Dossiê José Mojica Marins
Entrevista com José Mojica Marins
Entrevista com José Mojica Marins
Parte 1: 50 Anos de Carreira
Por Gabriel Carneiro, Raphael Carneiro e Stefanie Gaspar
Fotos: Gabriel Carneiro
Zingu! - Como começou seu interesse por cinema? Você gostava de faroeste, filmes de terror?
José Mojica Marins - Eu sou filho de espanhóis. Meus pais são brasileiros, mas se criaram na Espanha. Meu pai era toureiro, chegou a ser matador, aí voltou para o Brasil... e eu nasci na Vila Mariana, numa chácara enorme, mas tinha que viajar muito com meu pai. Minha mãe dançava tango e cantava. Era uma vida cigana, e minha mãe não gostou disso, achou terrível, porque em uma das viagens – na Bahia, Ilhéus, uma coisa assim –, como eu era muito traquina com um ano e meio ou dois, os ciganos quiseram me levar. Meu pai deixou. Aí deu um temporal muito grande, e os ciganos não podiam atravessar uma ponte, e aí minha mãe achou que eu tinha sido raptado. Ela ficou desesperada. Quando abaixou a água, eles me trouxeram, mas daí em diante minha mãe falou: “Chega! Não quero mais essa vida de cigano, de ficar viajando. Quero um lugar fixo”. Meu pai tinha uns primos que eram donos da fábrica de cigarros Caruso, aí ele ligou e pediu um lugar pra ficar fixo. Tinha um cinema chamado Santo Estevão, em Vila Anastácio, logo depois da Lapa. Ele veio a ser gerente e zelador, então eu morei no fundo de um cinema. O cinemão, em uma época que não existia computador, televisão, não existia nada... Era só cinema, e revista em quadrinhos, que eu mais gostava. Tinha revistas em quadrinhos fantásticas, e eu comprava. Tinha o primeiro número do Pato Donald... então, eu me tornei um dos maiores colecionadores de quadrinhos do Brasil. Meu pai montou até uma gibiteca para mim. Eu cobrava um preço de cada um pra ficarem a vontade, pra ler. E o cinema, de início, havia umas sessões, às terças, só para mulheres, de fitas venéreas, e de fitas para homens. Antes dos 4 anos, o projecionista, querendo puxar o saco do meu pai e da minha mãe, me pegou e levou pra eu ver, mas era o dia de doenças venéreas. Daí ele sobe na cabine, abre a janelinha e manda eu olhar. Putz... eu vejo aquele cinemão que a tela era o dobro das telas de hoje, telas enormes, e era um puta de um close detalhe de uma vagina cheia de gonorréia. Aquilo dava um troço tão estranho que até hoje eu não consigo passar pro cinema. E eu vi aquilo e comecei a chorar, não sabia se era o inferno, Hades, purgatório, limbo... Não sabia. Eu sabia que aquilo era feio demais, mais assustador do que qualquer monstro. Eu chorei. Daí minha mãe subiu lá em cima, e o cara foi demitido. Mas era uma imagem pesada, e aquilo ficava no meu sonho de criança... e eu pensava: pô, o que é isso? Eu não sabia. E não tinha quem me explicasse. Os anos foram passando, e eu querendo descobrir o que eu tinha visto. Pensei que era o inferno, e daí comecei a ficar com medo do inferno. É muito feio, mas é muuuito feio. Todos desenhistas famosos que conheço já tentaram me fazer um desenho, mas não conseguem. Eu vou ter um dia que pegar argila, não sei, e montar uma coisa, fazer de gesso, sei lá, para as pessoas verem que é terrível, vocês não têm idéia do que é isso, caindo aos pedaços, buraco pra cá, buraco pra lá! Não é um buraco só, são vários buracos. Por isso que todo mundo fala pra mim que a vagina só tem um buraco, e eu dizia “não, tem muitos!”. Desde criança quando me perguntavam como é a da mulher, e eu falava “tem uns 10 a 12 buracos!” Era o que eu tinha visto. Então essa imagem me acompanhou e me acompanha. Quem sabe se eu passar pro cinema, eu concluo minha missão mesmo. E aí, com essa imagem na cabeça, meu pai queria que eu esquecesse isso e passou a me levar a vários cinemas. Aí eu vi Chaplin. Novamente, outro problema: eu não ria com as fitas do Chaplin. Aí meu pai achava que eu fiquei traumatizado e tinha problemas mentais. Até um dia quebrou uma fita do Chaplin, e eu peguei uma lupa, aos seis anos, e levei pro meu pai uma cena do Chaplin rindo, mas os olhos tristes, quase chorando. Eu tinha razão, porque até hoje eu não rio do Chaplin. Depois comecei a comprar livros, quando virei adulto, e ele foi um cara realmente triste. Ele fazia, mas sofreu pra cacete e só teve problemas. Ele não ria. Ele ria, mas não mostrava os sentimentos nos olhos. Os olhos estavam sempre tristes, em qualquer fita. Se pegar um close dos olhos, ele não consegue mudar. Aí meu pai começou a entender que eu já estava em uma infância precoce, indo muito além do meu tempo. Eu não conseguia conversar com garotos de 7, 8 anos, porque eu os considerava crianças. Com 12, 13 anos, eu já pensava em coisas mais elevadas. Aí veio a história do batateiro, que todo mundo conhece, morreu, daí ele levantou no enterro, e de repente deixaram o homem na solidão, ele foi parar no manicômio e lá morreu. Eu fui vê-lo. Aí começava meu interesse pela morte, porque todo mundo quer que a vida volte, mas se ela volta ninguém quer mais. Daí começava uma revolta minha pra valer. Eu acho que estava certo, e começaria a pesquisar tudo que era morte.
