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Dossiê José Mojica Marins

VITROLA NACIONAL

Confundindo claves de sol e chaves de fenda

Por Laís Clemente

Segundo os jornalistas André Barcinski e Ivan Finotti, autores de Maldito, a vida e obra de José Mojica Marins, o Zé do Caixão, o diretor não sabe a diferença entre uma clave de sol e uma chave de fenda. A afirmação é, obviamente, um exagero, mas não seria de se espantar se assim realmente o fosse. Afinal, se Mojica nunca teve aulas técnicas sobre produção de filmes, que é a sua área de atuação, não se pode condenar sua pouca familiaridade com partituras ou tablaturas. Talvez nunca tenha sequer tido muito interesse em aprendê-las. Mas em 1958, a dedicação de Mojica a seus filmes, aliada à falta de patrocínio, fez com que o diretor se aventurasse no mundo de melodias e harmonias.

Sua curta carreira musical começou com a elaboração de letras para seu primeiro longa-metragem finalizado, A Sina do aventureiro. O filme, como o próprio título indica, conta a história do aventureiro Jaime, um perseguido ladrão de bom coração, que rouba somente para sobreviver. Não é necessário, no entanto, consultar sinopse ou mesmo assistir à película para compreender essa narrativa. As dez canções que compõem o filme tratam de guiar o espectador pela história. A partir do momento em que surge na tela o título do filme e os grupos vocais Vagalumes do Luar e Titulares do Ritmo cantam “vou contar o que é a sina do aventureiro”, as letras tratam de descrever tudo o que se vê.

Um bom exemplo – entre muitos, por sinal - acontece ainda no começo do filme, na canção Olha o boiadeiro, quando se ouve: "abre a porteira, deixa o boi passar" e o improvável acontece: os portões da fazenda se abrem e o gado ruma para o pasto.

Nessa primeira tarefa, a de letrar as composições de Enibalú, Mojica não se mostrou muito habilidoso nem mesmo em fazer com que suas letras se encaixassem na música - o que fica claro na canção Alvorecer - e não revela muita imaginação ao elaborar complexas rimas do tipo coração-canção-sertão.

A parte instrumental destas canções constitui quase sempre em uma tentativa de recriar o universo musical do interior brasileiro, seja pela escolha do gênero, seja pela utilização de determinados instrumentos tais como viola e acordeom. Esse efeito regional é quebrado pelos cantores, que as interpretam com seus elaborados arranjos vocais. A busca pelo regional só é totalmente abandonada, para dar lugar à valsa, no momento de melancolia amorosa do filme (Numa promessa de amor).

A falta de recursos fez com que Mojica voltasse a compor, dessa vez para o longa Meu destino em tuas mãos. O musical, estrelado por Franquito, “o garoto da voz de ouro”, conta a história de cinco meninos que abandonam suas casas devido à violência de seus pais. O filme teve como carro chefe o disco homônimo, contendo a trilha musical interpretada pelo próprio menino prodígio de orelhas grandes.

Entre as 10 músicas do disco, três foram escritas pelo diretor em parceria com diferentes compositores. Com Nestor Franco, ele compôs Meu destino de menino, marchinha que fala da persistência dos meninos abandonados frente ao mundo que os desprezava, com direito a estripulias vocais por parte de Franquito.

Com Patrocínia Mataran, ele fez a inocente Ilusão do passado, que fala da pureza do primeiro amor de um modo tão angelical, que chega a estranhar que tenha vindo da mesma mente que criaria Zé do Caixão. O som do órgão utilizado na gravação conferiu a essa valsa o clima de saudosismo expresso na letra, além de ter caído bem no timbre de Franquito.

Já a parceria com Hervé Cordovil, que resultou em outra melancólica e cândida canção, constitui uma agradável surpresa. A música, intitulada Quero estar junto a ti, é o louvor do menino cantor a sua mãe, embalado pelo som de violão e salpicado por um grupo de violinos que dão graça e leveza à canção, além de casarem com a cena, em que o personagem de Franquito sonha com seus falecidos genitores bailando nas nuvens divinas.

Quem já leu o texto publicado aqui mesmo na Zingu!, sabe que Meu destino em tuas mãos foi o fracasso de bilheteria que fez com que Mojica refletisse sobre o caminho pelo qual levaria sua produção. Foi aí que desistiu de fazer filmes guiados pelos gostos e desgostos de um público em específico. Apesar da mudança de atitude, ele não abdicou completamente da composição. Na era pós Zé do Caixão, o diretor assinou mais duas canções: a música tema do filme O Diabo de Vila Velha (a cujo áudio não tive acesso) e a canção inicial de O Estranho Mundo de Zé do Caixão.

Em O Estranho Mundo de Zé do Caixão, o sagrado e o profano se unem para descrever o personagem mais famoso de Mojica. Os Titulares do Ritmo, convidados para fazer a vocalização, revestiram a música - que é a capela - com uma atmosfera de coral de Igreja. A única voz feminina representa a figura conservadora que repreende Zé do Caixão por sua falta de filiação religiosa. Edson Lopes e sua potente voz barítono, por outro lado, louva o poder e a falta de caráter do personagem, além de relatar o surgimento de Zé como em uma espécie de Noite Feliz do demo.

O resultado parece ter sido tão satisfatório, que a canção voltou como trilha para o programa de entrevistas de Zé, que leva o mesmo nome do filme. Foram onze anos - de 58 a 69 - em que Mojica escreveu ocasionalmente, geralmente por motivações cinematográficas (as únicas exceções são duas marchinhas de carnaval Em Cima da Hora e Castelo dos Horrores, que datam de 69). Assim como Cartola ou Lamartine Babo, ele não sabia a diferença entre uma clave de sol e uma chave de fenda. Os dois primeiros souberam suprir a falta de estudos com uma incrível sensibilidade musical. Já Mojica... bem, pode-se dizer que Mojica se viu com chave de fenda em mãos e sem saber como parafusar a estante na parede. Sem muitas opções, quebrou o galho como pôde.

*Contemplem as letras escritas por José Mojica Marins aqui.



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