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Dossiê José Mojica Marins

Entrevista com José Mojica Marins

Parte 2: Encarnação do Demônio

Por Gabriel Carneiro, Raphael Carneiro e Stefanie Gaspar
Fotos: Gabriel Carneiro

Zingu! – Como foi sua batalha para lançar Encarnação do Demônio?

José Mojica Marins - A luta foi muito grande, e eu tentei começar em 1966, 1967 a continuação do Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver, mas não deu. A perseguição da ditadura era dantesca, muito forte, mas daí no final dos anos 1970 eu consegui um produtor, um americano, mas ele não tinha mulher nem sócio. Aí pegou um câncer na garganta, morreu e não pôde me fazer a fita. Já no final dos anos 1980, o mesmo produtor, Augusto Cervantes, do Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver, resolveu apostar tudo no Encarnação do Demônio. Mas daí teve problema de coração, um homem forte, mas teve que colocar ponte de safena e tal, e não agüentou: morreu. Novamente, não tinha mulher, não tinha filhos, ninguém pra continuar a fita. O contador dele ficou com todo o dinheiro. Não tinha sócio, então o projeto parou. Toda a modificação do roteiro ficou parada, eu já estava entregando os pontos quando finalmente apareceu um brasileiro, o Ivan Novais, que tinha feito Cidade Oculta. Ele falou: “Comigo a fita sai!” Pediu indicação de nomes para a equipe, e eu dei. Ele chamou todos os técnicos e atores pra uma peixada e ia pagar todo mundo. Nesse dia, até eu que ia receber R$100 mil, ele disse que ia dar R$200 mil... puta que o pariu, falei: “já ganhei a minha aposentadoria!”. Na época, eu estava estreando meu primeiro bate-papo na UOL. Ele marcou um coquetel na UOL, e às 2 da madrugada me telefonou dizendo que tinha comprado peixe no CEASA e tal, e eu fiquei tranqüilo. Chegou o dia seguinte, vesti um terninho de linho que eu tinha comprado no dia que surgiu o primeiro pagamento do Encarnação do Demônio. Não sabia que a fita não ia ser feita. Aí a Ítala Nandi me telefonou, e falou: “Mojica, você está indo pra onde?” Eu falei: “Ainda bem que já está em São Paulo, vai receber hoje!” Ela retrucou: “Não é bem assim. Não tem almoço, tem velório.” O homem morreu de emoção. Porra, daí eu tive que ir pra um chat da Uol e dar a notícia pros fãs, de que não ia sair Encarnação do Demônio. Parecia o fim. Já não tinha mais o que fazer. Chega o ano 2000, e eu já estava pensando em fazer outras coisas, histórias em quadrinhos, fotonovelas, estou quase esquecendo do cinema, quando me ligou o Dennison Ramalho, que eu tinha conhecido no Rio Grande do Sul, como tradutor do Rob Zombie, que veio fazer uma homenagem para mim. Ele me disse: “Mojica, eu estou com um produtor aqui, e ele quer fazer uma fita de terror. Você pode recebê-lo?”. Era o Paulo Sacramento, da Olhos de Cão. Aí eu já tava levando tudo na gozação: Dennison gordinho, Paulo magrelo – era o Gordo e o Magro olhando pra mim. Falei meio brincando com eles: tá, o que vocês querem fazer? E era Encarnação que eles queriam. Aí falei com o meu filho, que é advogado, o Crounel – ele tem um nome estranho, eu procurei um nome diferente pra ninguém poder imitar –, e ele disse: “pai, você não tem nada a perder. Qual é o problema? Se saiu, saiu”. E aí o Paulo fez o contrato, eu assinei, e então começaria a corrida atrás do dinheiro. Eu não estava acreditando, mesmo eles fazendo um roteiro bonito, e entre 2003 e 2004 saiu o primeiro dinheiro. Ele me liga: “Mojica, se põe a caráter, porque daqui a cinco minutos você vai se encontrar com o governador”. E eu respondi: “e vou fazer o quê com o governador?”. O Paulo falou que ele ia nos dar R$500 mil. Porra, não demorei nem cinco minutos – acho que três - pra me arrumar. Fui encontrar com o Geraldo, e tinha lá uns 40 cineastas com um discurso na mão pra ele. Ele me viu e perguntou: quem é esse homem? “É o Zé do Caixão”. “Porra!” Eu saio com ele e todo mundo parou pra olhar e fotografar. Geraldo olhou pra secretária dele e falou: “olha, deixa esse pessoal lá atrás, porque tá dando ibope aqui na frente, deixa eu e o homem só”. Nós demos toda uma volta pela São Bento, todas aquelas ruas, e fomos até um lugar onde ia ter uma inauguração e eles iam anunciar a grana – uns R$300 mil, outros R$200, e eu R$500. Eu sei que a coisa funcionou legal. Quando chegamos, todo mundo queria falar, e daí ele falou: “ninguém vai falar! Quem vai falar é o Zé do Caixão, que é mais velho que todos vocês e vai falar por todos”. Todo mundo ficou com o discursinho na mão. Eu subi, falei em nome de todos, agradeci a grana. Achei que tinha acertado minha vida, estava feliz. Já falei pro Paulo: “vamos começar a fita”. Mas ele falou que não, que R$500 mil não davam e precisávamos ir atrás de mais. Começamos a luta pelo milhão. Eu aproveitei que o Gilberto e o Lula me chamaram pra me dar o prêmio e os diplomas pelo que eu fiz no exterior, aí eu falei: olha, estou precisando de uma grana, você falou que entrava e ia ajudar o cinema nacional... Aí não deu outra, perto do Natal de 2005, o Paulo me telefonou pra irmos para o Rio. E no dia 27, conversamos com o júri, com todo mundo. Fomos celebrar num amarelinho do Rio, ninguém sabia o que ia acontecer. Quando ia chegar o avião, uma das amigas do Paulo ligou: “saiu!”. Aí celebramos. Saiu o milhão, e começamos as modificações no roteiro, que entre 1966 e 2000 foram seis, e de 2000 para 2006 foram nove, quinze modificações totais para encontrar uma solução. A exigência era que eu fosse o Zé do Caixão, e eu não queria fazer porque achava que eu já estava com muita idade. Mas o Paulo falou: só se for com você. Daí bolamos a história de 10 anos no manicômio e 30 na penitenciária.

