html> Revista Zingu! - arquivo. Novo endereço: www.revistazingu.net
Dossiê Guilherme de Almeida Prado

Entrevista com Guilherme de Almeida Prado
Parte 3 - 1987: o ano da consagração
Por Gabriel Carneiro e Marcelo Carrard
Fotos de Gabriel Carneiro

Legenda: GAP - Guilherme de Almeida Prado; Z M - Zingu!, Marcelo Carrard; Z G - Zingu!, Gabriel Carneiro.

Z M – Falando um pouco sobre A Dama do Cine Shanghai, ele já foi feito no sistema da Embrafilme. Como foi essa mudança, já que você veio da Boca, que era todo um universo de relações?

GAP – Por incrível que pareça, o roteiro que eu escrevi em A Dama do Cine Shanghai, nunca imaginei que fosse ser filmado. Pelo roteiro, pelo enredo, pelo enfoque, todo mundo achou que A Flor do Desejo ia ser um estouro de bilheteria. Todo mundo, desde o começo, já achava que o filme era super comercial. Talvez fosse uns dois ou três anos antes. O problema é que ele ficou pronto quando já havia aparecido o filme de sexo explícito e o filme não tinha nada disso. Para distribuição, tinha a Embrafilme, e a Boca, que fazia os filmes de sexo explícito – chegaram a propor que eu acrescentasse cenas de sexo para poder distribuir. Eu fiquei extremamente deprimido quando foi um total fracasso de bilheteria. A minha idéia era que o filme fosse um sucesso para eu fazer A Hora Mágica. Eu escrevi o roteiro de A Dama do Cine Shanghai, para desligar. As coisas que faço às vezes para desligar é ir ao cinema ou escrever. Eu escrevi o roteiro de brincadeira mesmo. E aconteceu o seguinte: a Embrafilme se arrependeu de não ter entrado em A Flor do Desejo. O diretor da Embrafilme, que tinha dito que eu não tinha competência para dirigir longas, veio me procurar e disse que outro projeto meu seria muito bem recebido pela Embrafilme. Naquele momento, eu queria fazer um projeto nunca realizado que se chamava O Caçador de Crepúsculos [o título é mencionado como dirigido pelo personagem de José Lewgoy, em A Dama do Cine Shanghai]. Eu não queria escrever o roteiro, eu queria contratar o Walter George Durst, um roteirista legal, que eu conhecia. Precisava de uma grana para contratá-lo. Eu resolvi entrar com o roteiro de A Dama do Cine Shanghai, porque tinha grande certeza de que eles iam ler e achar completamente absurdo, totalmente inviável – não era o tipo de filme que a Embrafilme produzia naquela época -, e eles iam dizer para mim que aquele filme eles não iam fazer. Eu ia falar que tudo bem, “me arranjem um dinheiro para eu contratar um roteirista para escrever um outro roteiro que vocês gostem”. Era para fazer O Caçador de Crepúsculos. Só que logo que eu inscrevi o roteiro, mudou o diretor geral. O tal que tinha dito para eu procurá-lo, saiu, e entrou outro. Esse outro resolveu colocar – e no fim foi uma sorte para mim – uma junta de pareceristas anônimos para avaliar os roteiros, ao invés da própria Embrafilme. A Embrafilme enviava o roteiro, e eles davam um parecer sobre ele. Era uma questão de sorte. Depois me mandaram o parecer. O escrito do cara era sensacional, não só ele dizia que o roteiro era excelente e dava nota dez – tinha sido o único que tinha ganho nota dez -, como ele mastigava o roteiro. Quem lia o parecer dele e depois lia o roteiro, entendia a história melhor. Era como uma introdução. Eu não seria capaz de escrever uma introdução daquela, tão bem escrita sobre o meu próprio roteiro. Era perfeita. Eles selecionaram o filme. Tinha ganho nota dez. Eu reescrevi o roteiro, pois havia coisas que seria impossível de ser filmado. Foi assim que eu entrei para a Embrafilme.

Z G – A Embrafilme era muito diferente da Boca?

GAP – Era diferente porque a Embrafilme era uma empresa. Eles te davam o dinheiro para fazer o filme. Na prática, eles te davam 50 ou 60% para fazer o filme. Quando você ia fazer o orçamento, na prática, você fazia 50 ou 60% do dinheiro que você precisava para fazer. Eu tive algumas dificuldades com Embrafilme, mas foram poucas. A primeira foi com a Maitê Proença. Eles achavam que eu não devia fazer o filme com ela. Fizeram eu convidar outras atrizes antes. Algumas não aceitaram, outras eu não aceitei, pois achava que não era o que eu queria. Até que os convenci de que o Fagundes ia segurar o filme, e que eu dava um jeito com a Maitê.

