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Dossiê José Mojica Marins

Entrevista com Raymond Castile


Ray Castile em Encarnação do Demônio

Entrevista e tradução por Gabriel Carneiro

Raymond Castile é jornalista norte-americano, fanático pelo cinema de José Mojica Marins e pelo personagem Zé do Caixão. Muito ligado ao oculto e ao paranormal, dá palestras sobre o assunto. Tem também experiência com cinema. É diretor, produtor e roteirista do curta-metragem O Encontro às Escuras com Zé do Caixão, uma paródia com elementos terroríficos sobre a busca de Zé pela mulher perfeita em um encontro às escuras.

Raymond também é o Zé do Caixão jovem em Encarnação do Demônio. Para reconstruir o final de Esta Noite Encarnarei no teu Cadáver, modificado pela censura, precisavam de alguém que se parecesse com ele jovem. Dennison Ramalho, assistente de direção e co-roteirista, lembrou dele pelas fotos fantasiado. Ele veio, mesmo sem receber um tostão, só pela apreciação.

Em entrevista por e-mail, Raymond conta um pouco da experiência e do que pensa de Mojica e seu mais famoso personagem.

Zingu! – Para você, qual a importância de José Mojica Marins para o cinema?

Raymond Castile - Mojica é o mais importante embaixador do cinema brasileiro. Ele não faz filmes para a elite, é um cineasta populista. Seus filmes são divertidos e excitantes - são atraentes para espectadores do mundo todo. Diferentes culturas aceitam seu cinema. Mojica não tem apenas admiradores, ele tem fãs, como um astro do rock.

Muitos norte-americanos não gostam de assistir a filmes legendados. Eles querem ver o filme, não lê-lo. Mas irão ver os filmes de Mojica com legendas porque eles transcendem as diferenças lingüísticas e culturais. Eles entretêm.

Parece-me que muitos filmes brasileiros são feitos para espectadores da elite. Para os americanos, são filmes “de arte”. Eles até podem ser filmes excelentes, mas aparentam limitados. Compare-os com os filmes do Japão, de Hong Kong, da Itália, dos EUA, cinema que é popular pelo mundo. Não importa o quão violentos sejam, são filmes feitos com alegria e garra. O mesmo ocorre com os filmes do Mojica. Mesmo as cenas mais sádicas e perturbadoras são estimulantes e maravilhosas. São filmes da imaginação, que inspiram os espectadores a sonharem.

O cinema não foi criado para quem não tem imaginação e criatividade. Foi criado para capturar a imaginação. Os filmes de Mojica fazem isso, e essa é a causa de encontrarem quem os assista ao redor do mundo.

Por essa razão, acredito que Mojica seja talvez o mais bem sucedido cineasta brasileiro. Não em retorno financeiro, mas em impacto.

Nessa semana, estava palestrando sobre fantasmas e sobre o paranormal. Falava com uma audiência de por volta de 100 pessoas em St. Charles, no Missouri. Ao final, mencionei meu envolvimento com Zé do Caixão e expliquei quem era José Mojica Marins. Depois de terminado, a jovem mulher veio e me disse que ela e o marido adoravam o Zé do Caixão, e queriam saber quando estrearia o novo filme nos EUA.

Fiquei impressionado. Quem esperaria que, entre 10 pessoas numa sala no Missouri, haveria fãs de Zé do Caixão? Que outro cineasta brasileiro tem esse alcance? Acho que nenhuma pessoa naquela sala saberia nomear outro personagem brasileiro. Mas alguém conhecia Mojica e Zé do Caixão.

Para resumir, Mojica é “legal”.

Há uma geração de jovens cineastas brasileiros morrendo para fazer filmes “legais” – filmes de imaginação. Mas suas criatividades são suprimidas pela indústria de filmes brasileira, uma indústria eu não se importa com filmes de horror, ficção científica, fantasia e aventura. Não há saídas para esses cineastas. Não entendo porque os espectadores brasileiros assistem aos filmes de fantasia americanos e não fazem o mesmo com as produções de seu país natal.

Z – O que Zé do Caixão simboliza?

