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Dossiê Cinema de Bordas

Eles Comem Sua Carne
Direção: Petter Baiestorf
Brasil, 1996

Por Felipe M. Guerra especialmente para a Zingu! *

O ano era 1997. Apaixonado por cinema desde sempre, eu sonhava já há um bom tempo em investir nos meus próprios filmes amadores. Entretanto, as duas experiências que tive na área (curtas bagaceiros filmados numa única tarde, em 1995 e 96) foram tão frustrantes que eu já imaginava ser impossível fazer um longa-metragem realmente interessante e divertido em VHS, ainda mais com os parcos recursos disponíveis. Então, subitamente, tudo mudou: meu amigo José Carlos Ribeiro, conhecido fanzineiro e pesquisar do "underground" brasileiro, me emprestou uma fita com um filme chamado Eles Comem Sua Carne, dirigido por um "maluco do interior de Santa Catarina" (nas palavras do próprio Ribeiro), chamado Petter Baiestorf.

É claro que eu já tinha ouvido falar no trabalho do Baiestorf. E quem não tinha? Um tempinho antes, o cara tinha ganhado uma reportagem de página inteira na Folha de S. Paulo, bem divertida por sinal, e que eu havia guardado como referência futura para meu sonho então impossível de fazer cinema amador. Coloquei Eles Comem Sua Carne no meu velho videocassete, e a cada minuto do filme de Baiestorf que passava, mais voltava meu ânimo e motivação para investir em filmes independentes. Ao final da "sessão", eu finalmente estava convencido de que, sim, era possível fazer longas interessantes e divertidos, num esquema tosco e improvisado, e já em 1998 eu lançava meu primeiro filme amador, Patricia Gennice. É isso, amiguinhos: foi o Petter Baiestorf, com seu Eles Comem Sua Carne, que me incentivou a fazer cinema amador!

Recentemente relançado em DVD estilo "programa duplo" (que traz também Zombio, outro divertido filme assinado pelo catarinense), Eles Comem Sua Carne já nasceu antológico pelo seu maravilhoso título, que fica legal até em inglês (They Eat Your Flesh). Para escrever o roteiro, Baiestorf inspirou-se nos assassinatos cometidos pelos irmãos Ibrahim e Henrique de Oliveira no interior do Rio Grande do Sul, entre 1991 e 95. Quem acompanhou as notícias na época deve lembrar que os sujeitos eram serial killers caipiras, desequilibrados, bem parecidos com aqueles que o cinema de horror norte-americano volta-e-meia apresenta, e inclusive praticavam necrofilia com suas vítimas (foram mais de 15 "oficiais").

Felizmente, o diretor não caiu na armadilha de tentar fazer um filme amador sério sobre o caso, inspirando-se apenas superficialmente no episódio verídico e tomando inúmeras "liberdades poéticas", como O Massacre da Serra Elétrica, de 1974, já havia feito em relação aos crimes cometidos pelo psicopata Ed Gein. Preferiu, por exemplo, partir para a sátira e para o exagero, criando uma família inteira de assassinos canibais desbocados e divertidos, que de certo modo antecedem uma outra família psicótica do cinema, esta mais recente: os Firefly mostrados em A Casa dos Mil Corpos e Rejeitados pelo Diabo, ambos dirigidos por Rob Zombie. De todo jeito, Eles Comem Sua Carne é dedicado aos assassinos Ibrahim e Henrique no letreiro que antecede os créditos iniciais.

A família canibal do filme de Baiestorf não tem muita distinção entre pais, filhos, irmãos, tios ou sobrinhos; possivelmente sejam apenas amigos malucos que se isolaram da civilização para viver como uma "família", mas também não dá para excluir o fato de serem parentes sangüíneos transando entre si. O núcleo familiar é formado por Arkham (E.B. Toniolli), Escobar (Marcos Braun), Ed Porcão (César Souza), o cozinheiro Elvis (Jorge Timm) e as moças Hérnia (Susana Mânica) e Tracy (Onésia Liotto). Eles vivem num casarão perdido no interior catarinense, onde se alimentam de viajantes desafortunados que se perdem por aquelas paragens ou, principalmente, de fiscais da Prefeitura de Palmitos que aparecem com bastante freqüência para cobrar o IPTU atrasado - uma idéia genial do roteiro, já que a chegada dos fiscais mais parece um serviço de telepizza para os canibais!

A primeira cena de Eles Comem Sua Carne nos leva ao porão da casa da família, onde existe um autêntico matadouro humano que lembra algum destes trens-fantasmas fuleiros de parques de diversões de quinta categoria, com seus bonecos ensangüentados e falsos pedaços de cadáveres espalhados por toda parte. Ali, Arkham e Escobar matam e esquartejam uma anônima jovem, arrancando-lhe as tripas e os órgãos internos. E o que parece um horror sério e pesado logo muda completamente de tom, no momento em que a dupla de assassinos começa a conversar sobre os problemas amorosos de Arkham enquanto procede o esquartejamento!