Z – Foi nessa época que você começou a filmar?
JMM - Aos 10 anos, meu pai me deu uma bicicleta, mas eu pedi pra ele devolver e me dar uma câmera de 8 milímetros e meio. Daí eu começava meu primeiro filme, Juízo Final, que é uma espécie de ficção e terror ao mesmo tempo - como eu tinha a vantagem de estar um cinema, eu oferecia o ingresso e pedia pras pessoas trazerem um quilo de vermes de goiaba. Daí, todo mundo saiu atrás das goiabas podres e trouxeram sacos e sacos. Daí começou meu cinema exagerado. Meu pai me perguntou o que eu ia fazer com esses sacos, e eu falei que dava um jeito. Tinha a historinha com um disco voador. Na época, eu acompanhava Flash Gordon, Buck Rogers, e ali tudo era vivo. Pô, mas pra fazer um caixão, que era o que eu estava vendo sempre, vai ser mais bonito. Então no lugar do disco, eu já fazia um caixãozinho que vinha de outro planeta, e que iluminava um piquenique e levava as pessoas boas e petrificava as más. Era num baile, os bons iam e os maus ficavam. Era num jantar também. Quem ficava petrificado eu aprendi a voltar o negativo, o que foi muito legal, e filmar em cima, na chamada fusão, que eu achava muito legal. Eu achei que tinha descoberto a fusão. Foi muito legal. E aí eu pegava os caras petrificados e enchia de cola, goma arábica, de polvilho – que era o que meu pai punha nos cartazes -, e enchia eles de vermes. Aí eu ia fazendo um buraco, enterrando os outros... Só ficavam vermes, e fundia com a grama. Eu saía feliz da vida. Para pai e mãe corujas, era uma coisa genial. Foi chamado o padre - eu estava brigado com o padre - porque eu fazia umas coisas muito acima do normal e ele não gostava de mim. Eu tinha pego a direção de uma peça mirim sobre a branca de neve, eu fui fazer o caçador, e como a menina não gritava, eu peguei uma lagartixa e coloquei no decote. Ela começou a gritar, rasgou a roupa, ficou pelada no palco, daí veio o pai e o padre. Então aos 9 anos, eu fiquei maldito pelo padre. Fiz esse filme, e veio o padre, o coroinha, filhos de Maria, congregados marianos, lotado o cinema. Meu pai procurou por um vinil de música religiosa pra acompanhar a fita, e o padre ficava olhando. Eu olhando para o padre. Na verdade, tava todo mundo olhando pro padre pra ver o que ele ia achar. Pareciam que as órbitas dele iam sair. Meu pai colocou um projetor de longe, e ficou um terço da tela. Quando terminou, o padre olhou pra mim, levantou, e eu falei “porra, 15 minutos de fama”. Acabou. Daí ele chegou, colocou a mão na minha cabeça e falou pro meu pai: “seu Antônio, seu filho é um débil mental”. Aí começaria minha saga: apoio dos pais, por ser filho único, mas todo mundo do vilarejo contra. Eu trouxe meninas de outros bairros e montei um salão de baile, onde eu queria montar um estúdio pra começar a ganhar dinheiro, pra comprar fita, pra poder fazer outros filminhos. Então as meninas ficavam nos cantos e os caras tinham que comprar um buquê de flores, e pra dançar com uma menina, tinha que dar uma flor. A gente arrecadava dinheiro pra poder comprar negativos e juntar um pouquinho pra depois eu passar pro 16 – e depois eu chegaria nos 35 -, isso no início dos anos 1950.
