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Dossiê Guilherme de Almeida Prado

A vida noir
Por Gabriel Carneiro

O escritório de Guilherme de Almeida Prado é como um santuário: diversos livros, DVDs, CDs, e pôsteres decoram as paredes de um pequeno apartamento no Morumbi, em São Paulo. A iluminação é fruto dos raios do sol que entram pela janela, e conferem ao ambiente a atmosfera de seu filme mais famoso, o neo-noir A Dama de Cine Shanghai. Toda a simpatia desse cineasta de 54 anos suplanta a melancolia nas suas declarações sobre o cinema atual. “Para você conseguir financiamento, você tem que morrer”, mesmo que dito ao meio de gargalhadas, perpassam a realidade de um artista deixado de lado.

Nascido em Ribeirão Preto, viveu até aos 14 anos numa fazenda. Com essa idade, mudou-se efetivamente para a cidade, a fim de estudar. Foi nessa época que sua formação cinéfila começou. “Na época, havia 12 ou 14 salas de cinema. Era possível assistir até dois filmes por dia, se quisesse, e todos inéditos para mim. Eu ia muito”, conta o “cineasta cinéfilo”, termo cunhado pelo jornalista e crítico de cinema Luiz Zanin Oricchio.

“Minha formação [de cineasta] foi principalmente vendo filmes”, afirma Almeida Prado. Ele foi, aos 17 anos, para São Paulo, a fim de fazer cinema. Pelo menos, era esse seu objetivo. Como não teria suporte financeiro de seu pai nessa carreira, prestou engenharia – além de direito e medicina, eram as únicas faculdades aceitas pelo genitor. “Eu vim, na realidade, de Ribeirão para São Paulo, para fazer engenharia, mas com a intenção de fazer cinema”, conclui Guilherme.

Formado em engenharia, mas desesperado por não querer exercer a profissão, Prado teve a sorte de encontrar um velho colega, o então fotógrafo Odon Cardoso, que o levou à empresa de vídeo publicitário Spectrus. Foi questão de alguns meses até cair na Boca do Lixo, pólo industrial cinematográfico paulista, que teve atividades recorrentes entre as décadas de 60 e 80. Em 1979, começou sua carreira como assistente de direção, cargo que ocupou em oito filmes. “Era relativamente fácil trabalhar na Boca. Não havia muitos outros assistentes de direção com a minha capacidade. Em um ano e meio, eu fiz oito filmes”. Por isso a rapidez com que foi alçado ao cargo de diretor.

Guilherme de Almeida Prado sempre gostou de comédias populares. Seu primeiro longa-metragem é uma pornochanchada que fez mais de um milhão de espectadores no ano do lançamento, 1981. As Taras de Todos Nós é um filme dividido em três episódios. Foi a única comédia que realmente fez - seus outros filmes apenas flertam com ela, em alguns momentos. Ao contrário de outros profissionais que relegam o passado em produções de cunho erótico, hoje muito mal vistas pela sociedade, Guilherme lembra do gênero com bons olhos. “Até hoje, eu adoraria fazer chanchada, mas hoje é a Globo, a globochanchada, e para fazer globochanchada, você tem que ter a Globo.”

Parte do ressentimento com o cinema de hoje vem daí. Hoje em dia, só consegue fazer filmes a duras penas, através de editais de incentivo ao audiovisual. Em outras épocas, foi um cineasta de grandes sucessos, hoje, demora dez anos para conseguir fazer um filme. De A Hora Mágica a Onde Andará Dulce Veiga? passaram-se dez anos, sendo seis deles para fazer e lançar o último filme. Segundo ele, não há mais patrocinadores. Para se fazer cinema, só com majors, e “as majors, como a Globo, não vão confiar no que eu vou fazer. Dizem que sou muito autoral”.

Sua consagração como diretor veio em 1987, com A Dama do Cine Shanghai. Depois de quatro anos do fracasso A Flor do Desejo, Guilherme resolveu relaxar. “As coisas que faço para desligar são ir ao cinema ou escrever”, explica. Assim que surgiu o roteiro do filme que seria protagonizado por Maitê Proença e Antônio Fagundes. Patrocinado pela Embrafilme, empresa cinematográfica do governo, o filme retoma o cinema policial clássico americano. No mesmo ano, ganhou sete Kikitos, prêmio do Festival de Gramado aos melhores do ano. Para Guilherme, foram dois, o de melhor filme e de melhor diretor. Hoje, encontram-se desbotados, escondidos num canto de seu escritório.

“O Kikito acabou servindo para nada”, diz o cineasta, explicando talvez o esquecimento do troféu. Com a crise do cinema de sexo explícito, acabou a Boca do Lixo, e com a ascensão de Collor de Melo à presidência, acabou a Embrafilme. Foram cinco anos até produzir seu próximo filme, Perfume de Gardênia, e mais três até lançá-lo. Num momento em que o cinema foi praticamente eliminado de nossa cultura, um prêmio, que em outras situações poderia ter-lhe ajudado, de nada serviu. Isso colabora para um dos mais fortes pensamentos do diretor sobre o cinema brasileiro: “Você pode fazer um filme ruim, não fazer sucesso, e você continua filmando como se nada tivesse acontecido. Você pode fazer o melhor filme do mundo, e ninguém vai se importar. Ao contrário, cria-se uma inveja gigantesca que dificulta fazer outro filme”.

Em 1998, conseguiu lançar o filme que mais teimou em fazer na vida, A Hora Mágica. Foram mais de 15 anos tentando fazê-lo. O filme é uma livre adaptação do conto Cambio de luces, de Júlio Cortázar. No último ano, tem batalhado para lançar Onde Andará Dulce Veiga?, sua volta ao cinema. Ele tem muitos projetos para o futuro, mas pensa que o futuro será complicado. “Tanta lei de incentivo, e eu não me sinto incentivado”, registra no discurso. Será que a arte abandonou o autor?

Guilherme é um exímio diretor, porém, em 27 anos de carreira como tal, fez 7 filmes: seis longas e um curta. Nesse meio tempo, casou-se com Zuleika Leme Walther, que conheceu no teste para cantora da música-tema de A Dama do Cine Shanghai, com quem teve dois filhos, Gilda e Gilberto. Foi também quando explorou a vertente das histórias em quadrinho em Samsara, considerada a primeira graphic novel brasileira, com desenho de Hector Gómez Alísio, e sofreu um tipo de câncer, a leucemia do tipo Linfoma Hodkin.

A leucemia quase o afastou das telas. O cinema sempre foi sua grande paixão. É só observar as três prateleiras de DVDs que tem no escritório, com provavelmente mais de 1500 títulos, entre importados e nacionais. A melancolia dos pensamentos daquele homem de olhos castanhos, alto, magro e de cabelos grisalhos – e um topete que se forma ao meio – está lá, e é muito forte. Porém, evita deixar que isso afete sua saúde novamente – segundo ele, a doença só surgiu por causa do cinema. Sua gargalhada peculiar é marcante: alta, ritmada e longa.

Em seu curta-metragem, Glaura, feito para o longa Felicidade é..., mas não terminado a tempo de compô-lo, Almeida Prado vai explorar o conceito de felicidade. Será que a felicidade não está lá, acompanhando suas gargalhadas, em detrimento da melancolia na profissão?



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