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Dossiê André Klotzel

Entrevista com André Klotzel
Parte 1: ECA e Boca do Lixo, as primeiras experiências


Entrevista e fotos por Gabriel Carneiro

Zingu! – Como surgiu seu interesse por cinema?

André Klotzel – Foi na adolescência que me interessei por cinema, porque, na verdade, me interessava por fotografia. Quando era pequeno, gostava de tirar foto. Quando fiquei adolescente, comecei a revelar, a ampliar, fiquei vidrado. Achava que ia fazer fotografia de cinema. Eu assistia a filmes, gostava deles, mas quando vi a fotografia dentro do cinema, achei muito bacana. Foi assim que me envolvi e decidi fazer isso da minha vida, trabalhar com cinema.

Z – E você também freqüentava cinema?

AK – Freqüentei quando criança. Meus pais eram muito seletivos, não deixavam ver qualquer coisa. Não vi muita coisa que queria e talvez por isso gostasse tanto. Era meio regulado: o que era bom cinema, o que era bom para as crianças, essa coisa toda. Quando comecei a ter minha independência, assistia a filmes direto. Tinha uns cinemas em São Paulo em que a gente podia entrar em filmes para 18 anos, o Marachá, o Biju, eram as salas que passavam filmes considerados de arte, e que a gente, com 15, 16 anos, conseguia entrar nos de 18. Assistia a vários filmes por semana. Passavam todos os filmes italianos: Fellini, Pasolini, Rosselini, tudo. Os independentes americanos... Foi quando comecei a assistir a algumas coisas brasileiras.

Z – O que você assistia de brasileiro?


AK – Quando foi lançado, lembro de assistido alguns dos filmes dos marginais. O filme do [Antonio] Calmom, O Capitão Bandeira Contra o Dr. Moura. Isso quando eu ainda era adolescente e me interessei por cinema mesmo. Conheci um pouco do resto que estava sendo lançado na época. Eu assistia ao cinema de contracultura, o cinema udigrudi – foi um movimento de cinema contemporâneo à minha época, pós-68, no final da minha adolescência e do colegial.

Z – E o que te fez querer fazer faculdade de cinema?

AK – Eu decidi fazer cinema. A determinada altura, um amigo resolveu fazer um filme em super-8. Eu fotografava bastante. Quando peguei pela primeira vez uma filmadora e fotografei um plano, nesse momento falei: é isso que quero fazer. Só que queria fazer fotografia em cinema. Decidi por isso; tinha 16 anos.

Z – Como era na ECA?

AK – Na época, a ECA, para mim, foi bem interessante, porque peguei a fase final do Paulo Emílio Salles Gomes, que era o cara que fez a cabeça da minha geração e da geração anterior e que morreu logo em seguida, em 1977. Entrei na ECA em 1973 para 74. Assisti, no curso básico, de ouvinte, as matérias do sexto semestre, à noite, e fazia todas as matérias do primeiro ano durante o dia. Via as aulas do Paulo Emílio, que nos fazia ver filmes brasileiros, e aí que eu descobri o cinema tupiniquim e me encantei por ele.

Z – E você já quis logo trabalhar na área?

AK - Era época da Boca do Lixo e fui tentar emprego lá. Tinha 18, 19 anos, estava no primeiro para segundo ano da faculdade. Fui à Boca várias vezes sem conhecer ninguém, na cara de pau, e sempre recebi não. Falei com o Paulo Emílio que estava procurando emprego, estágio, qualquer coisa. Ele disse: ‘Na Boca, não conheço ninguém, mas posso tentar conseguir alguma coisa com o Primo Carbonari.’ (risos) Comecei a estagiar com ele. Nisso, o Alain Fresnot, que era mais velho e estava na turma em que eu era ouvinte, ia fazer uma entrevista com o Aníbal Massaini para um trabalho de escola. Foi a turma dele, e eu fui de penetra. Ao final, o Alain reclamou que o Massaini sempre falava bem dos alunos da ECA, mas nunca dava oportunidade a ninguém. O Aníbal disse que estava fazendo um filme de episódios, e que ia chamar cada um deles para fazer algo num dos episódios. Aí ele chutou lá algum cargo: diretor de artes. (risos) Ele perguntou quem queria, sendo que teria de estagiar o dia inteiro. Como todos estavam em época de prova, durante o dia, nenhuma das seis pessoas levantou a mão, aí eu logo levantei. Ele me colocou como assistente de produção do longa, chamado Cada um Dá o que Tem, cujo episódio O Despejo, foi o primeiro filme dirigido pelo Adriano Stuart. Entrei como assistente de produção e deu super certo, e logo me chamaram para o próximo, um filme do Zé do Caixão, Exorcismo Negro. Aí foram me chamando para outras coisas, mas queria ser assistente de câmera. Porque eu queria fotografia.