Z – Como surgiu seu primeiro longa, A Sina do Aventureiro?
JMM – Tentei fazer Sentença de Deus, mas teve um problema e também foi considerado maldito, não consegui fazer e hoje tenho muitas cenas. Morreu uma atriz que foi tomar banho na Vera Cruz e não tinha nada comigo, mas já puseram ela comigo. A outra veio trabalhar com a gente, mas era tuberculosa, ela morreu e também disseram que eu era culpado. Uma outra, que disseram que não ia acontecer nada, surgiu um imprevisto de ela ter que ir pro Paraná – a estrada até hoje é fodida, cheia de coisa –, e ela sofreu um atropelamento e perdeu uma perna. Daí eu resolvi não fazer mais o filme, mas lancei o livro Sentença de Deus e foi um sucesso nos anos 50, 55. Daí consegui angariar dinheiro pra fazer o meu primeiro longa cinemascope A Sina do Aventureiro, que explodiu, mas foi perseguido porque eu coloquei duas meninas nuas tomando banho numa cachoeira porque eu achei que era normal. A fita estourou nas capitais. Os padres acharam pornográfico, e diziam no interior pras pessoas não assistirem ao filme e ninguém assistia. Eu tentei fazer as pazes, e o padre Lopes da Faculdade São Luis falou: “olha, você tem que fazer uma fita pras crianças, os padres têm que ser os heróis, as freiras”. Putz... bom, daí eu fiz o musical, o drama Meu Destino em Tuas Mãos, a fita terminou e lá fui eu falar com o padre Lopes. Ele projetou o filme e os padres levantavam, aplaudiram... daí eu fui tentar vender e... ninguém quis a fita. Eu voltei pro padre Lopes - que, aliás, ainda tá vivo, com uns 90 anos, e meio gagá, segundo me disseram -, e ele falou: “filho, você não nasceu pra fazer cinema, você podia comprar caixinhas de uva passa, vender na rua, você podia engraxar sapatos, é tão fácil...”. Aí eu me revoltei.
José Mojica Marins - Eu sou filho de espanhóis. Meus pais são brasileiros, mas se criaram na Espanha. Meu pai era toureiro, chegou a ser matador, aí voltou para o Brasil... e eu nasci na Vila Mariana, numa chácara enorme, mas tinha que viajar muito com meu pai. Minha mãe dançava tango e cantava. Era uma vida cigana, e minha mãe não gostou disso, achou terrível, porque em uma das viagens – na Bahia, Ilhéus, uma coisa assim –, como eu era muito traquina com um ano e meio ou dois, os ciganos quiseram me levar. Meu pai deixou. Aí deu um temporal muito grande, e os ciganos não podiam atravessar uma ponte, e aí minha mãe achou que eu tinha sido raptado. Ela ficou desesperada. Quando abaixou a água, eles me trouxeram, mas daí em diante minha mãe falou: “Chega! Não quero mais essa vida de cigano, de ficar viajando. Quero um lugar fixo”. Meu pai tinha uns primos que eram donos da fábrica de cigarros Caruso, aí ele ligou e pediu um lugar pra ficar fixo. Tinha um cinema chamado Santo Estevão, em Vila Anastácio, logo depois da Lapa. Ele veio a ser gerente e zelador, então eu morei no fundo de um cinema. O cinemão, em uma época que não existia computador, televisão, não existia nada... Era só cinema, e revista em quadrinhos, que eu mais gostava. Tinha revistas em quadrinhos fantásticas, e eu comprava. Tinha o primeiro número do Pato Donald... então, eu me tornei um dos maiores colecionadores de quadrinhos do Brasil. Meu pai montou até uma gibiteca para mim. Eu cobrava um preço de cada um pra ficarem a vontade, pra ler. E o cinema, de início, havia umas sessões, às terças, só para mulheres, de fitas venéreas, e de fitas para homens. Antes dos 4 anos, o projecionista, querendo puxar o saco do meu pai e da minha mãe, me pegou e levou pra eu ver, mas era o dia de doenças venéreas. Daí ele sobe na cabine, abre a janelinha e manda eu olhar. Putz... eu vejo aquele cinemão que a tela era o dobro das telas de hoje, telas enormes, e era um puta de um close detalhe de uma vagina cheia de gonorréia. Aquilo dava um troço tão estranho que até hoje eu não consigo passar pro cinema. E eu vi aquilo