RC – Ultimamente, tenho evitado discutir o significado do personagem. Acho que é melhor que as pessoas assistam aos seus filmes e descubram o personagem por elas mesmas. Simboliza diferentes coisas para diferentes pessoas. Creio que fãs têm uma conexão muito pessoal com Zé do Caixão. Tão pessoal que é quase o estragam ao tentar descrevê-lo. Nessa altura, sinto-me próximo demais para tentá-lo analisar com objetividade. Deixo, então, a análise para outros.

Z – Como é trabalhar com ele? Como ele é fora do set?

RC – No set, Mojica é o Mestre. Ele impõe respeito simplesmente pela presença. Quando fala, todos escutam. Todos querem fazer seu melhor com ele, ninguém quer desapontá-lo.

Quando algo vai errado, ele mostra sua angústia, fica muito sério. Quando as coisas vão bem, por outro lado, ele fica maravilhado com uma criança ao abrir um presente de Natal. Ele levanta os braços, abre um sorriso largo e grita: “Incrível! Fantástico!”

Há algo paternal em Mojica. Eu notei o jeito que ele fala com os outros atores sobre suas performances, é como um pai falando aos seus filhos dando conselhos sobre a vida.

Fora do set, Mojica é quieto e reservado, mas ainda assim com sua conduta paternal. Ele põe a mão dele no seu ombro enquanto conversam. Acho que é possível visualizar isso em entrevistas. Sua voz é de sabedoria.

Já vi Mojica gritar com raiva quando o desrespeita, já o vi chorar de tristeza quando Jece Valdão morreu, já o vi sorrir com amor e gratidão na companhia de família e amigos. Ele é um homem de paixão e emoções sinceras.

Z – Como foi o dia em que conheceu Mojica pessoalmente?

RC – Foi no dia 27 de novembro de 2006, um dos dias mais dramáticos de minha vida. Ao chegar ao estúdio, Mojica não estava lá. Conheci várias pessoas do elenco e da equipe, mas os produtores não estavam lá. Podia dizer que algo errado tinha acontecido, mas não sabia o que. Então, apenas me sentei próximo à porta da frente e esperei.

Mojica e os produtores chegaram. Ele estava cansado e triste. Parei e o cumprimentei. Ele acenou com a cabeça e passou reto, não me reconhecendo. O assistente de direção, Dennison Ramalho, entrou. Ele tinha sido meu principal contato através de telefonemas e e-mails. Ele me reconheceu e me deu as boas-vindas de forma calorosa, e então me contou da tragédia que acabara de ocorrer – Jece Valdão morrera havia 90 minutos, de ataque cardíaco. Mojica tinha acabado de voltar do hospital.

Mojica estava no meio da sala de maquiagem, com a cabeça baixa e os ombros caídos. Pessoas o abraçavam e batiam em seus ombros. Dennison foi a ele e explicou quem eu era.

“Ooh…OOOH!”, disse Mojica, com os olhos se abrilhantando. Deu-me, então, um forte abraço.

Dennison me levou para conhecer o estúdio, mostrando-se a parte de traz, onde a equipe criara uma favela de faz-de-conta. Havia técnicos correndo de um lado para o outro, com equipamentos em todos os lugares.

“O diabo está tentando impedir Mojica de fazer o filme”, disse-me Dennison. “Mas isso não ocorrerá dessa vez. Esse filme SERÁ finalizado.”

Mojica e os produtores saíram. Mojica soluçava e os produtores limpavam os olhos. Ele se sentou numa cadeira que estava no meio do set da favela. Os produtores chamaram toda a equipe e o elenco para formarem um círculo ao redor deles. Um silêncio dominou o set.

Mojica começou a falar de Jece, de vida e de morte, de cinema. Na época, eu mal conhecida o idioma português, mas ele falou do coração, e eu senti que poderia entender qualquer palavra que ele dissesse. Ele pediu por um minuto de silêncio, olhando seu relógio de pulso enquanto todos abaixavam a cabeça. Ao final do minuto, ele disse: “Eu não posso ser Zé do Caixão hoje.” A equipe foi dispensada e o dia acabou.