Z – E conseguiu?

AK – Até que consegui fazer uma segunda assistência de câmera, no episódio, nesse mesmo filme de episódios, dirigido pelo Silvio de Abreu. Nossa, me judiavam muito. Era um menino de 19 anos, da ECA. O diretor de fotografia, da Boca, achava que eu era um filhinho de papai, e judiava de mim, fazia de mim de gato e sapato. (risos) Por isso virei depois amigo dele, porque depois que passei pelas provas todas, fui admitido. Me chamavam de ‘inútil’. (risos) Coisa da Boca, uma espécie de iniciação que os caras faziam para meninos da ECA. Eu era um dos únicos da USP que estava trabalhando na Boca. Depois, o Adriano Stuart foi dirigir um filme para o Galante, Kung Fu Contra as Bonecas. Fui trabalhar com ele lá, mas queria ser assistente de direção – o que ocorreu -, mas foi um caos. Antes disso, tinha sido diretor de produção de um episódio, Três Assobios, também do Adriano, do longa Sabendo Usar Não vai Faltar. Fiz vários filmes na Boca, e fiquei mais qualificado. Fui assistente de direção, de produção, de câmera, fui still de um filme do J. Marreco, A Carne, e acompanhava as montagens dos filmes. Ia ao Soberano. Era conhecido na Boca.

Z – Como era trabalhar lá na Boca?

AK – Era uma experiência muito boa. Acho que me enriqueceu demais, ao ter um contraponto muito grande com aquela coisa da ECA, meio cabeça, meio teórica, uma técnica meio despregada da prática. Quem tinha maior ligação prática com a área era o Roberto Santos, que dava aula de direção, e o Paulo Emílio, que sem dúvida fazia toda diferença, por ser ligado ao cinema brasileiro como um todo, não especificamente à produção. Ficávamos dias discutindo um filme. O Paulo Emílio foi demitido, e iniciamos um movimento contra essa demissão. Fizemos um curta sobre ele dentro da ECA. Feito em grupo, chamava-se Tem Coca-Cola no Vatapá, dirigido e produzido pelo Pedro Farkas, que tinha o equipamento. Fiz de tudo um pouco, roteiro, câmera, produção. Foi meio coletivo. A Boca servia como um contraponto a isso, porque lá era muito profissional. Apesar de toda precariedade que existia nos filmes, mas existia um profissionalismo muito bem determinado, existiam regras que funcionavam no cinema industrial ou artesanal, talvez, mas que eram muito determinadas. Lá, soube o que era ser profissional, competente, capaz, que foi um aprendizado fundamental para mim com aquela idade. E me tirou um pouco da arrogância, de aluno metido à besta, que tinha na ECA.

Z – Teve experiência profissional na ECA?

AK – Me lembro que o professor de produção da ECA, o Jean, nunca tinha efetivamente produzido um longa. Chamaram-no para produzir um e ele me chamou. Nessa altura, já tinha feito mais longas que ele (risos) Teve também dois longas que o Roberto Santos fez meio que na ECA, em episódios. Lembro que o Aloysio Raulino, o Djalma [Limongi Batista] dirigiram alguma coisa. Teve um outro, As Três Mortes de Solano, que ele dirigiu com alunos. Foi mais ou menos na minha época. Eu comecei a trabalhar nesses filmes até que o Plácido Campos foi dirigir o primeiro filme dele, um infantil chamado Curumim, e tinha uns amigos meus que trabalhavam na produção, o Rogério Correa e a Eliane Bandeira. Era em Itu. No primeiro dia da produção do filme, o Rudá de Andrade esqueceu uma carteira cheia de documentos no estacionamento, e tinha todo mundo ido para Itu. Me ligaram, explicaram a situação e pediram para levar a carteira. Chegando lá, perguntaram se podia ficar lá, que eles precisavam de mais uma pessoa, de um produtor. Fui ficando, e virei braço-direito do diretor de produção, o Guilherme Lisboa, e fiquei na finalização do filme. Curumim foi produzido pela Nau Filmes, que era do Rudá, do Plácido e do Guilherme.

