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Dossiê Guilherme de Almeida Prado

Entrevista com Guilherme de Almeida Prado
Parte 2: 1981-1984: o cinéfilo torna-se cineasta – dirigindo na Boca
Por Gabriel Carneiro e Marcelo Carrard
Fotos de Gabriel Carneiro

Legenda: GAP - Guilherme de Almeida Prado; Z M - Zingu!, Marcelo Carrard; Z G - Zingu!, Gabriel Carneiro.

Z G – Como você acabou caindo na Boca?

GAP – É uma história muito comprida...

Z M – Era o único lugar em que se poderia exercitar a profissão.

GAP – Havia outros. Eu tentei antes em filmes do Roberto Santos. Mas como falo: a única porta que abriu foi lá na Boca. Duas pessoas foram importantes. Uma foi o Odon Cardoso, pessoa que eu já conhecia mesmo antes da escola de engenharia, e depois ele foi meu colega durante três anos. Ele largou no meio e foi trabalhar numa empresa de publicidade, a Spectrus. Quando eu acabei a engenharia, eu estava um pouco desesperado, porque teria que arranjar um emprego de engenheiro, e era o momento certo de arrumar um emprego de engenheiro. Eu tinha escrito alguns roteiros, e eu os mostrei ao Odon Cardoso, que estava trabalhando nessa empresa de publicidade, e que queria fazer longas. Eles não gostaram muito do roteiro, mas me convidaram para escrever outros. Na realidade, para escrever um roteiro, que seria dirigido pelo Roberto Santos – eu nem sei se o Roberto Santos ficou algum dia sabendo desse projeto. (risos) Mas me convidaram para escrever esse roteiro. O dono dessa produtora era de Ibitinga, no interior, e ele queria fazer um documentário sobre a cidade. O grupo era todo muito politizado, tinha saído da ECA - obviamente antes do período que eu fui para a ECA - extremamente politizado. Ninguém queria fazer a droga do documentário de Ibitinga, e eu cheguei lá e falei: “está bem, eu faço”. Nunca tinha ido para Ibitinga, nem sabia onde ficava Ibitinga. Fui para Ibitinga, fiz. Nessa altura, o Odon tinha desistido de ser fotógrafo, e ia ser produtor. Ele, então, chamou o Cláudio Portioli para fotografar. Naquele momento ele estava meio parado. Ele geralmente fazia os filmes do Fauzi Mansur, e acho que ele tinha brigado com Fauzi, algo tinha ocorrido. Ele foi lá fazer a fotografia do tal curta de Ibitinga. Durante as filmagens, o Portioli falava muito que eu não era documentarista - e não sou mesmo! Eu já fiz documentário, mas não gosto. Ele falava: “você fica enquadrando, você dirige, você trata os personagens como se fossem atores. Você devia fazer ficção!” (risos) “É o que estou querendo”, eu dizia. Ele respondeu: “Vou te arrumar um filme lá na Boca para você fazer”. Honestamente, não sei se ele falou com muita sinceridade isso. Eu acabei brigando com o produtor na hora de montar o curta-metragem, o Odon também brigou, e nós dois fomos procurar o Portioli. “Portioli, nós dois estamos desempregados; você disse que ia arranjar trabalho para gente!” Foi questão de sorte. Nesse momento, o Portioli ia começar a fazer um filme, produzido pelo David Cardoso e dirigido pelo Ody Fraga. Ele sempre trabalhava com outro diretor, e não sei por que, ele não estava com esse assistente de direção. Cláudio também estava precisando de um assistente de câmera, então eu e o Odon fomos trabalhar nesse filme da Boca. Minha parceria com o Ody começou aí, assim como com o Portioli – dos oito filmes em que fui assistente de direção na Boca, seis ou sete ele fotografou. Eu era engenheiro, que já tinha estudado cinema, além de tudo. Era relativamente fácil trabalhar na Boca... não tinha muito outros assistentes de direção com a minha capacidade. Em um ano e meio eu fiz oito filmes.

Z M – E esse primeiro filme com o Ody, qual é?

GAP – Se chamava E Agora, José?

Z G – A Tortura do Sexo.

GAP – Eu que inventei esse título de brincadeira e o David Cardoso gostou (risos). Todos os filmes dele tinham sexo no título, e esse era um filme sobre tortura, então eu brinquei: “tortura do sexo”. O Ody desde o começo insistia que não podia mudar o nome. Eu achei que ia trocar, que não ia se chamar E Agora, José?. Disso, ele não abria mão, tanto que acabou ficando com os dois nomes. O David obviamente queria eliminar E Agora, José? totalmente, mas o Ody não abria mão do nome. Foi bacana, e acabei fazendo uma série de filmes com o Ody e com outros diretores da Boca.