Descobrimos então que Arkham é apaixonado por Hérnia, uma das moças da família, mas tem medo de se declarar a ela. "Por que isso não é tão fácil como matar?", questiona-se o apaixonado assassino. Entretanto, motivado por Escobar, ele finalmente revela seus sentimentos, e é correspondido. Enquanto mais um fiscal da Prefeitura é morto e torturado para servir de jantar (já há outros dois entre a vida e a morte, padecendo no porão das torturas da família), Arkham e Hérnia se casam, e sua "lua-de-mel" acontece sobre a laje de um túmulo no pequeno cemitério próximo.

À noite, enquanto a família toda celebra o feliz casamento entre seus integrantes com um churrasquinho de gente, dois episódios inesperados mudam completamente os rumos do filme: um casal de viajantes cujo carro pifou nas proximidades da casa e a fuga dos três fiscais da Prefeitura aprisionados no "calabouço". Seguem-se trinta minutos do mais puro banho de sangue já mostrado pelo cinema amador brasileiro, com direito a braços arrancados, pessoas partidas ao meio, tiros na cabeça, esquartejamentos diversos e até um cadáver empalado, além de uma nojenta cena de sexo necrófilo em que o jovem apaixonado se deleita entre as entranhas da sua falecida amante. É cinema extremo tosco mesmo, embora alguns efeitos até sejam convincentes.

Como o já citado Rob Zombie faria posteriormente em A Casa dos Mil Corpos e Rejeitados pelo Diabo, Baiestorf não quer nem saber das pobres vítimas de Eles Comem Sua Carne: os personagens principais são os "vilões" canibais, e é com eles que o espectador deve obrigatoriamente simpatizar, e não com os desafortunados cobradores de IPTU ou com os namorados perdidos no mato - a todos eles estão destinadas as mais horríveis mortes e torturas. E é realmente muito fácil simpatizar com os canibais catarinenses, já que eles são mostrados como se fossem gente comum, fugindo daquele estereótipo de psicopatia exagerada tão comum no cinema de horror de ontem e de hoje.

Não que Eles Comem Sua Carne seja filme de se levar a sério, como eu já escrevi anteriormente: fica bastante clara, desde o início, a intenção de Baiestorf de fazer uma comédia de humor negro – não de filmar uma história mais realista. O resultado está mais para uma versão cômica dos clássicos gore que o norte-americano Herschell Gordon Lewis dirigiu nos anos 60 e 70, como Banquete de Sangue e Maníacos, incluindo aqueles efeitos exagerados de mutilações que acabam se tornando mais engraçados do que propriamente chocantes. E com direito a alguns toques bastante criativos, como o banho de sangue (literalmente) no chuveiro da casa dos canibais.

Mas, como produção amadora que é, Eles Comem Sua Carne tem alguns problemas, que se tornam mais evidentes quando o filme é revisto agora, nestes tempos em que a edição no computador tornou-se mais comum e mais prática. Na época em que foi feito, o filme de Baiestorf foi montado numa daquelas velhas ilhas de edição para videocassete, e o resultado são emendas toscas entre as cenas, além da impossibilidade de casar música com diálogos - problema que todo cineasta amador daquele período enfrentou, eu inclusive. Embora o diretor consiga contornar com criatividade vários problemas impostos por esta técnica improvisada de realizar e editar os filmes, há pelo menos duas cenas muito longas, prejudicadas pela falta de uma edição mais apropriada: a conversa de Arkham e Escobar no porão e o jantar festivo dos canibais. Em ambas, a câmera fixa se limita a registrar os personagens falando e falando - na cena do jantar, para piorar, todos falam muito e ao mesmo tempo, prejudicando o entendimento dos diálogos.

Ainda bem que estas duas cenas são uma mera exceção, e o resto de Eles Comem Sua Carne é suficientemente divertido e dinâmico para agradar aos mais exigentes fãs de horror barato. Eu inclusive continuo recomendando para todos aqueles que não acreditam que é possível fazer cinema amador decente e divertido com um mínimo de recursos e de orçamento, pois a obra mostra justamente o contrário, comprovando aquela máxima, hoje clichê, de que o principal é ter uma idéia na cabeça e uma câmera na mão.

Recentemente, Baiestorf distanciou-se do tema horror para dirigir filmes mais experimentais, ou partindo para a baixaria assumida, como os divertidos Arrombada - Vou Mijar na Porra de seu Túmulo!!! e Vadias do Sexo Sangrento. Mas quem sabe um dia o hiperativo cineasta do interior de Santa Catarina não retorna aos seus tempos de terror extremo e lança uma seqüência das sangrentas aventuras de seus engraçados caipiras canibais? A não ser que eles tenham se regenerado e hoje estejam pagando seu IPTU religiosamente em dia, claro...

- O filme pode ser adquirido diretamente com Petter Baiestorf, por R$ 15,00, pelo email baiestorf@yahoo.com.br.

*Felipe M. Guerra é cineasta, diretor dos longas Canibais & Solidão e Entrei em Pânico ao saber o que vocês fizeram na Sexta-feira 13 do Verão passado, e articulista e crítico do portal especializado em cinema de horror Boca do Inferno. Mantém o blog Filmes para Doidos.




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