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Compreendendo o Kanibaru Sinema

Para entender melhor o cinema undergorund brasileiro, em especial o cinema de Petter Baiestorf, compilamos os dois primeiros capítulos do livro Manifesto Canibal (Manifesto Canibal e Kanibaru Sinema), de Petter Baiestorf e Cesar Souza, lançado pela Achiamé, em 2004.

MANIFESTO CANIBAL
(Uma declaração de guerra dos que nada tem e tudo fazem contra os que tudo tem e nada fazem)

Por Petter Baiestorf

O cinema brasileiro, neste santo ano do ébrio senhor da Igreja Católica da Santa Roubalheira Consentida, atingiu a ruindade absoluta com suas obras globoticamente acefálicas que custam milhões de dinheiros aos cofres públicos. Ordenamos, então, que a minoria que detém a tecnologia cinematográfica de ponta seja combatida e que a discriminação ao vídeo amador cesse neste momento. Optamos pelo Kanibaru Sinema para enfim fazer nossos gritos ecoarem pelos domínios malignos dos cineastas pedantes corruptos. Um Kanibaru Sinema antropofágico, primitivo, selvagem, niilista, ateu e caótico, mas de uma pureza maldita capaz de assustar tanto os colonizados quanto os colonizadores.

EU, o curtidor do avacalho, o mestre da nojeira, o anti-intelectual debochado, o escroto alucinado, o videasta das vísceras, PROPONHO:

1) A opção de filmar com equipamento VHS-C/S-VHS/Digital/S-8 filmes amadores de qualquer estilo e qualquer duração;

2) A opção de filmar com equipamentos VHS-C/S-VHS/Digital/S-8 utilizando-se do direito de produzir obras-primas com som direto e o equipamento técnico que for possível arranjar;

3) A opção de realizar obras cinematográficas desprezando o poder capitalista do dinheiro criado por qualquer país do planeta Terra e/ou Universo. Leia-se aqui: A opção de filmar sem se utilizar do dinheiro público;

4) A opção de usar atores amadores e/ou amigos pessoais que se coloquem, de livre arbítrio, a disposição;

5) A opção de se utilizar do Kanibaru Sinema e sua estética do caos para finalmente poder flertar com a estética da falta de estética. Leia-se aqui: a opção por destruir todos os valores estéticos;

6) A opção pela inclusão das obras produzidas em vídeo amador nos festivais não competitivos de cinema brasileiro para que o povo decida, de livre arbítrio, o que gosta e quer ver;

7) A opção por uma produção/distribuição caseira, de forma independente e artesanal;

8) A opção por exibir os filmes em botecos e outros refúgios para pensadores beberrões;

9) A opção de escolher o gore grind splatter escatológico (1) como hino à criatividade do Kanibaru Sinema;

10) A opção de realizar obras com cenários, figurinos, iluminação e maquiagens criados/conseguidos com lixo;

11) A opção de realizar obras com roteiros originais em sua concepção anarco-ateísta;

12) E finalmente, a opção por exercer seu direito de ser um criador artístico livre dos vícios da sociedade cristã castradora (2).

Assim propôs o fazedor de filmes alucinados.

Notas:
1- A música no estilo gore grind é uma opção pessoal. Na verdade, músicas experimentais, bandas punks independentes, sons industriais, músicas regionais antigas e desconhecidas, noise, ruídos e longos silêncios ou qualquer manifestação sonora não comercial que despreze a indústria fonográfica, também servirão de hino à criatividade do Kanibaru Sinema. (nota de P.B.);
2- Gostaria de sugerir aos cristãos a leitura dos livros "12 Provas da Inexistência de Deus" de Sebastien Faure, "O Anticristo" de Friedrich Nietzsche, "Deus e o Estado" de Bakunin, "Anarquismo e Anticlericalismo" de Eduardo Valladares, e que refletissem sobre toda desgraça e miséria patrocinada pela Igreja Católica e, também, pelas outras religiões. Já dizia Bakunin: "Assim, também, considero como um fato perfeitamente natural, lógico, e conseqüentemente inevitável, que os cristãos, que eram cretinos pela graça de Deus, tenham aniquilado com santo furor, como se sabe, todas as bibliotecas dos pagãos, todos os tesouros da arte, da filosofia e da ciência antigas." (nota de P.B.).