Z G – Porque eles tinham essa birra com a Maitê?

GAP – Eles tinham preconceito bobo. Foi a única coisa. Eles nunca chegaram para mim e disseram que não me dariam o dinheiro se eu fizesse com a Maitê. Era meio sugestão: “você tem certeza que vai fazer com a Maitê?” Falei: “tenho”, e pronto. (risos) Cheguei a convidar a Sônia Braga, que era quem eles queriam. E tiveram algumas que eu disse ‘não’.

Z M – Sua idéia foi sempre a Maitê?

GAP – Não posso garantir. Não me lembro com certeza absoluta. Na realidade, eu fiz esse filme com a Embrafilme e com a Assunção Hernandes, que era a produtora. A Assunção já tinha feito com a Embrafilme. Eles nunca chegaram e falaram “eu quero tal atriz”. Não interferiram nada. Quando apresentamos o projeto ele tinha 100 minutos, e acabou ficando com 115. Já era outra diretoria. O grande problema da empresa, que acabou fechando-a, era que trocava de seis em seis meses a diretoria. Era muito o rotativo. Quando o filme ficou pronto, já não era a diretoria que o havia aprovado. Essa diretoria mandou uma carta dizendo que o filme tinha que ter 100 minutos. A Assunção me colocou na moviola. Esprememos, esprememos, e conseguimos cortar dois minutos. O filme ficou ruim com dois minutos a menos. Eu e o montador grudamos tudo de volta no copião. Nós marcamos uma projeção para a Embrafilme assistir, e deveriam dizer que eu precisava cortar um rolo e meio de filme. Ia ser o rolo do Lewgoy ou o rolo do Falabella. Eles teriam de dizer quem seria cortado, em bloco. Eles assistiram ao filme e disseram que não tinha que cortar nada. Foram as duas únicas implicações. Primeiro com a Maitê, e porque eu havia estourado o orçamento, mesmo que meu orçamento fosse muito abaixo dos orçamentos cariocas – naquela época eles tinham um teto paulista e um carioca. Por incrível que pareça esse diretor da Embrafime era paulista. Eu cheguei para ele e falei: “escuta...” (risos). Os filmes paulistas podiam custar no máximo 400 mil dólares, e os filmes cariocas no máximo 600. O meu filme acabou custando 450 mil dólares. Marcaram a reunião para me dar uma bronca - me deram a bronca, mas me deram 50 mil dólares.

Z G – A Embrafilme era o único meio para se fazer filme na época?

GAP – Nesse momento já era impossível fazer de outro jeito. Só a Embrafilme mesmo. Não tinha outra saída.

Z G – Ninguém patrocinava mais?

GAP – Não, não. Só a Embrafilme. A Boca tinha ficado só com o sexo explícito nesse momento.

Z G – Por que você acha que sobreviveu à Boca do Lixo, levando-se em conta que muitos pararam de fazer com a crise do sexo explícito? Teve você, o Carlão, o Candeias chegou a fazer outro filme depois, o Mojica agora...

GAP – É, poucos continuaram. O José Antônio Garcia fez algumas coisas. Não lembro de muitos. Muitos pararam. Acho que é porque eles já estavam velhos demais para conseguir dar o pulo para a Embrafilme. Num certo momento, ou era a Embrafilme, ou não havia possibilidades. Acho que foi isso. A maioria é um pouco mais velha do que eu e pararam. Eu sei que o Fauzi está tentando voltar...

Z G – Já está filmando.

GAP – O Fauzi já tinha até feito filme com a Embrafilme, mas ela acabou muito rapidamente. O Khouri também.

Z G – Mas o Khouri vem de antes.

GAP – Ele fez filmes com a Embrafilme, e depois dela. Teve uma geração um pouco mais velha que não estava preparada para dar esse salto. E a Embrafilme realmente tinha muito preconceito. Eles não consideravam As Taras de Todos Nós como filme, tanto que na época de A Flor do Desejo me sugeriram que eu fizesse curtas-metragens. O pessoal que foi para o cinema de sexo explícito, a Embrafilme não pegava de jeito nenhum. Nem consideravam.

