sucedida que quase todos frisaram que se tratava de uma idéia praticamente irrealizável. Eu havia tido a chance, graças a meu filme El Topo, de conhecer e ser conhecido por esses músicos. Eles alegremente toparam nos receber em Londres, no Abbey Road, estúdio onde os Beatles haviam gravado seus sucessos. Jean-Paul Gibon estava agradavelmente surpreso que o grupo iria nos ver. Eu, à aquela altura, tinha praticamente perdido minha consciência individual. Eu era instrumento de um trabalho miraculoso, onde tudo poderia ser feito. Duna não estava a meu serviço, eu estava, como os samurais que havia encontrado, a serviço do projeto. Eles estavam gravando Dark Side of the Moon. Ao chegar, eu não me deparei com um grupo de músicos realizando sua obra-prima, e sim um bando de garotos comendo bifes com batatas. Jean-Paul e eu, de frente para eles, deveríamos esperar até que a voracidade fosse satisfeita.
Em nome de Duna, fui tomado por uma fúria divina e saí batendo a porta. Eu queria artistas que respeitassem um trabalho de tamanha importância para a consciência humana. Penso que eles não esperavam isso. Surpreso, David Gilmour correu atrás de nós dando desculpas e nos fez assistir a mixagem final do disco. Que êxtase!... Uma hora depois eles foram para o último concerto público, onde foram aclamados por milhares. Eles queriam assistir The Holy Mountain. Viram no Canadá. Decidiram participar do filme produzindo um álbum duplo, que se chamaria Duna. Vieram a Paris resolver a questão econômica, e após uma intensa discussão, chegamos a um acordo. Pink Floyd faria praticamente toda a trilha-sonora do filme.
100,000 mil dólares por hora
Com o melhor da música ao nosso lado, comecei a procurar os atores. Havia visto Charlotte Rampling em Zardoz. Eu a queria no papel de Jessica. Ela recusou o papel. Queria fazer dois ou três filmes comerciais, o amor pela vida a interessava mais do que a Arte. David Carradine veio a Paris, interessado no papel de Leto.
O ator que eu mais queria era Dalí, para o papel do Imperador louco... Que aventura!... O Imperador bufão, em minha opinião, só poderia ser interpretado por um homem de personalidade delirante como Dalí. Em Nova York, com Michael Seydoux e Jean-Paul Gibon, chego em nosso hotel, San Régis e no hall, vejo sentado El Salvador Dalí. Eu imaginei que seria indelicado me aproximar naquele momento, e no dia seguinte, liguei para ele. Falo espanhol. Dalí não havia visto meus filmes, mas alguns amigos haviam falado sobre eles com grande entusiasmo. Ele me convidou para uma exposição surrealista bem particular e prometeu deixar o convite embaixo da minha porta.
Às 6 horas daquele dia, encontrei o convite para duas pessoas, Dalí pediu que eu estivesse lá exatamente às 7. Cheguei com Michael Seydoux cinco minutos atrasado, Dalí não mais se encontrava no local. Ele veio, saiu de seu carro, passeou por um minuto no quarto e foi embora.
Pegamos um táxi e chegando ao hotel, por coincidência, me encontro com Dalí no hall novamente. Marco um encontro para o dia seguinte no bar do hotel, e então saio.
Esta noite, decido jantar em um restaurante francês e por outra coincidência, descubro que a poucos passos de nossa mesa está El Salvador Dalí, jantando com sua amiga Amanda Lear, e eu digo a ele: “Esta é a chance”. Ele me responde: “É mais do que isso. Iremos conversar amanhã!”, e no dia seguinte, o encontro no bar do hotel San Régis.
Dalí concorda bastante entusiasmado com a idéia de fazer o Imperador da Galáxia. Ele quer filmar em Cadaqués e usar como trono uma privada feito com dois golfinhos em intersecção. Os rabos irão formar os pés e as duas bocas abertas serão usadas, uma para receber a urina, e outra, as fezes. Dali acha de extremo mau-gosto misturar a urina com as fezes.
É dito a ele que precisaremos de sua presença por sete dias... Dalí responde que Deus fez o universo em Sete dias e que Dalí, não sendo menos que Deus, deve custar uma fortuna: 100,000 dólares a hora. Talvez, chegando ao set ele decida filmar mais de uma hora por dia pelo mesmo valor.
A única condição é que o Imperador tenha o trono escatológico. Ele não quer ler o roteiro: “Minhas idéias são melhores que as suas”. Ele quer escolher sua corte entre seus amigos, quer dizer o que ele quer e mais, no momento em que assinar o contrato, irá me dar de presente três idéias que eu terei o direito de escolher usar ou não.
