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Dossiê Guilherme de Almeida Prado

A Dama do Cine Shanghai
Direção: Guilherme de Almeida Prado
Brasil, 1987.

Por Gabriel Carneiro

Não é à toa que A Dama do Cine Shanghai é considerado o melhor filme de Guilherme de Almeida Prado. Lá estão todas as características do cineasta cinéfilo, e lá estão também todos os atributos para um fã de filmes sagazes com múltiplas referências. Partindo do pressuposto que criação nada mais é que uma maneira de reinventar uma história, é a forma como será contada, o diretor busca numa tradicional maneira americana de se fazer cinema – o cinema noir dos anos 40 -, para, em cores, fomentar um universo cinematográfico muito rico.

A Dama do título é a personagem de uma exuberante Maitê Proença, que rouba as cenas, e transparece em cada milímetro a essência do filme – muito recorrente na obra de Almeida Prado: a identidade. Desde o começo, na platéia, Suzana, uma sensual mulher, um tanto reprimida, que é objeto de desejo de um “cafajeste” – como ela diz -, e na tela, Lila Van, uma sensual mulher, nada reprimida, que é objeto de desejo de um cafajeste. Ambas são Maitê, e ambas despertam o olhar de um corretor imobiliário que, com Suzana, tem ardentes sonhos ainda acordado. Assim como Elsa Bannister, de A Dama de Shanghai, de Orson Welles, Suzana também é uma mulher misteriosa e enigmática, que mesmo dentro da certeza, está a se encontrar.

A atmosfera do cinema urbano oitentista corrobora a criação dessa mulher mítica, que sabe seduzir – muitas vezes pela sua inocência -, e jogar com todos os elementos em mãos. A Dama do Cine Shanghai é uma mulher do meio, que permeia a escuridão como se fosse seu habitat, e usa vestes brancas sem pecado. Sua essência é o mote da trama. Ao retratar o encanto de um homem por essa mulher, e sua posterior obsessão, ele se vê ligado a um crime mafioso, e é tido como principal suspeito. Ocorre que de nada ele sabe.

Um dos triunfos de Guilherme é a maneira de inclusão de elementos referenciais, que são de grande importância para a trama, mas que se sustentam por si só. Ou seja, não é necessário que o espectador conheça todas as multi-referências do filme – que, segundo o autor, provém de seu inconsciente cinéfilo. Há uma cena, em que a personagem de Fagundes quer investigar uma das suspeitas do crime em que é acusado. Ele é um homem já velho, interpretado por José Lewgoy, e durante a investigação, está na festa de casamento do filho. Ao abordá-lo, descobre que é um antigo cineasta, que entre seus filmes está O Caçador de Crepúsculos (projeto nunca realizado de Almeida Prado). Em toda a construção da cena, há uma forte imagética da cena inicial de O Poderoso Chefão, de Francis Ford Coppola. A cena de abertura é o casamento da filha de Don Corleone, ocasião propensa para que se peçam ‘favores’ a ele. Assim como no filme-ícone da máfia, em A Dama do Cine Shanghai, Lewgoy assume o papel do sábio patriarca, com a ajuda de uma similar cenografia, e discorre sobre o papel da família. Ao invés da máfia, sua mente liga-se ao cinema. Por estar velho, procura um sucessor. Não faz mais filmes, pois prefere imaginá-los.
A única cena notadamente iluminada do filme é o centro para a discussão da questão identidade. Lucas (Antônio Fagundes) se depara com Lila Van – dessa vez sob a pele de Imara Reis – e com seu algoz. Os personagens que enfeitavam a tela naquela noite semi-erótica na sala do Cine Shanghai estão novamente em quadro, em outra realidade, com outra gênese. Não são os personagens do filme, e nem quem passarão a representar na história do crime: tornaram-se apócrifos. A questão é muito maior do que a representação no cinema, é a representação como seres humanos, repletos de máscaras e incertezas. O personagem Lana, interpretado por Miguel Falabella, é um homem vestido de mulher, mas nem ele admite, e nem seu interlocutor percebe num primeiro olhar. Mais ainda, seu personagem vaga numa cena de crime insolúvel sem resposta a nada, nem à sua própria presença. O enigma é tudo.

O uso do cinema policial americano clássico – na égide do noir - é um acerto. Lucas não viu nada, e tudo que descobriu é através de sua persona detetivesca. O ambiente escuro impede um olhar mais atento. Na total escuridão, uma luz é lançada sob um personagem, e outro é desdenhado. Nem Lucas, nem Suzana sabem quem são e o que representam. Serão frutos da mesma imaginação que construiu tantas imprecisões e incertezas?

A diferença é que como no filme de Welles, quem ganha é a fêmea – a femme fatale. Elsa e Suzana triunfam, saem sem destino, desvairadas, em busca da solução. O homem padece e admira um sustentáculo de imaginação, para ele, indecifrável.



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