Dennison disse que era a primeira vez que via Mojica chorar, e que deveria ser estranho, para mim, conhecer meu personagem de horror preferido chorando. Eu disse que “não, de maneira alguma.”

Isso confirmou que eu conhecia de fato Mojica – ele não é um personagem de desenho animado, é uma pessoa passional que se preocupa com as pessoas. Eu sabia que um artista capaz de criar filmes tão intensos e pessoais tinha de ser um homem de grande alma e sensibilidade.

Observei a dinâmica liderança de Mojica durante a crise. Ele guiou através do exemplo, da dignidade e a da sinceridade. Ele colocou o tom a ser seguido pelo resto das pessoas.

De volta à sala de maquiagem, Mojica sentou-se ao meu lado. Traduzindo para ele, uma assistente explicou para mim que nosso primeiro encontro “não era para ter acontecido dessa maneira”. Mojica estava muito feliz de me ter lá, disse a tradutora, mas era um dia ruim.

Eu disse que compreendia, que também estava muito feliz de estar lá, e que tinha um grande respeito por Mojica. Ela traduziu minhas palavras e ele levantou as mãos, como se fosse desviar do cumprimento. Os assistentes de Mojica o ajudaram a pôr-se de pé. O prédio foi esvaziado.

Esse foi meu primeiro dia no set, e meu primeiro encontro com Mojica. Se as pessoas quiserem saber mais sobre minha experiência no set em 2006 e minha experiência na premiére em 2008, elas podem ler no meu site, Diary do Demônio.

Z – Quando, como e porque surgiu a idéia de filmar a O Encontro às Escuras com Zé do Caixão?

RC - Comecei a pensar em fazer O Encontro às Escuras com Zé do Caixão há mais ou menos um ano atrás, no outono [primavera para nós] de 2007. Levei oito meses para “desenvolvê-lo” até o ponto em que senti que tinha a história, o elenco, as locações e o equipamento para realizá-lo com o nível de qualidade que queria. Comecei a pré-produção para valer em maio de 2008, rodei em junho e concluí a edição no início de julho.

Freqüentei a faculdade de cinema nos anos 90, mas encontrei obstáculos intransponíveis para entrar na indústria de filmes. Então, fui para o jornalismo e virei repórter de jornal diário. A minha experiência em Encarnação do Demônio fez ressurgir meu desejo de ser um cineasta. O desejo sempre esteve lá, mas, por necessidade, ele foi suprimido por muitos anos. Agora está desperto e pronto a chutar alguns traseiros. A caixa de Pandora está aberta e não há como colocar os espíritos de volta. Fui também inspirado pelo enorme sucesso que Dennison Ramalho alcançou com seus dois impressionantes curtas-metragem Nocturnu e Amor Só de Mãe.

Decidi que fazer uma série de curtas seria a melhor forma de voltar ao cinema. Nos anos 90, fiquei preso na idéia que tinha que fazer um longa-metragem. Claro, sem experiência ou recursos, não ia rolar. Fiquei paralisado. Agora sou mais realista. Ganharei experiência e construirei uma reputação fazendo curtas, e então veremos o que acontece.

Para meu primeiro filme, pareceu natural fazer algo relacionado ao Zé do Caixão. Quis um tema que me fosse natural, que eu tivesse adoração, para que não desistisse, por mais difícil que fosse. E a situação ficou bem difícil. Tive muitos problemas na realização. Várias vezes, o projeto desmoronou, mas eu sempre conseguia levantá-lo de novo.

Também queria fazer algo que ajudasse a unir os fãs brasileiros e americanos de Zé do Caixão, ou os fãs brasileiros e americanos de horror em geral. Creio que a barreira da língua seja muito grande. Americanos não falam português, e, segundo minha experiência, poucos brasileiros falam inglês. Isso mantém ambas as culturas separadas. Creio que essa distância prejudica o desenvolvimento do gênero horror no Brasil, já que os americanos são, provavelmente, os maiores consumidores de filmes de horror no mundo. Se você conseguisse que mais americanos vissem os filmes brasileiros de horror, mais dinheiro entraria na indústria cinematográfica brasileira – e criaria mais fãs do Zé do Caixão!

