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Especial Jovem Cinema Paulista dos anos 80

Renovação no cinema de São Paulo

Por Gabriel Carneiro

O Regime Militar (1964-1985) foi motivo para que muitos cineastas se voltassem a um cinema engajado, político, especialmente nos anos 60 e 70. Na década de 80, o governo estava desgastado. A ditadura havia arrefecido, ocorreram as primeiras eleições diretas para governador (1982), desde a posse do presidente Castello Branco, em 1964, acabara a censura e o Ato Institucional nº5, além da anistia. O clima era outro. Ao mesmo tempo em que os anos 1980 configuraram-se como um balanço das décadas anteriores, havia uma incrível leveza no ar. Era a Geração Coca-Cola. O cinema deixara de lado o engajamento, sem preocupações sócio-políticas sérias, muitas vezes sendo considerados alienados – há, claro, exceções.

A política deixara de ser grande preocupação dos jovens cineastas, aqueles que realizavam seus primeiros longas-metragens. No texto Os Jovens Paulistas (1985), Jean-Claude Bernadet afirma: “Pedra de toque do Cinema Novo, um dos pilares da filosofia de Glauber Rocha, o conceito de autor deixou de ser o fator de criação que fora nos anos 50 e 60; não desapareceu, mas está em dormência. Em contrapartida, o cinema – e não só – conhece hoje o que alguns críticos chamam de ‘volta à ficção’: em oposição à desconstrução, desmontagem, desdramatização, fragmentação, tendências ensaísticas e conceituais dos anos 60, o prazer de narrar e o de acompanhar o desenrolar de uma narrativa ganham nova força. (...) um novo gosto pela ‘boa’ construção de situações, por um enredo que se vai desenvolvendo em seqüência concatenadas, personagens desenhados claramente e que perseguem objetivos definidos.”

Nos idos anos 1980, o que importava, para a nova geração, era fazer um cinema que se conectasse com o público, que dialogasse com ele, sem perder as características do cinema autoral. Era uma nova forma de se relacionar com o conceito ‘autor’, que deixou de ser estigmatizado pelo rompimento estético e narrativo, e passou a abranger também um cinema com marcas pessoais, próprias de seus idealizadores. Afinal, não deixava de ser “uma ruptura com o gosto estético vigente em décadas passadas, em especial os anos 60/70. (...) A sensibilidade estética dos anos 80 é inteiramente voltada para trás, para os anos 40 e 50, onde irá encontrar o período áureo do classicismo inocente”, conforme diz o estudioso Fernão Ramos, em seu artigo A Dama do Cine Shanghai, no livro O Cinema dos Anos 80.

Os filmes, muitas vezes, referenciavam outros cinemas, como o cinema policial americano, especialmente o noir, como a chamada Trilogia Paulistana da Noite, composta por Cidade Oculta (1986), de Chico Botelho, Anjos da Noite (1987), de Wilson Barros, e A Dama do Cine Shanghai (1988), de Guilherme de Almeida Prado. Ou o cinema caipira, visto em A Marvada Carne (1985). A questão do cinema de gênero é muito importante para esses diretores. O metacinema está impregnado nesses filmes, que não deixam de lado o deboche, a ingenuidade, o humor sempre muito presente, marca da marginalidade, muitas vezes.

Uma das características da geração de novos cineastas paulistas dos anos 1980 é o fato de fazerem filmes em São Paulo, de ser o cinema paulista. Segundo o pesquisador Fernão Ramos, “a falta de penetração do discurso da brasilidade, e portanto do Cinema Novo, em uma cidade como São Paulo, essencialmente pouco articulada em função de raízes culturais, talvez sirva como exploração inicial para compreendermos a força com que essa sensibilidade (...) explode com contexto do cinema paulista.”

Claro, Ramos parece esquecer ou desconsiderar o chamado Cinema Marginal, um cinema contracultural e politizado, que nasceu em ruptura ao Cinema Novo, inclusive na oposição geográfica. Enquanto o Cinema Novo é essencialmente carioca, o Marginal é paulista. E, para parte desses filmes, o Cinema Marginal é fundamental para compreensão. Os filmes, muitos produzidos na Boca do Lixo inclusive, carregam a bandeira do deboche e do avacalho, herança da chanchada carioca e da antropofagia modernista. E também, talvez por isso, não sejam filmes realistas, tenham um quê falso. Bernadet explica melhor essa questão: “O ‘falso’ não provém da inserção de figuras fantásticas no meio de uma narrativa ‘real’. (...) Esse tom provém, ao contrário, dos próprios elementos que indicam o real: ambientes naturais, ou que passam por tais, verossimilhança detalhada, (...) da cenografia, objetos de cena, figurinos, (...) [o] necessário para fazer um filme verista, por um lado; e, por outro, uma constante ironia a alimentar a narrativa. Ironia que provém do roteiro, das situações cômicas, mas não só, que provém de que, apesar de toda essa verossimilhança, uma fábula está sendo contada.”

Parece haver uma farsa que conduz a história. Nada é muito sério. O deboche, a comédia, a ironia, fazem desses filmes algo novo, diferente. É a transformação do gênero pela brasilidade que atribui o prazer a esses longas-metragens.

Jean-Claude Bernadet intitula o que denominei de ‘farsa’ de “ficção fingida” Ele explica: “O artificialismo (...) não se localiza num sistema de paródia, nem na incompetência em fazer cinema realista, e sim numa forma de representação que alia aspectos do realismo à ironia, que não mascara seu caráter de representação, mas não o exibe ostensiva e agressivamente como um certo cinema de 15-20 anos atrás [à época, os anos 1960 e 1970]. (...) Como se o fato de reviver, no registro da ironia, uma sensibilidade passada, especialmente a dos anos 50, nos dispensasse de elaborar uma sensibilidade nova, de produzir novos sentimentos.”

Esses filmes trazem diversas referências à sétima arte, seja na citação direta, seja na reconstrução de planos ou atmosferas. Talvez esse seja o grande diferencial dessa produção, feita por pessoas realmente apaixonadas pelo cinema: um cinema popular, que se volta ao passado, ao cinema clássico e ao cinema cômico, e ainda assim agrade os cinéfilos, justamente por tais referências.

Bibliografia citada:
BERNADET, Jean-Claude. “Os Jovens Paulistas”, in O Desafio do Cinema. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.
RAMOS, Fernão. “A Dama do Cine Shanghai”, in LABAKI, Amir (org). O Cinema dos Anos 80. São Paulo: Editora Brasiliense, 1991.



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