Z – Os curtas que você fez na época foram trabalhos de faculdade, ou foram feitos independentemente?

AK – Tinha coisa que até era trabalho, mas eu considerava fazer o meu filme. Meu primeiro curta, foi até engraçado, foi para um trabalho extracurricular. Foi em 1975, não estava em cinema ainda, estava no curso básico – tinha um ano e meio básico na ECA -, e fazia de ouvinte a disciplina. Havia ganho um dinheirinho em produção, e resolvi fazer um curta. Comprei 3 latas de negativo, e fiz uma proposta de trabalho extracurricular na ECA. Eu entraria com o negativo, e ela com equipamento e revelação. Eles nem se deram conta de que eu não era aluno. Aprovaram o projeto, comprei o negativo e fiz meu primeiro curta, chamado Eva. Em 1975, quando não era nem aluno de cinema. Era uma adaptação de um conto do Mário de Andrade, do livro Contos Novos, chamado Eva mesmo. Foi bem engraçado, porque misturei a experiência da Boca com a da ECA. Depois fiz outro curta na ECA. Esse foi mais dentro da coisa curricular, que foi Os Deuses da Era Moderna. O João Batista de Andrade era professor lá, e propôs três documentários - e eu iria dirigir um deles. Encontrei um jeito de fazer documentário, que não era bem um documentário. O filme é sobre um cara que ficava escrevendo coisas no Centro, redações, cartas, trabalhos universitários. Falei com ele, e propus que ele escrevesse um roteiro sobre si mesmo, e eu filmaria esse roteiro. Ele topou. O documentário era isso, uma ficção escrita pelo próprio cara. Depois o pus para assistir o material editado no estúdio da ECA e gravei os comentários dele sobre o filme, e montei com os comentários sobre o filme. Gosto muito do filme; era muito precário, mas era bacana. Depois fui fazer um em 35 mm, mas já estava saindo da ECA, trabalhando com o Nelson Pereira, mas não fiz. Era muito demorado, enrolado, não tinha dinheiro. Abri mão desse terceiro filme da ECA. Logo em seguida fiz outro curta, que ganhou o prêmio Estímulo, o Gaviões. Fiz sem a ECA, depois de filmar com o Nelson Pereira.

Z – Você disse que passou a assistir o cinema brasileiro na ECA. O que exatamente?

AK – Tudo. O Paulo Emílio fazia a gente assistir a tudo. Pornochanchada... Existia o Filme da Semana – as aulas dele eram na sexta-feira. Tinha o relator do filme, o crítico... Ficávamos a manhã inteira discutindo o filme da semana, e geralmente o relator assistia ao filme duas ou três vezes, para fazer algo completo. E quase sempre era pornochanchada. O Paulo Emílio achava fundamental conhecermos isso; ele levava o pessoal da Boca para discutir com o pessoal da ECA. Hoje em dia, na ECA, acho impressionante. Eles são fechados, não tem ninguém que tenha essa abertura. Fui aluno da ECA, e fui chamado apenas duas vezes. Estou absolutamente disponível para ir, e nada. Parece um receio que eu entre naquele feudo, invada e tome conta. O Paulo Emílio não tinha esse problema, também não tinha o ranço acadêmico. Era completamente aberto ao mundo do cinema. Para nós, isso representou uma descoberta. Tínhamos muito uma cabeça para o cinema italiano, cinema de arte, e o Paulo Emílio mostrou o cinema sujo, da Boca, o que havia por trás daquilo, como pensavam. Ele entrava na antropologia da estética, daquele raciocínio moral, do raciocínio artístico. ‘Olha o que eles acham dos ricos, como são retratados. E os homossexuais. Tem preconceitos?’ Começamos a olhar diferentemente, para algo considerado cinematograficamente menor. O Brasil estava naqueles filmes. Isso foi incrível.

Z – Você gostava dessas produções?