e comecei a chorar, não sabia se era o inferno, Hades, purgatório, limbo... Não sabia. Eu sabia que aquilo era feio demais, mais assustador do que qualquer monstro. Eu chorei. Daí minha mãe subiu lá em cima, e o cara foi demitido. Mas era uma imagem pesada, e aquilo ficava no meu sonho de criança... e eu pensava: pô, o que é isso? Eu não sabia. E não tinha quem me explicasse. Os anos foram passando, e eu querendo descobrir o que eu tinha visto. Pensei que era o inferno, e daí comecei a ficar com medo do inferno. É muito feio, mas é muuuito feio. Todos desenhistas famosos que conheço já tentaram me fazer um desenho, mas não conseguem. Eu vou ter um dia que pegar argila, não sei, e montar uma coisa, fazer de gesso, sei lá, para as pessoas verem que é terrível, vocês não têm idéia do que é isso, caindo aos pedaços, buraco pra cá, buraco pra lá! Não é um buraco só, são vários buracos. Por isso que todo mundo fala pra mim que a vagina só tem um buraco, e eu dizia “não, tem muitos!”. Desde criança quando me perguntavam como é a da mulher, e eu falava “tem uns 10 a 12 buracos!” Era o que eu tinha visto. Então essa imagem me acompanhou e me acompanha. Quem sabe se eu passar pro cinema, eu concluo minha missão mesmo. E aí, com essa imagem na cabeça, meu pai queria que eu esquecesse isso e passou a me levar a vários cinemas. Aí eu vi Chaplin. Novamente, outro problema: eu não ria com as fitas do Chaplin. Aí meu pai achava que eu fiquei traumatizado e tinha problemas mentais. Até um dia quebrou uma fita do Chaplin, e eu peguei uma lupa, aos seis anos, e levei pro meu pai uma cena do Chaplin rindo, mas os olhos tristes, quase chorando. Eu tinha razão, porque até hoje eu não rio do Chaplin. Depois comecei a comprar livros, quando virei adulto, e ele foi um cara realmente triste. Ele fazia, mas sofreu pra cacete e só teve problemas. Ele não ria. Ele ria, mas não mostrava os sentimentos nos olhos. Os olhos estavam sempre tristes, em qualquer fita. Se pegar um close dos olhos, ele não consegue mudar. Aí meu pai começou a entender que eu já estava em uma infância precoce, indo muito além do meu tempo. Eu não conseguia conversar com garotos de 7, 8 anos, porque eu os considerava crianças. Com 12, 13 anos, eu já pensava em coisas mais elevadas. Aí veio a história do batateiro, que todo mundo conhece, morreu, daí ele levantou no enterro, e de repente deixaram o homem na solidão, ele foi parar no manicômio e lá morreu. Eu fui vê-lo. Aí começava meu interesse pela morte, porque todo mundo quer que a vida volte, mas se ela volta ninguém quer mais. Daí começava uma revolta minha pra valer. Eu acho que estava certo, e começaria a pesquisar tudo que era morte.
Z – Foi nessa época que você começou a filmar?
JMM - Aos 10 anos, meu pai me deu uma bicicleta, mas eu pedi pra ele devolver e me dar uma câmera de 8 milímetros e meio. Daí eu começava meu primeiro filme, Juízo Final, que é uma espécie de ficção e terror ao mesmo tempo - como eu tinha a vantagem de estar um cinema, eu oferecia o ingresso e pedia pras pessoas trazerem um quilo de vermes de goiaba. Daí, todo mundo saiu atrás das goiabas podres e trouxeram sacos e sacos. Daí começou meu cinema exagerado. Meu pai me perguntou o que eu ia fazer com esses sacos, e eu falei que dava um jeito. Tinha a historinha com um disco voador. Na época, eu acompanhava Flash Gordon, Buck Rogers, e ali tudo era vivo. Pô, mas pra fazer um caixão, que era o que eu estava vendo sempre, vai ser mais bonito. Então no lugar do disco, eu já fazia um caixãozinho que vinha de outro planeta, e que iluminava um piquenique e levava as pessoas boas e petrificava as más. Era num baile, os bons iam e os maus ficavam. Era num jantar também. Quem ficava petrificado eu aprendi a voltar o negativo, o que foi muito legal, e filmar em cima, na chamada fusão, que eu achava muito legal. Eu achei que tinha descoberto