Z - Do roteiro de Encarnação do Demônio, o que é seu e o que é do Dennison Ramalho? No catálogo do Eugênio Puppo sobre os 50 anos de Carreira, você fala que o Dennison queria que o Zé do Caixão tivesse superpoderes, que voasse, uma coisa mais de história em quadrinhos...

JMM - Não não, eu cortei isso tudo. Falei que o Zé ia continuar sendo um homem inteligente, tem uma força muito grande nos olhos – que olha para a mulher, mas precisa continuar sendo um homem normal, porém persistente. O poder dele é a persistência – ele está atrás da mulher e vai conseguir, tem que ter mulher. Na primeira, a fulana se suicida. Na segunda, morre a mãe e a criança. E nesse filme ele está com 72 anos, e vem mais forte, porque daí ele já pensa: uma só não dá! Ele procura todas as mulheres bonitas e inteligentes, e engravida sete. Aí, quando dá a impressão de que ele morreu, ele enterrado, cai um raio, você vê as sete que estão grávidas olhando o túmulo dele. Se eu não tiver saúde para fazer a quarta, pode ser o filho de Zé do Caixão, porque ele não tem mais jeito de fazer, porque é como Chaplin, é como Chacrinha, pessoas que não tem jeito de substituir. Então só filhos, netos do Zé do Caixão... De repente, o Dennison queria uma coisa mais história em quadrinhos mesmo, começou a fazer um policial de cavalaria, pô, e só tinha uma mulher, que é isso... porra, você vai deixar um homem boiola depois de 72 anos? Eu até acho que ficou faltando mulher no filme... o Zé testa várias mulheres, mata, só sete sobrevivem, as policiais passam por muito sofrimento, porque bateram no Bruno. Lenny Dark enfrenta três mil baratas, a outra tem um rato enfiado pelas entranhas, eu acho que a coisa foi legal e o Dennison me ajudou em idéias doidas. Ele é um cara legal, bom demais, só que ele tem uma coisa: ele procura uma idéia, mas não procura a lógica da idéia. Pode ser bom, mas peraí, porque você vai fazer isso? Porra!, vamos estourar uma mulher: voa pedaço pra lá, pedaço pra cá, mas qual é a razão de estourar a mulher? Daí ele responde: não, mas é cinema Mojica, estoura mesmo, põe mais. Mas tem que explicar, o povo quer explicação. Agora ele vai para o terceiro curta dele, ele teve uma lição de vida e de cinema nessa fita, aprendeu muito, e até o final do ano, começo do ano que vem, ele faz o longa dele e já vai estar com os pés no chão. Mas ele é um discípulo fiel, legal, tem sonhos doentios e doidos, mas é preciso buscar uma lógica pra isso tudo, caso contrário não há razão de ser.

