Por Gabriel Carneiro
Bernadette Lyra é professora e coordenadora do Mestrado em Comunicação da Nessa segunda parte da entrevista com a pesquisadora do grupo de Cinema de Bordas, Bernadette Lyra, contesta-se o que de fato é esse conceito. Se na primeira parte, ela explanou o que chamam de Cinema de Bordas, dessa vez, aprofundamos o tema para que não fiquem dúvidas.
Conta um pouco porque filmes de mais de cem mil reais podem ser de bordas, assim como feitos bem feitos esteticamente e inovadores, como Mangue Negro. Interessante é a teoria da professora sobre a reação do público.
Na entrevista, como verão, há uma sintonia muito grande entre ela e esses filmes baratos.
Bernadette Lyra é professora e coordenadora do Mestrado em Comunicação da Nessa segunda parte da entrevista com a pesquisadora do grupo de Cinema de Bordas, Bernadette Lyra, contesta-se o que de fato é esse conceito. Se na primeira parte, ela explanou o que chamam de Cinema de Bordas, dessa vez, aprofundamos o tema para que não fiquem dúvidas.
Conta um pouco porque filmes de mais de cem mil reais podem ser de bordas, assim como feitos bem feitos esteticamente e inovadores, como Mangue Negro. Interessante é a teoria da professora sobre a reação do público.
Na entrevista, como verão, há uma sintonia muito grande entre ela e esses filmes baratos.
Zingu! - Se o Cinema de Bordas é um cinema de baixo orçamento, como um filme, como o do Talício Sirino [Conexão Brasil, Conexão Japão, entre outros], que custou 300 mil reais, pode ser considerado de bordas?
Bernadette Lyra - Bernadette Lyra – Porque ainda é um filme de muito baixo orçamento. Se você pegar como exemplo a indústria de cinema, um filme se faz com muita grana. Um filme mais simples custa muito dinheiro. 300 mil reais é uma super-produção de bordas, a super-produção do nada. Não há parâmetros em relação a um de Hollywood.
Z -Pergunto isso, pois um filme como O Cheiro do Ralo, do Heitor Dhalia, custou 300 mil, e se deu bem no circuito.
BL – Mas o filme do Talício, dentro do que ele propõe, é de baixo orçamento. O Cheiro do ralo também é de baixo orçamento – e pode, até, apresentar alguns traços do paracinema. Primeiro é esse: baixo orçamento. Mas sai completamente, pois é feito para exibição em larga escala. O do Talício, teoricamente também, é o que ele quer, mas nenhum multiplex vai exibir.
Z – O cinema de bordas então não entra em circuito?
BL – Necessariamente, não. Você pode consultar todos os realizadores que estamos estudando, e verá que eles não tem como mostrar seus filmes, apenas em comunidades locais, em mostras de cinema, em reuniões de amigos, só aí que eles conseguem mostrar os filmes. Há um problema muito grande de divulgação dos filmes do cinema de bordas.
Z - E porque um filme como Mangue Negro, do Rodrigo Aragão, que é muito bem feito e não tem um caráter trash, é de bordas?
BL – Nisso, você tem razão. Mas é um cinema de segunda mão. Ele não teve a intenção de fazer um autêntico filme de zumbi para exibição mundial. Ele quis fazer um filme de zumbi, com toda uma criatividade de maquiagem, com máscaras, e tudo – e ele chegou a dar aula disso já e ganhou prêmios pela criatividade também. Porém, a intenção dele é uma que está muito presente no Rambú, que é uma espécie de denúncia regional. Ele quer de alguma maneira denunciar com um filme de zumbi, não com um documentário - olha só, como ele vai pelas bordas do cinema - o problema do manguezal do Espírito Santo. O que acontece? Nesse momento, ele tem traços que podemos classificar como traços de bordas. Na verdade, o cinema de bordas, como já disse e repito, ele não é um movimento de um grupo de cineastas que quer fazer cinema de bordas, é um grupo de pesquisadores que encontrou essa denominação para caracterizar alguns filmes que tem traços específicos, inclassificáveis. São traços sempre de segunda mão, que caminham às bordas do cinemão. Quando ele faz um filme de zumbi, ele está andando pelas bordas de um modelo, de um gênero, já estabelecido. Mas ele faz isso de segunda mão porque o problema dele é outro – ele não quer fazer só um filme de zumbi -, feito de forma barata, com poucos recursos, feito com amigos, na comunidade dele. No fundo, tem aquela última característica do cinema de bordas que estamos estudando, que é uma espécie de fixação no regional, que não é no sentido do Regionalismo literário, é no sentido de se ligar ao regional. Pode observar: o Rambú tem com a Amazônia – ele grita no filme: “A Amazônia é nossa!” -, e o Rodrigo Aragão tem com o manguezal do Espírito Santo. Eu sou capixaba e sei dos profundos problemas que tem o manguezal de lá. Quando ele põe um siri saindo de uma boca, aquilo é maravilhoso. Acho aquilo divino, pois ele está, de alguma maneira, usando o trash, esse cinema de zumbi, para caracterizar um problema de seu estado, da sua região especificamente, que é uma região de beira de praia.