Promover Zé do Caixão para uma audiência de falantes do inglês foi um dos meus objetivos ao fazer O Encontro às Escuras com Zé do Caixão. Talvez inspire alguns fãs do horror que falam inglês a assistirem aos filmes do Mojica.

Fiz uma comédia de horror porque senti que não tinha recursos suficientes para fazer um crível filme de horror “sério”. Queria, também, que fosse um curta-metragem legítimo, não um exemplo de “ficção de fã”, como esses filmes amadores de Star Wars que você vê online. Um filme sério usando a personagem Zé do Caixão sem permissão seria simplesmente uma cópia. Há somente um Zé do Caixão e esse é Mojica. Eu não queria fazer um derivado. Uma paródia se sustenta como legítimo filme. O curta permite o aumento de uma potencial audiência e torna Zé do Caixão mais acessível para espectadores que não o conhecem..

Assim como o site de fã que fiz em 2004, queria que o filme fosse um tributo ao Mojica e ao Zé do Caixão. Não importa quantas pessoas já tenham expressado respeito e afeição por Mojica, penso que ele sempre pode receber mais ovações.

Portanto, estou tanto fazendo um tributo a Mojica, como tentando atrair novos fãs para seu trabalho, especialmente falantes da língua inglesa que possam terem sido relutantes em dar uma chance.

No fundo, é mais que uma comédia, pois há uma certa raiva e desapontamento com a hipocrisia e a superficialidade da sociedade moderna. Creio que Zé do Caixão é um excelente canal para a crítica social. Ele é muito honesto e direto a respeito do que quer. Todos ao seu redor estão jogando.

Eu me assegurei que a comédia não viesse à custa de Zé do Caixão. A personagem continua séria e autêntica ao longo do filme. Nunca quis que os espectadores tivessem a impressão de que estava fazendo chacota de Zé.

Z – Como você dominou o português, em especial da maneira falado por Zé do Caixão?

RC - Para O Encontro às Escuras com Zé do Caixão, tive ajuda de uma brasileira chamada Luisa Leme. Ele é produtora televisiva em São Paulo. Creio que trabalhava na Globo. Sei que trabalhava com o Serginho Groisman em algum programa de TV que não o Altas Horas. Ela está morando nos EUA por estar freqüentando a universidade em St. Louis, Missouri. Ela é casada com Eric Becker, que trabalha comigo como repórter. Conheci-a através dele. Ela me treinou para aprender o português usado em O Encontro às Escuras com Zé do Caixão.

Desenvolvi também um apanhado de frases dos filmes de Zé do Caixão que eu apresentava em convenções de horror. Fazia fantasiado de “Ray do Caixão” (Coffin Ray). Aprendi as frases em português ao assistir aos filmes de Mojica e ao ler as legendas em português nos DVDs brasileiros. Essa experiência me ajudou na hora de aprender as linhas em português para o curta-metragem.

Z – Tem projetos para o futuro?

RC - Tenho muitas idéias para próximos curtas envolvendo monstros que de alguma forma são diminuídos, ridicularizados ou menosprezados pelo mundo que não os levam mais a sério. No final, os monstros sempre liberam seus poderes destrutivos só para mostrar o quão reais e perigosos são. Penso que estamos vivendo na era do desrespeito. As pessoas pensam que o mundo é o seu playground – que elas podem fazer o que querem, tratar as pessoas do jeito que as agradarem, abusar do próprio corpo, destruir o meio-ambiente, explorar outras pessoas, explorar a natureza, explorar a si mesmos, consumir e tirar vantagem como desejarem. Depois ficam chocadas quando encaram as conseqüências de suas ações. Chocam-se quando são forçadas a se responsabilizarem, chocam-se pelas forças de causa e efeito. Quando a economia falha, quando a saúde desanda, quando a natureza desencadeia sua fúria, quando as pessoas reagem contra o bullying, a negligência e a opressão, as pessoas se chocam. Elas se chocam com o fato de que há conseqüências reais, perigos reais, coisas reais que devem ser respeitadas e até temidas. É por isso que os chamo de “monstros”.



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