Z - Você teve carta branca em Encarnação do Demônio?

JMM - Quando eu aceitei fazer o Zé, tive em troca carta branca pra fazer o que eu quisesse. Eu falei que não queria computador, nem grua, nem nada. Só tem uma ceninha de grua no fim da fita. Falei que não queria grua, somente efeitos artesanais. Eu li agora uma matéria que dizia que eu trabalhei com artes gráficas no computador, pô, eu acho que aí o mérito é meu, porque o artesanal ficou tão perfeito que as pessoas pensam que eu usei computador.

Z - Como foi feita a cena da chuva de sangue?

JMM - Porra, essa foi do caceta. Foram quase 4 mil litros de sangue, e aí trouxeram caras especiais pra colocar as mangueirinhas e fomos alagando, e pela primeira vez eu deixei a cena pro fim da fita, porque eu sabia que eu ia terminar e pegar uma gripe forte, e não deu outra. A minha capa já pesa uns 10 quilos, quando entrou na água, passou pra 35, 40 quilos. A cena foi muito sufocante, tanto pra mim quanto pra menina. Mas acho que valeu a pena, aquele lago de sangue, e daí ele sai direto no purgatório.

Z - A matéria da SET de agosto fala que a cena do porco iria ser mais forte, mas parece que os produtores não quiseram.

JMM - A menina chorou. Diz ela que foi de emoção, mas a equipe entendeu que foi de medo. A equipe ficou meio contrariada, e daí eu não pude fazer com muitos detalhes, mas assim mesmo a cena está impressionante. Cortei detalhes que eu queria fazer, quando ele corta, aquela faca passando quando ela está deitada nua, e a faca passando por ela por dentro do porco... eu ia fazer muita coisa, ia ficar muito mais forte. Mas teve esse problema da equipe, não a levo a mal, porque ninguém estava acostumado a ver isso, eles achavam que era lenda, que eu não fazia pra valer. Começaram a ver ratos pra valer, aranhas pra valer, baratas pra valer, se apavoraram. Mas hoje dá pra chamar de novo, depois do prêmio que ganhamos em Paulínia e porque ninguém morreu. Bom, morreu o Jece, mas ele já estava doente, e eu prometi que se ele morresse – nós já estávamos esperando - eu não o cortaria da fita. Ficou muito legal, não me complicou a fita.

Z - Nos dois primeiros filmes da trilogia, há a questão de zombar da dualidade entre o sagrado e o profano. Porque isso é menos explorado no novo filme?

JMM - Nossa, mas será que eu não sou profano nessa fita? Eu sou! É que a violência aqui é muito grande, e a gente tinha que mexer com a polícia mesmo. Tem cenas que foram cortadas todas, exatamente porque quisemos que o ritmo ficasse legal, que a fita ficasse redonda, sem barriga. Tirei cenas de netos, filhos, de gente boa, até minhas mesmo pra deixar o filme no ritmo. Tinha cenas profanas, mas eu achei que era melhor ficar mesmo só a mensagem da proteção dele em relação às crianças, que estão se viciando em drogas, e o problema da polícia que ainda é um problema.

Z - Como estão suas expectativas em relação à Veneza?

JMM - Muito grande. Eu estou correndo atrás do meu passaporte, que estava meio ruim, e está duro de ver meus documentos. Mas até a semana que vem vamos dar um jeito e em Veneza vai ser o grande momento, uma cidade romântica, passar Encarnação? Porra, nossa fita vai pra uma cidade romântica, puta que o pariu, pode fazer sucesso.

Z - Tem algum filme de que você se arrepende de ter feito?

JMM - Não, nenhum.

Z - Nem as pornochanchadas, ou Meu Destino em Tuas Mãos?

JMM - Não, nenhum. Os filmes pornográficos foram feitos porque o cara [Mário Lima, parceiro de Mojica de longa data] disse que ia fazer o Encarnação se estourasse. Estourou, aí ele quis fazer outro, mais intelectual, e se fodeu. O que ganhou em uma, perdeu na outra. O cara é meu amigo, tá aí hoje... São 50 anos de amizade.

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