Z G – Com David Cardoso...

GAP – Trabalhei também. Acho que três ou quatro produções que fiz eram do Cardoso. Então fiz um curso rapidíssimo, intensivo, na Boca.

Z M – Como era o David Cardoso produtor? Ele ficava muito em cima dos diretores?

GAP – Não, não. Ele não ficava. Quando fizemos E Agora, José?, ele quase não ia ao set. Quando fizemos, ficávamos a meio quarteirão do escritório dele. Quase tudo foi filmado numa casa, que depois virou escritório dele, e que estava a meio quarteirão do escritório antigo. Não lembro de ele ter ido na filmagem, ou de ter enchido a paciência do Ody. Ele interferia muito pouco nos filmes que produzia. Como diretor, ele era extremamente capaz. Achavam que não, que não era diretor, que ele era ator. Ele era muito competente como diretor também. Cheguei a fazer alguns episódios com ele como diretor e o achei muito competente. Como produtor, tudo feito muito amadoristicamente naquela época. Não me lembro de ele interferir em algo, nem nos filmes do Ody, nem nos filmes do John Doo. Eu me lembro de um filme com o John Doo, mas isso é uma história comprida.

Z M – Não sei se é exatamente a próxima pergunta. Tem um filme que passa com certa freqüência no Canal Brasil, e o público gosta. Lembro que quando eu vi, impactou-me muito. Pornô!, de 1981.

GAP – Esse que tem a história do gafanhoto?

Z M - Esse mesmo.

GAP – A história do gafanhoto é uma longa história.

Z M – Conte-me um pouco dos bastidores da história do Gafanhoto, de John Doo.

GAP – Eu era assistente de direção, então eu sei bem dos bastidores. Esse filme era um roteiro legal do Ody. Teve problemas porque teve de trocar a atriz na véspera de começar a filmar. A atriz que ia fazer era completamente louca. Era tudo filmado numa casa, lá na Zona Norte, casa de uma baronesa, uma mulata linda, casada com um barão alemão. Era uma mulata lindíssima, alta, manequim. Acho que ela já tinha brigado com o tal barão, e ficou com a casa. A casa dela era sua renda. Já estava meio decadente. Esse foi o caso que o David de certa forma interferiu, porque tinha seis dias para ser filmado, e passamos seis dias filmando de uma forma muito complicada, pois o John Doo se perdia. O filme era muito complicado, porque, o tempo inteiro, uma mulher fica num quarto e vê pelo espelho o que se reflete em outra sala. Ela só vê o espelho que está no quarto dela e o espelho reflete o que está na outra sala. Evidentemente, não havia efeitos especiais. Os efeitos especiais era o fato de mudarmos o espelho e os outros objetos para outro lugar, para refletir o que a mulher estava vendo. Como esses espelhos tinham de ser quebrados no fim, o David comprou espelhos da pior qualidade, eram meio ondulados, e davam uma dor de cabeça terrível, só de ficar olhando. O John Doo se perdia muito com a questão da continuidade, do eixo. Conseqüência: muita coisa foi filmada duas vezes. Quando se passaram seis ou sete dias, o telefone tocou na casa e era o David. Ele queria falar comigo, não quis nem falar com o John Doo. Eu atendi, e ele falou: “estou ligando para dizer que as filmagens acabaram. Eu assisti o copião e já tem filmagem suficiente para montar, e as filmagens acabaram.”. E eu: “não, nós estamos mais ou menos na metade da história, não filmamos tudo” (risos). Ele foi incisivo: “Eu assisti e estou ligando para comunicar que as filmagens acabaram.” Fui para falar para a equipe: “O David ligou para informar que as filmagens acabaram.” Nós resolvemos que íamos seguir, pois ainda tinha negativo, havíamos economizado um pouco. Sentamos com o John Doo e falamos: “o eixo, o Guilherme decide”. Toda hora ele fazia num eixo, e eu tinha que falar “mas John...” “ah, é, é.” Tínhamos que filmar de novo a mesma cena. Tínhamos que levar o ambiente de um lugar para o outro – e a sorte era que na casa todas as paredes tinham a mesma cor -, sem ligar para a cor da parede, e, felizmente, a baronesa não ligava de fincar pregos na parede, pois já estava meio decadente. Era só questão de grudar os objetos no lugar. Porém, era uma chatice, porque grudava tudo e o John falava: (imitando a voz de John) “acho que está faltando um quadrinho ali”. Lá ia eu correr para ver se o quadrinho estava lá ou não - e não estava. Até que comecei a ficar esperto, e quando ia mudar, eu olhava e decorava tudo. O John então falava: (novamente imitando a voz) “acho que está faltando um quadro ali”. “Não está faltando”, falava eu. “Acho que está faltando um quadro ali”, ele replicava. “Não está faltando!”. Ele ia então ver se tinha o quadro (risos). Nós perdíamos muito tempo com essa discussão. Concluímos que eu cuidava do eixo e da continuidade, e ele dirigia os atores e fazia a fotografia, e ninguém podia dizer nada sobre a área do outro, se a continuidade era ou não era. Rodamos quarenta horas e rodamos o filme inteirinho, por nossa conta. O elenco era minúsculo, eram três atores - o casal, a empregada... e o gafanhoto. O gafanhoto no finalzinho, coitadinho... Eu era responsável pelo pobre do gafanhoto, e era um gafanhoto só. Eu que arrumei o gafanhoto...