a fusão. Foi muito legal. E aí eu pegava os caras petrificados e enchia de cola, goma arábica, de polvilho – que era o que meu pai punha nos cartazes -, e enchia eles de vermes. Aí eu ia fazendo um buraco, enterrando os outros... Só ficavam vermes, e fundia com a grama. Eu saía feliz da vida. Para pai e mãe corujas, era uma coisa genial. Foi chamado o padre - eu estava brigado com o padre - porque eu fazia umas coisas muito acima do normal e ele não gostava de mim. Eu tinha pego a direção de uma peça mirim sobre a branca de neve, eu fui fazer o caçador, e como a menina não gritava, eu peguei uma lagartixa e coloquei no decote. Ela começou a gritar, rasgou a roupa, ficou pelada no palco, daí veio o pai e o padre. Então aos 9 anos, eu fiquei maldito pelo padre. Fiz esse filme, e veio o padre, o coroinha, filhos de Maria, congregados marianos, lotado o cinema. Meu pai procurou por um vinil de música religiosa pra acompanhar a fita, e o padre ficava olhando. Eu olhando para o padre. Na verdade, tava todo mundo olhando pro padre pra ver o que ele ia achar. Pareciam que as órbitas dele iam sair. Meu pai colocou um projetor de longe, e ficou um terço da tela. Quando terminou, o padre olhou pra mim, levantou, e eu falei “porra, 15 minutos de fama”. Acabou. Daí ele chegou, colocou a mão na minha cabeça e falou pro meu pai: “seu Antônio, seu filho é um débil mental”. Aí começaria minha saga: apoio dos pais, por ser filho único, mas todo mundo do vilarejo contra. Eu trouxe meninas de outros bairros e montei um salão de baile, onde eu queria montar um estúdio pra começar a ganhar dinheiro, pra comprar fita, pra poder fazer outros filminhos. Então as meninas ficavam nos cantos e os caras tinham que comprar um buquê de flores, e pra dançar com uma menina, tinha que dar uma flor. A gente arrecadava dinheiro pra poder comprar negativos e juntar um pouquinho pra depois eu passar pro 16 – e depois eu chegaria nos 35 -, isso no início dos anos 1950.
Z – Como surgiu seu primeiro longa, A Sina do Aventureiro?
JMM – Tentei fazer Sentença de Deus, mas teve um problema e também foi considerado maldito, não consegui fazer e hoje tenho muitas cenas. Morreu uma atriz que foi tomar banho na Vera Cruz e não tinha nada comigo, mas já puseram ela comigo. A outra veio trabalhar com a gente, mas era tuberculosa, ela morreu e também disseram que eu era culpado. Uma outra, que disseram que não ia acontecer nada, surgiu um imprevisto de ela ter que ir pro Paraná – a estrada até hoje é fodida, cheia de coisa –, e ela sofreu um atropelamento e perdeu uma perna. Daí eu resolvi não fazer mais o filme, mas lancei o livro Sentença de Deus e foi um sucesso nos anos 50, 55. Daí consegui angariar dinheiro pra fazer o meu primeiro longa cinemascope A Sina do Aventureiro, que explodiu, mas foi perseguido porque eu coloquei duas meninas nuas tomando banho numa cachoeira porque eu achei que era normal. A fita estourou nas capitais. Os padres acharam pornográfico, e diziam no interior pras pessoas não assistirem ao filme e ninguém assistia. Eu tentei fazer as pazes, e o padre Lopes da Faculdade São Luis falou: “olha, você tem que fazer uma fita pras crianças, os padres têm que ser os heróis, as freiras”. Putz... bom, daí eu fiz o musical, o drama Meu Destino em Tuas Mãos, a fita terminou e lá fui eu falar com o padre Lopes. Ele projetou o filme e os padres levantavam, aplaudiram... daí eu fui tentar vender e... ninguém quis a fita. Eu voltei pro padre Lopes - que, aliás, ainda tá vivo, com uns 90 anos, e meio gagá, segundo me disseram -, e ele falou: “filho, você não nasceu pra fazer cinema, você podia comprar caixinhas de uva passa, vender na rua, você podia engraxar sapatos, é tão fácil...”. Aí eu me revoltei.
Símbolos do personagem Zé do Caixão:
medalhão e a unha (e os anéis)
Z – Foi nesse momento da sua carreira que você teve o famoso sonho?