O acontecimento “Daliesco” irá nos custar 700,000 dólares. Eu peço um tempo, uma noite para tomar a decisão, e parto. Aquela noite, eu tiro uma página de um livro de tarô e tem uma carta reproduzida: o Homem Enforcado. Eu escrevo uma carta dizendo a ele que não podemos bancar 700,000 dólares, mas que tentarei convencer meu produtor a usa-lo por três dias, recebendo a soma de 300,000 dólares.
No dia seguinte, envio a carta para Dalí. Ele dará a resposta em Paris.
Em Paris, Dalí nos convida via telefone a encontra-lo no hotel Meurice. Não é surpresa o fato dele não estar sozinho: tem um equipe de pessoas, vendedores, modelos, jovens e belos homens, uma mulher que ele chama de Rei e é viril, uma enorme alemã que irá posar para Dalí, um cara que diz ser neto do pétomane (o homem que em 1900 tocou nas salas de música, e de quem Dali diz que com sua nádega fez o que o Tino Rossi não fez com a garganta).
Eu não tenho a chance de conversar com o pintor porque ele nos leva junto a um jantar, e nesse jantar, Dalí quer falar comigo a respeito do filme. Dessa forma, preparo um pequeno questionário: como um Imperador morre? Como é o palácio? Como ele se veste? Etc.
Em um festival onde encontro Mick Jagger, Nathalie Delon, Johnny Hallyday e outras celebridades, Dalí demonstra todo seu entusiasmo pelo papel de Imperador e quando dou a ele meu questionário dizendo: “Vim preparado”, ele me responde: “Eu também”. Ele puxa de seu bolso o desenho da privada-trono feita com os golfinhos e me diz: “É imprescindível que o imperador seja mostrado produzindo seus excrementos”. Eu pergunto se ele está pronto para mostrar seu genital e ânus e ele diz para mim que gostaria de ser “dublado”, que só quer ser visto sentado.
Dalí considera minha carta como uma espécie de contrato. Ele está tocado pela imagem do Homem Enforcado e diz: “Eu vejo o Homem Enforcado com seus cabelos como raízes no chão, e por suas nádegas, uma coluna de merda ligada aos céus”. Uns dias depois, o neto do pétomane nos convida para um encontro em Barcelona. Mas Dalí me chama antes para um almoço e fala sobre o seu papel. Ele não quer ser “dirigido” (colocado em cena). Ele quer fazer o que der na telha. Eu pergunto a ele: “Se eu fosse um homem rico e pedisse para que você me pintasse um quadro que você gostaria, mas na forma de uma mesa octagonal, você faria?”
Dalí: “Sim”
Eu: “Então é possível que trabalhemos juntos. Eu irei dirigi-lo enquanto lhe pergunto e você me responderá com as ações”.
Amanda Lear
Dalí aceita. Eu penso que será uma “briga” formidável. Será necessário achar questões que contenham apenas uma resposta. E será preciso que eu encare suas respostas como falhas.
Por exemplo, se eu perguntar como iremos vestir o Imperador, é possível que ele me responda: “No século 20, Dalí será considerado Deus, como hoje é Cristo. O Imperador do Universo se vestirá como Dalí”.
Se eu perguntar como será o palácio, ele pode me responder: “Como uma reprodução da velha mansão de Perpignan”. Se ele me der essas duas respostas, eu posso matar Duna e deverei dizer que tudo tem um limite: Dalí não pode interpretar Dalí.
A idéia de tal “partida” me parece surrealista e eu estou mais do que pronto para trabalhar com o pintor sem levar em conta as palavras que me foram ditas por Amanda Lear, que, interessada no papel de Irulan, a filha do Imperador, disse em um jantar que o Mestre é um sabotador masoquista, e que sempre gosta quando as coisas falham.
Um roteirista que fez um filme para a TV com Dalí me alertou que o mesmo era imprevisível a ponto de escolher ser filmado em cantos escuros, e mesmo tendo passado todo o dia nos sets iluminados, se recusa a colocar os pés por lá até o último segundo.
Isso me dá a idéia de no dia das filmagens, filmar Dalí não apenas no set, mas também nos corredores, banheiros, telhados, tudo. Se não tivermos cantos escuros, esta batalha estará vencida. Algo me diz que para ele, a carta do Homem Enforcado é seu contrato.