KANIBARU SINEMA (Ou Métodos Para Fazer Filmes Sem Dinheiro)

Por Petter Baiestorf

Você não precisa ser mais um capacho do sistema se agora já pode ser um messias do caos com a missão de destruir os valores sagrados do cinema milionário que estão implantando no Brasil!!! O fazedor de filmes alucinados, que não está contente com os rumos do cinema brasileiro, lhes dá aqui algumas dicas básicas de como produzir sua obra sem utilizar-se do tal de dinheiro:

FIGURINOS: Pegue-os nas campanhas de arrecadação de roupas para pobres (de preferência nas campanhas do inverno, quando as roupas são melhores). Peça roupas velhas aos parentes e amigos. Roube uniformes militares nos quartéis (os recrutas costumam negociar apetrechos militares por um precinho bem camarada). Faça seus figurinos exclusivos utilizando-se de lixo, como plásticos, latas, restos de tecidos, cascas de árvores, etc ... Se for o caso, coloque seus atores interpretando pelados.

CENÁRIOS/LOCAÇÕES: Ache coisas velhas no lixo/ferros-velhos e crie artefatos futuristas. Utilize a casa dos amigos. Consiga um porão úmido abandonado e dê vida ao mundo que habita seu cérebro. Filme em locais públicos, como ruas, calçadas, matas, praias, praças, reservas florestais, casas destruídas/abandonadas, desertos, prédios públicos, parques de diversão, shoppings, puteiros, desfiles patrióticos, cemitérios, etc ... (Mas se você gostar de alguma propriedade privada você pode invadir e quando a polícia chegar diga que achou que o local era público ou inicie uma discussão com a polícia dizendo que "Toda propriedade é um roubo", ser preso ajuda na divulgação de sua obra!).

ILUMINAÇÃO: Filme durante o dia, aproveitando a luz solar que é de graça. Se necessitar de cenas internas e/ou noturnas, ilumine com luz normal. Você ainda pode utilizar-se de liquinhos, tochas, velas, luzes de carro, etc ... O importante é criar uma fotografia diferente/estranha.

PESSOAL/ELENCO: Utilize seus amigos e freaks em geral. Punks, putas, aleijados reais e mendigos são uma ótima opção, mas guarde uma parte de seu orçamento para pagar a eles um cachê, mesmo que simbólico (1). Certifique-se antes de que seus atores improvisados e amigos tenham idéias ideológicas parecidas com as suas, caso contrário eles acabam atrapalhando mais do que ajudam (mas mesmo assim você pode utiliza-los como figurantes).

EQUIPE-TÉCNICA: Faça você mesmo tudo, assim o filme sai do jeito que você quer.

ROTEIRO: Crie sempre histórias originais com críticas sociais, mesmo que suas histórias sejam um tanto excêntricas. Lembre-se sempre que a igreja, o governo, os militares, os religiosos em geral, os modistas, etc, estão ai para serem esculhambados. Importante, as vezes a criação de um roteiro coletivo, com idéias de todo elenco, pode ser inspirador para interpretações mais viscerais, primitivas e raivosas.

EQUIPAMENTOS: Utilize qualquer tipo de câmera. Se você não tiver uma, arranje emprestado ou, ainda, você pode roubar uma. Para editar seu filme há várias opções que não envolvem dinheiro, como editar tudo com dois vídeos caseiros comuns (se arranjar dois vídeos super VHS, melhor!) ou editar na própria câmera (filmando as seqüências de forma linear) na hora real da filmagem e depois incluir a trilha sonora pela dublagem de áudio da filmadora. Sem esquecer nunca que placas de edição por computadores estão cada vez mais baratas! Sua mensagem é o que importa, qualidade é coisa de cara reprimido!!!