JMM - Em 1963, eu ia fazer o filme sobre juventude, Geração Maldita, mas tive um pesadelo. No dia 11 de outubro de 1963, eu sentei pra jantar, cansado, daí eu vi aquela figura de preto que me arrastava por um túnel. Tinha uma lápide com o meu nome e data de nascimento e de morte. A da morte eu não quis ver. Aí eu acordei, e já tava lá o pai de santo que minha esposa chamou, e disse: “tirei o diabo dele”. Eu falei que ninguém tirou o diabo, eu tinha tido uma premonição. Fui tomar banho e umas cinco da manhã já tava eu, aqui na Frederico Abranche, batendo na porta da minha secretária. Ela perguntou: “nossa, aconteceu alguma coisa, seu Mojica?”. Eu falei que não, que precisávamos mudar de filme, e que faríamos À Meia Noite Levarei sua Alma, e que queria que ela se arrumasse pra escrevermos o argumento, que deu duas páginas. Tentamos ver se o pessoal associado à Geração Maldita ia topar, aí não deu outra: na tarde do dia 11, juntou todo mundo e ninguém topou, porque era loucura, todo mundo pediu o dinheiro de volta... e aí eu estava com aquilo na cabeça, falei com a minha esposa [na época, Rosita Soler], que era espanhola e dançava flamenco – inclusive ela foi considerada uma das mulheres mais bonitas do Brasil, só dava capa de revista... eu tive uma sorte danada em casar com ela e ela abandonar a área dela pra me apoiar no cinema. Ela aceitou que eu vendesse a nossa casa, vendesse os móveis e foi pra casa do meu sogro. Meu pai também vendeu o carro e me deu algumas economias. Eu juntei tudo e contratei a equipe, que queria receber por dia porque não acreditava na fita. Eu não tinha saída. É bem conhecido que ninguém queria fazer o Zé do Caixão. A barba eu já tinha porque a família tinha feito uma promessa que, se eu me curasse de um problema intestinal, eu deixaria crescer a barba. E aí o maquiador falou: olha, você está de barba mesmo, eu estava com uma capa de Exu que o zelador esqueceu – tinha feito a macumba e esqueceu -, daí alugamos uma cartola que depois eu comprei... o terno de domingo era preto... então eu resolvi fazer o personagem. Eu tinha duas unhas como eu tenho essas, do polegar, o maquiador me deu a idéia de eu colocar oito unhas postiças, daí eu fui fazer o programa de televisão do Walter Forster, o homem que daria o primeiro beijo na televisão. Eles me perguntaram: e se ninguém aceitar o Zé do Caixão? E se ninguém topar o terror, e aí? Aí eu roguei a minha primeira praga. Sairia das Organizações Vitor Costa, que era na rua das Palmeiras, e já iria para o meu estúdio - o meu estúdio era onde hoje é o metrô Santa Cecília - pra começar a fazer a primeira cena do Zé do Caixão, dia 15 de outubro de 1963 – me apresentava na televisão, me apresentava no cinema. Daí nasceria o personagem Zé do Caixão, fazendo uma fita, em que eu não tinha amigos, a equipe ria, não tinha força como equipe. Diretores de toda a parte do Brasil vinham me visitar no estúdio pra tirar sarro, falavam: “esse cara tá fazendo uma merda, vai jogar no lixo”. Eu era o produtor e o diretor, mas não tinha liberdade nem com quem conversar, porque ninguém acreditava. Os figurantes, os atores, eram da minha escola, mas todos pobres, ninguém tinha dinheiro. Eles ficavam calados, porque viam os caras da Vera Cruz, que eram técnicos e tal, e eu fodido, porque não tinha com quem conversar. Em casa não podia fazer, porque queira ou não havia o problema de eu ter mandado minha mulher morar com meu sogro, e ele tava puto comigo, todos os cunhados putos... porra, não tinha ninguém. Daí nasceu aquilo que eu digo: não confia no outro porque o outro quer ser você. Eu olhava no espelho e falava comigo mesmo. Os únicos que confiavam em mim, mas não entendiam de terror, eram meus pais. Eu gostava, porque começou com a vagina caindo aos pedaços, e eu tentava reproduzir isso na fita, mas não deu. Tentei no Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver, mas não deu certo. No Encarnação do Demônio eu falei pro Paulo: porra, se eu fizer... mas não deu. Mas isso tá na minha cabeça e eu preciso fazer, porque é muito, muuito feio. É a coisa mais feia que eu já vi no mundo: uma vagina em pedaços, cheia de buracos, úmida, esquisita e saindo aquela gosma branca misturada com sangue... não veja não, porque você nunca mais vai querer transar. Vai virar boiola, vai virar boiola! Fica sim, se vê aquilo fica! Eu, como era pequeno, não deu em nada, mas essa coisa me acompanhou tanto que as namoradas não entendiam. Como naquela época o pessoal só mandava beijinho, aí eu chegava pra elas e falava: “levanta a saia e abaixa a calcinha”. Eu só queria olhar, só! Queria ver se era igual. Quando eu via que era diferente falava: ah, então tudo bem, podemos continuar o namoro. E assim foi a vida toda. A gente aprendeu a praticar sexo aos 10 anos, veio uma prostituta no meu bairro e cobrava um tostão, e aquilo ficava fila cheia de gente, pra ficar olhando o negócio dela. Não era igual. A gente aprendia. Aí ela explicava: “não filho, isso você só vai ver se você entrar em um hospital de doenças venéreas”. Porra, eu tentava entrar... mas nunca consegui, nunca consegui! Eu gostaria que alguém me levasse num lugar desses. Eu acho que hoje, com a força que eu tenho, dá até pra conseguir, pro cara ver. Pagar uma nota pra menina abrir a perna e filmar, pra tentar passar pro cinema.