Chegamos uma hora depois em Barcelona. Antes de encontrarmo-nos, eu decido encarar o problema via telefone. Falo com o descendente do pétomane: “Escute, não perca tempo, não podemos oferecer ao Dalí 300,000 dólares. Temos apenas 150,000. Se ele não estiver interessado, voarei de volta para Paris. Se ele se interessar, ligue-nos de volta em 10 minutos”.
Ao final dos 10 minutos, recebemos o retorno: “Podem vir, Dalí os espera.”
Dalí, neste momento, se encontra relativamente sozinho. Amanda Lear está presente com duas secretárias, e começa o assunto depreciando-o de forma cortês: “Dalí é como um táxi, quanto mais tempo passa, mais caro fica, e quanto mais caro fica, menos você quer pagar!. Eu finalmente apresento Jean-Paul Gibon a ele. Tento entrar em um acordo. É praticamente impossível filmarmos em Cadaquès, precisará ser feito em Paris.
Por 150,000 dólares eu quero três dias de filmagem, não apenas uma hora e meia. Eu também gostaria de fazer um boneco de polietileno, para usar como seu “duplo” no filme. Dalí fica irritadíssimo: “Vocês são como ratos! Eu irei filmar em Paris, mas irá custar mais caro do que se fosse em Cadaquès. Dalí custa 100,000 dólares a hora!”
Ele se acalma e concorda com a idéia de ser reproduzido em plástico, se após as filmagens eu der a escultura para seu museu. Eu decido definitivamente fechar o contrato no dia seguinte. Discuto com Jean-Paul Gibon e concluo que é impossível pechinchar com Dalí. Eu medito e tomo a decisão final: reduzo o papel de Dalí para apenas uma página e meia de roteiro. Eu aceito seu preço, 100,000 dólares a hora, mas o utilizarei por apenas uma hora. O restante, filmarei com seu sósia robô. A Dalí não é permitido reconsiderar seu preço. Vou vê-lo. Dou-lhe a pequena página, a ele aceita a proposta porque sua honra está segura. Será o ator mais bem pago da história do cinema. Ganhará mais que Greta Garbo.
Dalí, entusiasmado, me mostra sua cama com escultura de golfinho. Um trabalhador já está pegando as formas para montar a privada-trono.
Para Dalí, assim como para mim, o tarô do Homem Enforcado onde escrevi algumas palavras, serve como contrato.
Dalí aprecia a aristocracia e como um homem de espírito nobre, mantém sua palavra.
Após a assinatura do contrato, eu celebro com um grande jantar, onde Dalí é nomeado Cavaleiro de Grayfish. Ele me faz sentar de um lado, e do outro, ele acomoda Pasolini. Durante todo o jantar ele introduz comida diretamente de seus dedos na boca de Pasolini.
Eu me preocupo, já que quero ser o primeiro a utilizar Dalí como ator e estava chocado com a descoberta de um novo diretor conosco.
Amanda Lear diz para mim: “Você não deve se preocupar. Pasolini apenas está aqui para requerer uma permissão para usar um quadro de Dalí como pôster de seu filme 120 dias de Sodoma. Dalí quer 100,000 dólares dele. Ele aprecia pessoas que brigam por ele”.
Não é Hollywood o bastante
Eu adorei lutar por Duna. Vencemos a maioria das batalhas, mas perdemos a guerra. O projeto foi sabotado em Hollywood. Era francês, e não americano. A mensagem era de que “não era Hollywood o bastante”. Houve intrigas. O storyboard circulou por todos os grandes estúdios da época. Mais tarde, o aspecto visual de Star Wars lembrava o nosso estilo. Para fazer Alien, eles chamaram Moebius, Foss, Giger, O’Bannon, etc. O projeto anunciou aos americanos a possibilidade de se fazer filmes de ficção científica como grandes espetáculos, sem o rigor científico de 2001: Uma Odisséia no Espaço.
O projeto de Duna mudou nossa vida. Quando o mesmo foi terminado, O’Bannon se internou em um hospital psiquiátrico. Depois voltou a luta cheio de raiva e escreveu doze roteiros que foram recusados. O décimo terceiro foi Alien.
Assim como ele, todos que participaram da ascensão e queda do projeto Duna aprenderam a cair milhares de vezes com selvagem obstinação até se levantarem. Eu me lembro de meu velho pai, que enquanto morria alegremente, me disse: “Meu filho, em minha vida, eu triunfei pois aprendi a falhar”.
*Traduzido do artigo “THE FILM YOU WILL NEVER SEE”, que por sua vez foi retirado do suplemento “DUNE LE FILM QUE VOUS NE VERREZ JAMAIS” publicado em Metal Hurlant 107