Z – Quem são esses cineastas no geral?
BL – São bombeiros, pedreiros, ferraleiros, ajudantes de enfermaria, sacoleiros de café, lavradores... São pessoas simples que não tem uma formação de cinema, mas, há, também, todo um grupo de cineastas que tem uma em cinema, ou em mídia, TV, e que fazem filmes com essa proposta de segunda mão, de pilhar o que eles já viram no cinema. O exemplo que cito sempre é o Joel Caetano, que tem uma formação de Rádio e TV, mas que pilha o cinemão. Ele faz de propósito aquilo. Não só do cinemão, mas das pulp fictions, das revistinhas baratas, das revistas em quadrinhos, das historietas românticas, açucaradas. Ele pega tudo, põe no seu caldeirão e apresenta em seus filmes. Tem esses dois grupos muito bem delineados. Um que é o rusticão, digamos assim, que é o pessoal autodidata mesmo, que é o Seu Manoelzinho, Simião Martiniano, Rambú, e o grupo dos realizadores que optam pelo trash, optam pela segunda mão, não sei porque, mas optam por isso, como é o caso do Joel Caetano, do Semi Salmoão, do Lucas Moreira, do Felipe Guerra. São meninos que tem formação até como cinéfilos, mas fazem essa chupação do cinema. Eles não tentam ser originais. Fazem o filme a sério, mas já aceitando que todo mundo vai rir mesmo. Costumo dizer que o Cinema de Bordas é aquele que é sério, mas todo mundo ri.
Z - O público quando vai assistir esses filmes que são considerados trash já não vão com um pré-conceito e achando que é tudo mal-feito e portanto engraçado? Pergunto isso, pois em um filme como Desaparecidos, de Antonio Marcos Ferreira, o pessoal ri em cenas que não são engraçadas. Mesmo em Encarnação do Demônio, do José Mojica Marins, o pessoal gargalhava, inclusive na cena de tortura com uma ratazana.
BL – Pois é, né? Mas o que faz rir um espectador é alguma coisa que toca o corpo dele. O medo, o horror, a comédia, o non-sense... O cinema de bordas – e isso é algo que nunca abordei com ninguém, algo bem teórico – provoca o espectador pelo corpo, e não pela cabeça, pelo cérebro, por um sujeito dominando um objeto. Provoca instantaneamente. O cinema de bordas provoca uma reação corporal no espectador. Isso é muito bonito. Isso desfaz a dicotomia de que a gente é dono do objeto, que a gente é capaz de interpreta o objeto. A gente não é capaz de interpretar coisa nenhuma, a gente vive o objeto. O cinema de bordas é isso. O espectador é mais um dado do filme. Você não é alguém vendo um filme, é como se fosse parte integrante dele. Isso mexe com o corpo, por isso as pessoas riem. Às vezes, as pessoas riem de medo, ou pelo non-sense que uma situação grotesca ou medonha provoca. Não estou com psicologismo barato. Estamos interessados em acabar, em estudar o fim dessa famosa dicotomia entre corpo e mente. O filme de bordas provoca mente e corpo, ele se faz dentro um pacto de entretenimento trivial, e não como entretenimento para ser estudado profundamente.
Z - É por isso que esses cineastas de bordas se destacam?
BL – Sempre. Quando a gente vai fazer a escolha deles para passar em mostra, ou para estudar, ou para levar para conversa, temos em mente que aqueles que mais provocam a mente e o corpo são os melhores motivos para se estudar seriamente. Fazemos uma perversão, pois o grupo é formado por doutores. À medida que estudamos, vamos vivendo os filmes. Isso é muito gostoso, e é uma situação dupla que é muito difícil na academia, entre professores. Os professores querem sempre dizer que são donos do assunto, que os assuntos estão separados deles e que, com isso, podem emitir opiniões. A gente quer que o filme entre na gente, que entendamos o filme, que vivamos o filme. Por isso não basta fazer artigos, livros, é preciso mostrar.