Z M – Um gafanhoto só?!

GAP – Era um gafanhoto só. No finalzinho esse gafanhoto já estava que não conseguia mais... Eu tentava dar alguma coisa para a droga do gafanhoto comer, e o gafanhoto não comia. (risos) Nessa história, o gafanhoto estava desse jeito, e as pessoas adoraram o filme. Aí você pensa em como foi feito, e meu deus do céu... (risos)

Z M – A filmagem da cena específica do gafanhoto em si, para atriz, foi muito complicado?

GAP – Não, não. Para a outra atriz, foi. Quem ia fazer o papel era a Nicole Puzzi. No dia em que íamos começar a filmar, ela achou (risos) que íamos usar um gafanhoto mecânico. Um gafanhoto mecânico! Ela falou que não ia fazer o filme de jeito nenhum com um gafanhoto de verdade, que ela tinha pavor de gafanhoto. Nós chamado a Zélia Diniz, que não tinha pavor nenhum e não ligou a mínima para o inseto.

Z M – Fez a cena tranquilamente?

GAP – Tranquilamente, o problema maior era a droga do gafanhoto. (risos)

Z M – Lembro que no cinema foi uma catarse muito grande na platéia. Era algo muito novo naquela época. Foi comparado com o cinema europeu daquele tempo.

GAP – Isso eu não sei, eu sei que eu que tinha que fazer a droga do gafanhoto andar (risos) Eu era bom de bicho. Tanto que eu consegui fazer um cachorro chupar a buceta, que depois a censura cortou. (risos) Foi antes do filme do gafanhoto, eu já tinha feito isso no filme do José Adalto, Império das Taras. Foi uma perfeição o cachorro.

Z M – Nunca foi colocada, numa versão sem cortes?

GAP – Naquela época ninguém guardava o negativo cortado. Não servia para nada. Eu até usei algumas sobras de negativo em As Taras de Todos Nós, mas não esse pedaço. Não estava na sobra, estava no filme mesmo, antes de cortarem. Então acredito que não tenha mais o negativo. Não sei. Sei que consegui fazer a cena em que o cachorro chupava a buceta da mulher, e ele levantava a cabeça e fazia (nesse momento, ele demonstra o gesto: uma lambida de lábios exagerada). (risos) Eu tinha feito um truque.

Z M – Não sei se é essa cena, mas no filme do Mojica, 24 Horas de Sexo Explícito, o cachorro faz o mesmo.

GAP – O do Mojica é bem depois, foi lançado muito depois. Já tinha mandato de segurança, era outra coisa. Já na década de 80.

Z G – As Meninas de Madame Laura foi inspirado ou teve algo a ver com La Licorne, da verdadeira dona Laura?

GAP – Eu acho que sim. Pelo menos na época, eu achava que tinha a ver. Dizem até que o filme teve problema na censura por causa desse título. Na época, era meio clima de madame Laura, de La Licorne. Não sei se era uma jogada a mais, comercial, porque o filme em si não tinha nada a ver com a personagem, mas a jogada era. O título As Meninas de Madame Laura era uma brincadeira com La Licorne, com certeza. Pelo menos eu sempre achei que era.


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