AK – Gostava, nesse sentido. Mas aí o gostar mudou. Gostar é quando você senta, assiste e se envolve, você entra no filme. Outra coisa é você se envolver com o que aquilo representa, com o que ele tem de interessante. Foi o início de outro envolvimento, um envolvimento muito mais cinematográfico, de quem atua em cinema, do que o do espectador.

Z – Como conseguiu trabalho com o Nelson Pereira dos Santos?

AK - O Nelson Pereira dos Santos ia dirigir um filme chamado Castro Alves em São Paulo, e por meio da Nau Filmes, me colocaram para fazer a pesquisa desse longa. Havia uma técnica de imagem em que você desenhava e pintava num vidro fundo o cenário, para fazer a cidade de São Paulo. Chico Botelho, que era fotógrafo, depois foram filmar em Los Angeles, fizeram um pequeno estudo com técnicas de filmagem, e eu produzi todo esse negócio. Nisso, me aproximei no Nelson, até que surgiu a idéia de fazer Na Estrada da Vida. No meio do processo do Castro Alves em São Paulo, surgiu essa idéia, com o Milionário e Zé Rico, e fomos para o interior de São Paulo gravar, em quatro pessoas - o Nelson, o Guilherme Lisboa, eu e o Reinaldo, que estava ligado à dupla caipira -, e ficamos uns dias escrevendo o roteiro. Comecei a ver como era o processo de confecção de um roteiro, a participar dele. Com isso, me aproximei muito do Nelson. O assistente de direção era militar e teve que sair do filme, e assumi a posição. Saí do meio da filmagem para ir na minha colação de grau na ECA. Eu, o Zé Bob [José Roberto Eliezer], que era assistente de câmera, e Antonio Carlos D’Avila, que era o fotógrafo de cena - e já faleceu -, saímos de lá e fomos colar grau. Terminei a faculdade fazendo a assistência de direção de um filme do Nelson Pereira dos Santos.

Z – Você tentou ir fazer longas na Boca?

AK – Não, não. Não sabia o que dirigir - até queria, mas não sabia. O Nelson me incentivava muito, mas dirigir por dirigir não era minha intenção. Chegar na Boca e dirigir uma pornochanchada? Não tinha nem perfil para isso, não era o caso. Por outro lado, não queria fazer um cinema intelectualizado, um cinema que se mostrava inviável – filme muito cabeça não tinha público. Como, por exemplo, o das pessoas que tinham participado do Cinema Novo nos anos 60. Eram filmes muito falados, cabeças. Ficavam muito pouco tempo em cartaz. São os que a gente menos lembra, que não marcam época, não marcam nada. A preocupação era conseguir um projeto que fosse viável, e que demonstrasse alguma possibilidade de mercado. Afinal, porque a Embrafilme me daria dinheiro? Não ia fazer uma coisa com que eu não concordasse. Eu, cineasta que era, formado pela ECA, que assistia filme italiano e arte, não faria algo que me violentasse, que contrariasse minhas convicções.

Z – Você queria fazer cinema popular?

AK – Não, eu só comecei a pensar nesse assunto quando estava na faculdade, por conta do Paulo Emílio. Comecei a enxergar que o cinema não conseguia alcançar a amplitude que tinha a música. O Cinema Novo não tinha o mesmo apelo da MPB. A amplitude se dava por ser popular, não por ter muito público. Não é quantidade, é questão de presença. A música é muito presente, o cinema não. Era considerado um cinema ruim tecnicamente, primitivo. Hoje em dia, o cinema é uma coisa sofisticada, as escolas são concorridas, os ricos vão fazer cinema, os publicitários também. Na época, as pessoas achavam cinema brasileiro uma coisa vagabunda, de quinta categoria. Claro, existia o Cinema Novo, mas a população, a classe média em geral tinha essa noção do cinema, e via o cinema com maus olhos. As pessoas têm uma visão muito preconceituosa. Essa coisa do cinema popular tem a ver com o preconceito, é mais nesse sentido. Não é bilheteria. A postura era o que me preocupava mais que qualquer outra coisa - viabilizar o cinema popular no Brasil. Fazer algo importante, como a Música Popular Brasileira. Isso que o Paulo Emílio me ensinou. Foi um dos meus mestres. Tive dois mestres, o Paulo Emílio e o Nelson Pereira.
Parte 2



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