Z - O fato de muitos deles serem do interior de um estado que é fora do eixo Rio-SP, afeta o produto final? Fazem ser diferentes?
BL – Na verdade, o fato de eles estarem no interiorzão e terem vontade de fazer cinema é importante, mas não é decisivo. Podem sair de lá e fazer um cinemão na Globo, sei lá. Acho que vai mais da opção de cada um fazer esse tipo de filme. Seu Manoelzinho, por exemplo, faz isso muito bem, e ele se acha um grande realizador. O que é muito curioso nesses filmes, na maior parte das vezes, o diretor é ator também. Ele se põe no filme. É uma espécie subversão do cinema de gêneros, pois este é contrário ao cinema de autor. Se eles estão dentro do gênero assinando como autor, eles estão subvertendo o gênero; eles estão à margem de toda teoria consagrada. É isso tudo que faz com que a gente chame de bordas. ‘Bordas’ está em todo lugar, está sempre do lado contrário da decisão oficial, da instituição. Todo lugar que tem um centro decisório de poder, tem suas bordas em contramão.
Z -Pergunto isso, pois um filme como O Cheiro do Ralo, do Heitor Dhalia, custou 300 mil, e se deu bem no circuito.
BL – Mas o filme do Talício, dentro do que ele propõe, é de baixo orçamento. O Cheiro do ralo também é de baixo orçamento – e pode, até, apresentar alguns traços do paracinema. Primeiro é esse: baixo orçamento. Mas sai completamente, pois é feito para exibição em larga escala. O do Talício, teoricamente também, é o que ele quer, mas nenhum multiplex vai exibir.
Z – O cinema de bordas então não entra em circuito?
BL – Necessariamente, não. Você pode consultar todos os realizadores que estamos estudando, e verá que eles não tem como mostrar seus filmes, apenas em comunidades locais, em mostras de cinema, em reuniões de amigos, só aí que eles conseguem mostrar os filmes. Há um problema muito grande de divulgação dos filmes do cinema de bordas.
Z - E porque um filme como Mangue Negro, do Rodrigo Aragão, que é muito bem feito e não tem um caráter trash, é de bordas?
BL – Nisso, você tem razão. Mas é um cinema de segunda mão. Ele não teve a intenção de fazer um autêntico filme de zumbi para exibição mundial. Ele quis fazer um filme de zumbi, com toda uma criatividade de maquiagem, com máscaras, e tudo – e ele chegou a dar aula disso já e ganhou prêmios pela criatividade também. Porém, a intenção dele é uma que está muito presente no Rambú, que é uma espécie de denúncia regional. Ele quer de alguma maneira denunciar com um filme de zumbi, não com um documentário - olha só, como ele vai pelas bordas do cinema - o problema do manguezal do Espírito Santo. O que acontece? Nesse momento, ele tem traços que podemos classificar como traços de bordas. Na verdade, o cinema de bordas, como já disse e repito, ele não é um movimento de um grupo de cineastas que quer fazer cinema de bordas, é um grupo de pesquisadores que encontrou essa denominação para caracterizar alguns filmes que tem traços específicos, inclassificáveis. São traços sempre de segunda mão, que caminham às bordas do cinemão. Quando ele faz um filme de zumbi, ele está andando pelas bordas de um modelo, de um gênero, já estabelecido. Mas ele faz isso de segunda mão porque o problema dele é outro – ele não quer fazer só um filme de zumbi -, feito de forma barata, com poucos recursos, feito com amigos, na comunidade dele. No fundo, tem aquela última característica do cinema de bordas que estamos estudando, que é uma espécie de fixação no regional, que não é no sentido do Regionalismo literário, é no sentido de se ligar ao regional. Pode observar: o Rambú tem com a Amazônia – ele grita no filme: “A Amazônia é nossa!” -, e o Rodrigo Aragão tem com o manguezal do Espírito Santo. Eu sou capixaba e sei dos profundos problemas que tem o manguezal de lá. Quando ele põe um siri saindo de uma boca, aquilo é maravilhoso. Acho aquilo divino, pois ele está, de alguma maneira, usando o trash, esse cinema de zumbi, para caracterizar um problema de seu estado, da sua região especificamente, que é uma região de beira de praia.
Z – Quem são esses cineastas no geral?