Z G – Voltando a A Dama de Cine Shanghai, você assina como um filme B de Guilherme de Almeida Prado. Por que um filme B? Mesmo sendo uma produção de baixo orçamento, o filme noir que vejo refletido são os filmes com o Borgart, do John Huston...

GAP – Mas eram filmes super baratinhos. Se você prestar atenção, o roteiro todo foi feito como filme B. Não tem ação, o Fagundes chega sempre quando já aconteceu. É feito quase todo de diálogo. A história se desenrola através do diálogo.Tanto que o roteiro de A Dama do Cine Shanghai se chamava B. O nome, a idéia do título A Dama do Cine Shanghai veio com a sinopse. Precisava de um nome para o cinema. Colocamos Cine Shanghai, aí pensamos em A Dama do Cine Shanghai.

Z G – Você não o vê como um processo de releitura do filme do Orson Welles, A Dama de Shanghai?

GAP – Não foi escrito intencionalmente. Quando nós filmamos já houve algumas coisas, coloquei uma cena do filme, a Maitê usa uma roupa que é o mesmo desenho. Foi uma questão posterior, já tínhamos o título. Não havia a idéia de fazer um filme em cima de A Dama de Shanghai. Naquela época não havia VHS, eu fui rever o filme porque conseguimos a cópia de um professor da FAAP. Fomos ver o filme para pegar alguma coisa. Era um filme que eu tinha visto uma vez na televisão. Não era algo que estava fresco na memória.

Z G – Você o viu durante sua formação de cinéfilo? Faz parte do inconsciente?

GAP – Muito. Muitas pessoas depois que viram o filme vieram me falar que tinham visto citações...

Z G - Eu vi muitas.

GAP – Citações de filmes que eu nunca vi, até porque não tinha nem como. Ia ver onde?

Z G – Mas havia coisas que você colocou no filme com o intuito de citação ou homenagem?

GAP – Nunca, nunca. Esse negócio que as pessoas chamam citação, eu acho que é plágio. Porque eu não vou usar uma idéia boa, que eu acho que encaixa e conta bem a minha história? É como escrever um livro e não usar uma palavra que você achou interessante e vai servir para sua história. Eu não tenho essa coisa de homenagem. Muita coisa, eu escrevi depois. Muita coisa eu vou ver depois e: “olha, esse plano é de tal filme.” É algo natural. Eu não estou citando, estou copiando.

Z G – Há em A Dama do Cine Shanghai, na cena em que vão encontrar o José Lewgoy, que ocorre num casamento. Ela me lembra muito a cena inicial de O Poderoso Chefão.

GAP – Concordo, totalmente. Não falei: “vou escrever uma cena com moldes em O Poderoso Chefão”. Porque aquela cena foi escrita? Eu achava o filme todo muito escuro, tudo era muito noturno. Antes do final, eu precisava de uma cena clara. Por isso a idéia de fazer uma cena de casamento, que usa muito o branco. Coloquei uma cena clara, para poder chegar no último ato do filme, em que se passa a noite, e é bem escura mesmo. Foi isso. Eu concordo que tenha a ver. Não vou nem dizer que o diretor de arte não tenha chupado aqui e ali alguma coisa. Não foi algo premeditado. Tem coisas que eu vejo depois que o filme está pronto, e falo: “gente, isso é tal filme.” Até coloco algumas dicas que é tal filme, antes ou depois, mas sempre depois de ter visto a cena. Como tem muita coisa, as pessoas acham que é de filme que eu não vi. Mas com certeza, eu vi um outro filme que tenha a mesma coisa daquele outro filme. Os filmes se repetem muito. Eu não vi o filme que o cara viu, mas vi o outro que é a mesma coisa que o cara viu.

Z G – E o pôster do filme? Ele foi inspirado em Gilda?

GAP – Foi. A idéia do pôster é minha, não o desenho, porque eu não sou desenhista. A idéia de ter a Maitê com o vestido de Gilda, como um rolo de filme, era minha. Eu falei para o desenhista: “eu a quero com um vestido parecido com o do Gilda, só que vestida com um negativo, uma cópia de filme.” Só. O desenho, e todo o demais, foi do desenhista.

Z M – Quem era o desenhista?

GAP - Era o Héctor Gomes Allisio, que tinha feito o storyboard do filme, depois fez a história em quadrinhos [Samsara]. Ele que desenhou. O cartaz de Onde Andará Dulce Veiga? também é do Hector.


anterior // próximo



<< Capa