Z - Como foram as modificações do personagem Zé do Caixão? Ele muda bastante ao longo da trilogia, e até que em Exorcismo Negro ele vira uma coisa diabólica.
JMM - Mas o Exorcismo Negro já não é a série dele. Digamos que seja um dia de folga, um domingo qualquer dele, não tem nada a ver com a trilogia. É que eles sempre queriam que eu colocasse o raio do Zé do Caixão. Eu falava: “Porra, será que vocês não podem me dar uma paz?” Foi quando fiz o filme, nos anos 1970, eu de férias do Zé do Caixão. A revista Realidade tinha perguntado o que seria de mim sem o Zé, aí eu mostrei que podia fazer bang bang, musical, fita de selva... eu sobrevivia sem o Zé. O Zé é forte. Eu devo muito ao Zé, principalmente no Encarnação do Demônio - vamos ver o que ele vai querer me cobrar depois, o Zé cobra. Os caras só queriam o Zé, e confundem o criador com ele também, mas eu acho que as pessoas vão aprender a pôr no lugar criador e criação. Lá fora, no exterior, ao menos, no primeiro mundo, todo mundo sabe diferenciar. Aqui, hoje, uns 10% ainda não diferenciam, mas no passado era pior. Uns 90% acreditavam que Mojica e Zé eram a mesma coisa.
JMM - Em 1963, eu ia fazer o filme sobre juventude, Geração Maldita, mas tive um pesadelo. No dia 11 de outubro de 1963, eu sentei pra jantar, cansado, daí eu vi aquela figura de preto que me arrastava por um túnel. Tinha uma lápide com o meu nome e data de nascimento e de morte. A da morte eu não quis ver. Aí eu acordei, e já tava lá o pai de santo que minha esposa chamou, e disse: “tirei o diabo dele”. Eu falei que ninguém tirou o diabo, eu tinha tido uma premonição. Fui tomar banho e umas cinco da manhã já tava eu, aqui na Frederico Abranche, batendo na porta da minha secretária. Ela perguntou: “nossa, aconteceu alguma coisa, seu Mojica?”. Eu falei que não, que precisávamos mudar de filme, e que faríamos À Meia Noite Levarei sua Alma, e que queria que ela se arrumasse pra escrevermos o argumento, que deu duas páginas. Tentamos ver se o pessoal associado à Geração Maldita ia topar, aí não deu outra: na tarde do dia 11, juntou todo mundo e ninguém topou, porque era loucura, todo mundo pediu o dinheiro de volta... e aí eu estava com aquilo na cabeça, falei com a minha esposa [na época, Rosita Soler], que era espanhola e dançava flamenco – inclusive ela foi considerada uma das mulheres mais bonitas do Brasil, só dava capa de revista... eu tive uma sorte danada em casar com ela e ela abandonar a área dela pra me apoiar no cinema. Ela aceitou que eu vendesse a nossa casa, vendesse os móveis e foi pra casa do meu sogro. Meu pai também vendeu o carro e me deu algumas economias. Eu juntei tudo e contratei a equipe, que queria receber por dia porque não acreditava na fita. Eu não tinha saída. É bem conhecido que ninguém queria fazer o Zé do Caixão. A barba eu já tinha porque a família tinha feito uma promessa que, se eu me curasse de um problema intestinal, eu deixaria crescer a barba. E aí o maquiador falou: olha, você está de barba mesmo, eu estava com uma capa de Exu que o zelador esqueceu – tinha feito a macumba e esqueceu -, daí alugamos uma cartola que depois eu comprei... o terno de domingo era preto... então eu resolvi fazer o personagem. Eu tinha duas unhas como eu tenho essas, do polegar, o maquiador me deu a idéia de eu colocar oito unhas postiças, daí eu fui fazer o programa de televisão do Walter Forster, o homem que daria o primeiro beijo na televisão. Eles me perguntaram: e se ninguém aceitar o Zé do Caixão? E se ninguém topar o terror, e aí? Aí eu roguei a minha primeira praga. Sairia das Organizações Vitor Costa, que era na rua das Palmeiras, e já iria para o meu estúdio - o meu estúdio era onde hoje é o metrô Santa Cecília - pra começar a fazer a primeira cena do Zé do Caixão, dia 15 de outubro de 