BL – São bombeiros, pedreiros, ferraleiros, ajudantes de enfermaria, sacoleiros de café, lavradores... São pessoas simples que não tem uma formação de cinema, mas, há, também, todo um grupo de cineastas que tem uma em cinema, ou em mídia, TV, e que fazem filmes com essa proposta de segunda mão, de pilhar o que eles já viram no cinema. O exemplo que cito sempre é o Joel Caetano, que tem uma formação de Rádio e TV, mas que pilha o cinemão. Ele faz de propósito aquilo. Não só do cinemão, mas das pulp fictions, das revistinhas baratas, das revistas em quadrinhos, das historietas românticas, açucaradas. Ele pega tudo, põe no seu caldeirão e apresenta em seus filmes. Tem esses dois grupos muito bem delineados. Um que é o rusticão, digamos assim, que é o pessoal autodidata mesmo, que é o Seu Manoelzinho, Simião Martiniano, Rambú, e o grupo dos realizadores que optam pelo trash, optam pela segunda mão, não sei porque, mas optam por isso, como é o caso do Joel Caetano, do Semi Salmoão, do Lucas Moreira, do Felipe Guerra. São meninos que tem formação até como cinéfilos, mas fazem essa chupação do cinema. Eles não tentam ser originais. Fazem o filme a sério, mas já aceitando que todo mundo vai rir mesmo. Costumo dizer que o Cinema de Bordas é aquele que é sério, mas todo mundo ri.
Z - O público quando vai assistir esses filmes que são considerados trash já não vão com um pré-conceito e achando que é tudo mal-feito e portanto engraçado? Pergunto isso, pois em um filme como Desaparecidos, de Antonio Marcos Ferreira, o pessoal ri em cenas que não são engraçadas. Mesmo em Encarnação do Demônio, do José Mojica Marins, o pessoal gargalhava, inclusive na cena de tortura com uma ratazana.
BL – Pois é, né? Mas o que faz rir um espectador é alguma coisa que toca o corpo dele. O medo, o horror, a comédia, o non-sense... O cinema de bordas – e isso é algo que nunca abordei com ninguém, algo bem teórico – provoca o espectador pelo corpo, e não pela cabeça, pelo cérebro, por um sujeito dominando um objeto. Provoca instantaneamente. O cinema de bordas provoca uma reação corporal no espectador. Isso é muito bonito. Isso desfaz a dicotomia de que a gente é dono do objeto, que a gente é capaz de interpreta o objeto. A gente não é capaz de interpretar coisa nenhuma, a gente vive o objeto. O cinema de bordas é isso. O espectador é mais um dado do filme. Você não é alguém vendo um filme, é como se fosse parte integrante dele. Isso mexe com o corpo, por isso as pessoas riem. Às vezes, as pessoas riem de medo, ou pelo non-sense que uma situação grotesca ou medonha provoca. Não estou com psicologismo barato. Estamos interessados em acabar, em estudar o fim dessa famosa dicotomia entre corpo e mente. O filme de bordas provoca mente e corpo, ele se faz dentro um pacto de entretenimento trivial, e não como entretenimento para ser estudado profundamente.
Z - É por isso que esses cineastas de bordas se destacam?
BL – Sempre. Quando a gente vai fazer a escolha deles para passar em mostra, ou para estudar, ou para levar para conversa, temos em mente que aqueles que mais provocam a mente e o corpo são os melhores motivos para se estudar seriamente. Fazemos uma perversão, pois o grupo é formado por doutores. À medida que estudamos, vamos vivendo os filmes. Isso é muito gostoso, e é uma situação dupla que é muito difícil na academia, entre professores. Os professores querem sempre dizer que são donos do assunto, que os assuntos estão separados deles e que, com isso, podem emitir opiniões. A gente quer que o filme entre na gente, que entendamos o filme, que vivamos o filme. Por isso não basta fazer artigos, livros, é preciso mostrar.
Z - O fato de muitos deles serem do interior de um estado que é fora do eixo Rio-SP, afeta o produto final? Fazem ser diferentes?
BL – Na verdade, o fato de eles estarem no interiorzão e terem vontade de fazer cinema é importante, mas não é decisivo. Podem sair de lá e fazer um cinemão na Globo, sei lá. Acho que vai mais da opção de cada um fazer esse tipo de filme. Seu Manoelzinho, por exemplo, faz isso muito bem, e ele se acha um grande realizador. O que é muito curioso nesses filmes, na maior parte das vezes, o diretor é ator também. Ele se põe no filme. É uma espécie subversão do cinema de gêneros, pois este é contrário ao cinema de autor. Se eles estão dentro do gênero assinando como autor, eles estão subvertendo o gênero; eles estão à margem de toda teoria consagrada. É isso tudo que faz com que a gente chame de bordas. ‘Bordas’ está em todo lugar, está sempre do lado contrário da decisão oficial, da instituição. Todo lugar que tem um centro decisório de poder, tem suas bordas em contramão.