ORÇAMENTO: Produza com o que você tiver a disposição. Poupe seu salário, faça vaquinha entre seus amigos, venda rifas, sejam criativo e se surpreenda. Falta de dinheiro nunca foi empecilho na vida artística dos gênios!!! (2)

TRILHA SONORA: Dê preferência a bandas e músicos ainda não cooptados pelo mercado capitalista. Discos velhos podem conter músicas maravilhosas completamente esquecidas. Pegue um instrumento e grave ruídos estranhos com ele e encaixe no seu filme. Músicas estranhas, regionais, experimentais e não comerciais (como gore grind, industrial harsh ou noise) sempre dão um clima ótimo!!!

DIVULGAÇÃO: Pode, e deve, ser feita através de fanzines, flyers, revistas e jornais undergrounds e independentes. Esqueça a internet, ali você só vai encontrar pessoas interessadas no tipo de filme que estiver na moda no momento. (3)

DISTRIBUIÇÃO: A distribuição de cópias em VHS/DVD/VCD pode ser feita utilizando-se os serviços dos correios. Você também pode realizar exibições em botecos e shows alternativos anti-comerciais de todo o Brasil.

FESTIVAIS: Cada produtor de filmes pode optar por produzir seu próprio festival de filmes, sempre não competitivos (a competição é um vício da sociedade capitalista que deve ser evitado sempre!), fazendo assim um intercâmbio de produções amadoras / undergrounds / experimentais. Outra opção é a união de vários produtores undergrounds na realização de mostras não competitivas em paralelo aos grandes festivais de cinema, utilizando locais próximos d'onde acontece as babações d'ovos entre os poderosos. Não se esqueça que os festivais de "cinema ruim oficial" estão por aí para serem invadidos. Vá e esculhambe com os posudos!!!

Mas lembre-se que não ter equipamento não é desculpa para fazer filmes bobos e ruins, com o mínimo de recursos você pode fazer bons filmes com uma produção miseravelmente bem cuidada e original.

Notas:

1- Não acho correto se aproveitar de mendigos ou putas, que já sofrem com o preconceito da sociedade e com a falta de estudos e oportunidades. Dar oportunidades de trabalho para os excluídos sempre pode render ótimas surpresas, por exemplo, Jörg Buttgereit ao realizar seu clássico "Nekromantik 2" (1991), revelou a ótima atriz Monika M., agora uma ex-prostituta, que também estrelou o longa "Schramm" (1995), outro experimento do alemão Buttgereit. (nota de P. B.);

2- No documentário "Mundo Basura" (1995), o videasta espanhol Sergio Blasco dá ótimas idéias, em ritmo de deboche total, sobre como conseguir dinheiro para produções independentes. E um ótimo livro, "Deathtripping - The Cinema Of Transgression" de Jack Sargent, sobre os filmes baratos de Nick Zedd e Richard Kern, revela em entrevistas bem divertidas, como estes dois batalhadores do cinema em Super oito de New York realizaram inúmeros filmes com o mínimo de dinheiro. (nota de P. B.).

3- Já tive experiências com grandes revistas e jornais ao conceder entrevistas para "Isto É", "Folha de São Paulo", "O Estadão", entre outros veículos da imprensa oficial e, sempre, minhas idéias foram completamente deturpadas/modificadas. Fanzines são o veículo mais fiel a divulgação de obras independentes. (nota de P. B.).

*Trecho retirado do livro Manifesto Canibal, de Petter Baiestorf e Cesar Souza, lançado pela editora achiamé, do Rio de Janeiro, em 2004. O livro está esgotado na editora, mas pode ser lido no site da Canibal Filmes.




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