1963 – me apresentava na televisão, me apresentava no cinema. Daí nasceria o personagem Zé do Caixão, fazendo uma fita, em que eu não tinha amigos, a equipe ria, não tinha força como equipe. Diretores de toda a parte do Brasil vinham me visitar no estúdio pra tirar sarro, falavam: “esse cara tá fazendo uma merda, vai jogar no lixo”. Eu era o produtor e o diretor, mas não tinha liberdade nem com quem conversar, porque ninguém acreditava. Os figurantes, os atores, eram da minha escola, mas todos pobres, ninguém tinha dinheiro. Eles ficavam calados, porque viam os caras da Vera Cruz, que eram técnicos e tal, e eu fodido, porque não tinha com quem conversar. Em casa não podia fazer, porque queira ou não havia o problema de eu ter mandado minha mulher morar com meu sogro, e ele tava puto comigo, todos os cunhados putos... porra, não tinha ninguém. Daí nasceu aquilo que eu digo: não confia no outro porque o outro quer ser você. Eu olhava no espelho e falava comigo mesmo. Os únicos que confiavam em mim, mas não entendiam de terror, eram meus pais. Eu gostava, porque começou com a vagina caindo aos pedaços, e eu tentava reproduzir isso na fita, mas não deu. Tentei no Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver, mas não deu certo. No Encarnação do Demônio eu falei pro Paulo: porra, se eu fizer... mas não deu. Mas isso tá na minha cabeça e eu preciso fazer, porque é muito, muuito feio. É a coisa mais feia que eu já vi no mundo: uma vagina em pedaços, cheia de buracos, úmida, esquisita e saindo aquela gosma branca misturada com sangue... não veja não, porque você nunca mais vai querer transar. Vai virar boiola, vai virar boiola! Fica sim, se vê aquilo fica! Eu, como era pequeno, não deu em nada, mas essa coisa me acompanhou tanto que as namoradas não entendiam. Como naquela época o pessoal só mandava beijinho, aí eu chegava pra elas e falava: “levanta a saia e abaixa a calcinha”. Eu só queria olhar, só! Queria ver se era igual. Quando eu via que era diferente falava: ah, então tudo bem, podemos continuar o namoro. E assim foi a vida toda. A gente aprendeu a praticar sexo aos 10 anos, veio uma prostituta no meu bairro e cobrava um tostão, e aquilo ficava fila cheia de gente, pra ficar olhando o negócio dela. Não era igual. A gente aprendia. Aí ela explicava: “não filho, isso você só vai ver se você entrar em um hospital de doenças venéreas”. Porra, eu tentava entrar... mas nunca consegui, nunca consegui! Eu gostaria que alguém me levasse num lugar desses. Eu acho que hoje, com a força que eu tenho, dá até pra conseguir, pro cara ver. Pagar uma nota pra menina abrir a perna e filmar, pra tentar passar pro cinema.
Z - Como foram as modificações do personagem Zé do Caixão? Ele muda bastante ao longo da trilogia, e até que em Exorcismo Negro ele vira uma coisa diabólica.
JMM - Mas o Exorcismo Negro já não é a série dele. Digamos que seja um dia de folga, um domingo qualquer dele, não tem nada a ver com a trilogia. É que eles sempre queriam que eu colocasse o raio do Zé do Caixão. Eu falava: “Porra, será que vocês não podem me dar uma paz?” Foi quando fiz o filme, nos anos 1970, eu de férias do Zé do Caixão. A revista Realidade tinha perguntado o que seria de mim sem o Zé, aí eu mostrei que podia fazer bang bang, musical, fita de selva... eu sobrevivia sem o Zé. O Zé é forte. Eu devo muito ao Zé, principalmente no Encarnação do Demônio - vamos ver o que ele vai querer me cobrar depois, o Zé cobra. Os caras só queriam o Zé, e confundem o criador com ele também, mas eu acho que as pessoas vão aprender a pôr no lugar criador e criação. Lá fora, no exterior, ao menos, no primeiro mundo, todo mundo sabe diferenciar. Aqui, hoje, uns 10% ainda não diferenciam, mas no passado era pior. Uns 90% acreditavam que Mojica e Zé eram a mesma coisa.